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Crônicas da vida e da morte
Crônicas da vida e da morte
Crônicas da vida e da morte
E-book279 páginas3 horas

Crônicas da vida e da morte

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Sobre este e-book

Autor de obras de referência na antropologia, na sociologia e na ciência política, Roberto DaMatta também lança seu olhar crítico sobre o Brasil e o mundo nas páginas de grandes jornais do país. Reunidas neste volume, suas crônicas revisitam temas que o consagraram, como o futebol e o carnaval, as diferenças culturais e políticas entre as nações de Obama e Lula, e outros, menos abordados, de cunho mais pessoal e memorialístico. Com a mesma verve irônica e informal que o consagrou, e adicionando a ela um discurso em tom confessional, Roberto DaMatta comprova, em Crônicas da vida e da morte, por que é um eximo cronista do público e do privado.
Entre exercícios de distanciamento e aproximação, o antropólogo usa toda a sua experiência em universidades e trabalhos de campo para investigar fenômenos aparentemente triviais do cotidiano brasileiro e mundial. A partir de escândalos políticos e crimes bárbaros que se avolumam no noticiário, DaMatta oferece novas chaves de interpretação da sociedade brasileira, relativizando 'verdades' e 'mentiras' registradas em nosso inconsciente.
Com a experiência de um antropólogo social que aprendeu a examinar os fenômenos sociais pelo seu avesso, DaMatta lança luz sobre a sociedade em que vivemos, sem medo de afirmar com segurança que não é o patriotismo, mas a inveja, o sentimento básico da vida coletiva no Brasil. Ao desnudar o típico exemplar nacional, entre carnavais, malandros e heróis, Roberto DaMatta continua atento às transformações e permanências da sociedade brasileira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de ago. de 2012
ISBN9788581220703
Crônicas da vida e da morte

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    Crônicas da vida e da morte - Roberto DaMatta

    Estes escritos são dedicados à memória do meu amado filho Rodrigo.

    SUMÁRIO

    Para pular o Sumário, clique aqui.

    Prólogo

    I – VIDA E MORTE

    Questionamentos

    A CURA POR SCHOPENHAUER

    A PRIMEIRA VEZ

    A SETE PALMOS

    A VIDA IMITA A ARTE OU VICE-VERSA AO CONTRÁRIO

    A VIDA IMITA A ARTE OU VICE-VERSA AO CONTRÁRIO ( II )

    A CARTA DO FILHO MORTO

    ENTRE PRESENTES

    DEPOIS DE TUDO: EM TORNO DE HERANÇAS E LEGADOS

    QUANDO O TEMPO PASSA

    REZAR E CHORAR

    SABEMOS DEMAIS

    Memórias da antropologia

    ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA

    MUITAS DÁDIVAS E UM RECONHECIMENTO: DAVID MAYBURY-LEWIS

    UMA RENÚNCIA DO MUNDO – OU ONDE ESTAVAS QUANDO TOMARAM O BRASIL?

    RENUNCIANTE DO MUNDO (OU ONDE ESTAVAS)

    SOBRE EXAMES E CONCURSOS

    NÁUFRAGOS

    II – SOCIEDADE BRASILEIRA

    Velhos hábitos

    A VIDA PELO AVESSO

    DE NOVO, VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?

    VOCÊ TEM INVEJA?

    A CRÔNICA DA INVEJA E A INVEJA DA CRÔNICA

    O MACACO CIDADÃO

    EM TORNO DOS GATOS

    MANIFESTAÇÕES COLETIVAS

    O LUGAR DA POLÍCIA

    ONDE ESTÁ A POLÍCIA

    O NOVELO DA NOVELA

    Hierarquias, igualdade, calvinismo

    A CULTURA COMO REALIDADE

    A RESSURREIÇÃO DA CARNE: O CULTO DO CORPO NO BRASIL MODERNO

    O COMBATE ENTRE O CORPO E A ALMA

    CORPO FORTE, ALMA FRACA

    MODERNIDADE, CONFORTO E CULTO DO CORPO

    UM CORPO BRASILEIRO?

    CONSPIRAÇÕES E SEGMENTAÇÕES: EVENTOS E SOCIEDADES (A percepção dos dramas nacionais no Brasil e nos Estados Unidos)

    DIÁLOGOS & DIALÉTICAS

    A MONTANHA DO ESPINHAÇO QUEBRADO

    Crise e identidade

    BATENDO DE FRENTE COM O MUNDO

    A IMAGEM DO BEM LIMITADO (E ILIMITADO)

    EM TORNO DO BEM ILIMITADO

    O VALOR DAS IDEIAS

    EM TORNO DE UM VALOR NACIONAL: A MENTIRA

    EM TORNO DE UM VALOR NACIONAL: A MENTIRA (II)

    BRASIL DE TODOS OS SANTOS, PECADOS E ÉTICAS

    BRASIL DE TODOS OS SANTOS, PECADOS E ÉTICAS (II)

    DESCUMPRIR A LEI: MEMÓRIA DE UMA CONFERÊNCIA

    MACAQUEANDO: EM TORNO DAS IMITAÇÕES

    MACAQUEANDO: EM TORNO DAS IMITAÇÕES (II)

    ESFERA PÚBLICA E MENDACIDADE

    CUIDAR OU GOVERNAR?

    UMA HISTÓRIA DO DIABO

    DECOLAGEM E CONTRADIÇÕES: A VISÃO DE FORA

    III – CRÔNICAS DO DIA A DIA

    PRE (VISÕES)

    AMOR, ÉTICA E SOCIEDADE

    OS EFEITOS SOCIAIS DO NEOLIBERALISMO

    DE NOVO, AS OLIMPÍADAS

    POR QUE GOSTAMOS DE FUTEBOL?

    QUE TIME É TEU? OU O ETERNO RETORNO DO FUTEBOL

    O FUTEBOL E SEUS HÓSPEDES NÃO CONVIDADOS

    O FUTEBOL E SEUS HÓSPEDES NÃO CONVIDADOS (II)

    O PÚBLICO E O PRIVADO

    II

    III

    TROPA DE ELITE E TROPO DE ELITE

    ALGEMADO

    ALGEMADO (II)

    ALGEMADO (III)

    QUEM É DONO DO SOCIAL?

    SOBRE MÃES E MADRASTAS

    NA PRAIA, A REFORMA DA SOCIEDADE

    DESPERDÍCIOS

    Data Original de publicação das crônicas

    Obras do Autor

    Créditos

    O Autor

    PRÓLOGO

    Neste livro o leitor vai encontrar uma seleção de crônicas publicadas em periódicos, a sua esmagadora maioria nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

    Quando se decide tirar escritos de um periódico, assume-se a esperança de que sejam capazes de sobreviver aos fatos que implícita ou explicitamente foram seus motivadores e agenciaram sua escrita. Neste sentido, o livro de crônicas inverte a sua mais óbvia manifestação, pois se os comentários e as críticas foram inventados ao sabor e no calor dos eventos e em torno das circunstâncias sempre complexas do seu acontecer, agora – como um volume – elas são os fatos. Oxalá resistam ao chão empoeirado das rotinas e aos ares superiores de algumas interpretações.

    Como desculpa para o que pode parecer a alguns como complicação sociológica, gostaria apenas de reiterar que todas as crônicas giram em torno da questão da igualdade como valor na sociedade brasileira. Essa igualdade que faz par com a liberdade e que é fácil de falar, mas complicada de praticar num sistema social que permanece perfeitamente coerente com seus princípios e vieses aristocráticos que engendraram entre nós um país fora do comum. Um lugar onde misturamos capitalismo com monarquia e escravidão e que, pasmemos todos, atravessou todo o século XIX altaneiro e brilhante, como um romance de Machado de Assis. No meu entender, devemos à igualdade uma reflexão ou ponderação mais profunda, já que estou convencido, como digo explicitamente neste livro, de que todo o problema da nossa democracia (e modernidade) tem a ver, num extremo, com sua rejeição; noutro, com a ignorância de sua presença vital como prática e ideal no liberalismo.

    De novidade o leitor terá, ao lado do conhecido cronista acadêmico, o homem perplexo com as reviravoltas do mundo e da vida. Nos últimos anos, perdi amados mentores, professores e amigos, um queridíssimo irmão mais novo e o meu primogênito. O filho que me tornou pai e me trouxe a concretude da experiência de doar a vida, e com isso de desfrutar da experiência dos deuses.

    Essas crônicas têm a marca da renovação e do renascimento. Da renovação, porque diante da doença, da indiferença, da hipocrisia e da morte, eu sigo sereno, escolhendo a vida e o trabalho. Do renascimento, porque este trecho da minha vida tem revelado que cabe mesmo a nós, humanos, dar sentido – como homens entre homens, como dizia Sartre – a todos (e eu repito, todos!) os acontecimentos que constituem e dão fundamento às nossas trajetórias.

    Ensaio aqui, certamente pela primeira vez de modo mais franco e aberto, a tentativa de alinhavar alguns fatos num fio literário. Se apenas um fio separa a vida da morte, espero que esse mesmo fio possa ligar esses escritos a vocês, queridos leitores.

    ROBERTO DAMATTA

    Jardim Ubá – 13 de abril de 2009

    I – VIDA E MORTE

    Questionamentos

    A CURA POR SCHOPENHAUER

    Sem livros, eu teria me desesperado há muito tempo.

    Arthur Schopenhauer

    Somos levados pela vida. Mas a sabedoria do velho lema não resiste a alguns segundos de reflexão. Como não ser levado pela vida se o cara está vivo? Só os mortos não são mais levados pela vida e dela estão brutalmente separados. O congelamento ridículo do morto é o centro do paradoxo. Como morreu, se estava vivo? A pergunta burra é fundamental para compreender esse ser levado pela vida: a condição básica para morrer é estar vivo!

    Viver é ser levado e, mais das vezes, arrastado pelo ralo da existência. O sujeito se esconde no quarto ou no alto cargo pensando que vai escapar da queda-d’água, mas está apenas entrando num outro tipo de corrente. Os renunciantes do mundo, quando não são marginais plenos, fundam seitas religiosas e movimentos sociais. Foi o caso de Antônio Conselheiro, cujo isolamento da vida comunitária teve tal profundidade, que acabou por trazê-lo de volta ao mundo do qual buscava escapar no bojo do mais trágico conflito armado e aberto da história brasileira: a guerra de Canudos.

    Todos somos cegos sobre nossas vidas porque, como reitera o trovador, de perto ninguém é normal. O filósofo Schopenhauer dizia que, nos seus minúsculos detalhes, tudo na vida parece ridículo ou cômico. Tal como uma gota d’água na qual vemos uma multidão agitada de protozoários. Mas note bem o verbo parecer. Pois, se chegarmos perto do microscópio, como fazem os terapeutas, descobrimos que o ridículo e o cômico adquirem novos significados. Como Schopenhauer foi um renunciante do mundo no melhor estilo indiano, cujas lições de sabedoria conhecia e certamente tentou seguir, ele também adotou o olhar distanciado, promovido pelo cume das montanhas que faz desaparecer o pequeno, deixando ver somente o relevante.

    Esses efeitos de estranhamento por aproximação ou distanciamento são importantes para lidar com os fatos da vida. Quando um evento avassalador nos pega de surpresa, não podemos usar o microscópio. Pois se entrarmos dentro do que nos arrasta ficamos presos na correnteza. Nesses casos, devemos fazer uso da visão do cume da montanha que nos ajuda a distinguir o grande do pequeno. E faz com que até mesmo os fatos irremediáveis, como a morte súbita ou a doença incurável, percam seu poder esmagador.

    No mundo público, é comum olhar o adversário pelo microscópio para vê-lo perdido nos seus próprios defeitos enquanto vemos a nós mesmos e os nossos aliados pela lupa do Lula como os mais inovadores, os mais honestos e os mais perfeitos. Como magníficos descobridores da pólvora: aqueles que fizeram tudo neste país. A lupa do narcisismo, se não torna o outro invisível, o faz sumir em meio a seus erros. Na política, é rotineiro o olhar do cume da montanha nas campanhas eleitorais e, dessa distância, enxergar tudo o que precisa ser feito; e, ao mesmo tempo, usar o olhar próximo para os opositores que, no governo, são acusados da grama e não do gramado.

    Os defeitos são dimensões da proximidade, já as qualidades surgem com a distância contida na saudade, na generosidade e na compaixão. O amor é ponte porque, num sentido preciso, ele liga virtudes longínquas, como a esperança, com as próximas, como a caridade. Foi por isso que São Paulo Apóstolo falou que de nada vale o sino do melhor metal, se no seu som não há amor. Do mesmo modo, de nada valem leis formalmente perfeitas e que resolvem tudo, se não há juízes, delegados, policiais, advogados e cidadãos para segui-las e honrá-las.

    * * *

    Esses pensamentos são o resultado de uma indizível perda pessoal que tenho elaborado, entre outras coisas, pela leitura. Na sua humildade de túmulos quando fechados, mas com sua voz profética e amorosa quando abertos, os livros – como a vida e as pessoas – nos levam para outros livros.

    Thomas Mann me reconduziu a Freud, fez-me reler Nietzsche e me despertou para Schopenhauer, cuja filosofia, centrada na vida como sofrimento, bem como na experiência estética como finitude graciosa dentro da dura indiferença do mundo, tem me ajudado a transformar a aridez da perda no campo verdejante da saudade.

    Foi, pois, o próprio Arthur Schopenhauer e não a lista de best-sellers que, por seu turno, levou-me a Irvin D. Yalom, e ao seu maravilhoso A cura de Schopenhauer. Ali eu me inspirei para escrever sobre esse princípio da proximidade e da distância como ponto fundamental para entender o meu cotidiano e – quem sabe? – cumprir o verdadeiro papel de cronista. Pois o que faz a crônica senão tentar tirar o leitor da caótica indiferença de um cotidiano fragmentado por todo tipo de injustiça, imoralidade e incúria governamental, fazendo-o olhar para si mesmo com mais caridade, paciência e esperança?

    Quem sabe não podemos usar Schopenhauer para, senão curar o Brasil, pois isso seria muita inocência, ao menos aliviar a confusão de um único leitor. O que seria uma bênção.

    A PRIMEIRA VEZ

    Graças à força da publicidade e ao talento de Washington Olivetto, muito tem sido dito sobre aquela premiada peça publicitária, na qual uma moça linda e virginal – uma rara imagem primaveril de mulher neste nosso mundo onde todos estão emancipados – experimenta o seu primeiro sutiã.

    Agora mesmo, no belo sábado estival de 27 de setembro passado, testemunhei a compra do primeiro sapato de salto alto para uma de minhas netas. Por motivos desconhecidos e que estão muito além de toda a sabedoria humana e, mais ainda, dos meus desejos, ocupei o lugar do pai nesse minúsculo rito de passagem, quando a menina calça o sapatinho de salto alto expressivo desses primeiros degraus de sua transição para o estado de adolescente ou de mocinha, como falamos afetivamente no Brasil. O sapato de salto alto, como sabe a Cinderela, é expressivo desses primeiros passos em direção ao complexo território dos gêneros.

    No momento da compra, uma vendedora abriu o processo de ritualização, perguntando para a acanhada compradora se ela queria mesmo um sapato de salto alto. Ouvida a afirmativa, a lojista tocou no ponto crítico de todo rito de passagem, quando questionou se ela sabia mesmo andar de salto alto, o que a menina realizou em seguida – mas não sem alguma hesitação. Falo em ponto crítico porque, no meu entender, é a sustentação de um foco ou de um ponto de vista que, afinal de contas, engendra a ritualização, dramatizando – com as provas e os testes contidos nessas ocasiões – algo que, sem a força exagerada da atenção, faria parte da inconsciência geral com a qual somos embrulhados pela correnteza da vida.

    No seu livrinho clássico sobre os rituais de passagem, Arnold Van Gennep, que descobriu e consagrou a expressão, bem como as etapas desses rituais, diz o seguinte sobre essas cerimônias da primeira vez:

    A primeira vez é que tem valor, afirma um ditado popular, não deixando de ter interesse observar que não somente essa ideia é propriamente universal, mas traduz-se em toda parte com maior ou menor força, por meio de ritos especiais (ver Os ritos de passagem, tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, p. 147).

    Vendo minha querida compradora calçar e dar seus primeiros passos de salto alto, eu a imaginei em outras caminhadas. A primeira dança, abraço, beijo, enamoramento, e tudo o que chega com essas coisas e, de dentro do meu coração de avô, veio aquele primeiro desejo (misto de prece e esperança – as duas andam sempre juntas) de que todas as suas estreias fossem repletas de beleza e verdade.

    * * *

    O importante, o arriscado, o fatal, o que tem a ver com entrega e doação sempre implica uma primeira vez, mesmo que tenha sido muitas vezes realizado. Um importante empresário brasileiro ficou impressionado com meu nervosismo numa conferência sobre o Brasil na Universidade de Oxford.

    – Mas você faz tanto isso...

    – É justamente por causa disso que estou nervoso...

    * * *

    Toda primeira vez sinaliza um empacotamento de vida. Toda estreia assinala a possibilidade de (re)fazer uma história que, por ter início, meio e fim, como descobriu com esplêndida ingenuidade Van Gennep, aniquila um pouco a indiferença de um mundo sabidamente contínuo e, por isso mesmo, indiferente ao pipocar de vida e de paixão que eventualmente surge em seu seio.

    Porque, como sabe a moça do sutiã e vai saber a menina do sapato alto, todo começo implica uma metade e, depois, um fim. Só o eterno e o nada não têm primeira nem última vez. Sabendo ou não, Van Gennep e tantos outros que depois dele (inclusive eu) falaram em ritual como uma máquina de promover diferenças face a uma realidade indiferente (a vida) apenas exprimiam aquilo que um Thomas Mann imbuído de Schopenhauer disse de forma mais cabal e completa pela boca de Felix Krull, seu herói mais desconstruído e malandro:

    Dizendo que se a vida era apenas um episódio, isso a tornava mais simpática a mim, eu expressara o mais humano dos pensamentos. Em lugar de achar que a transitoriedade desvalorizava, era exatamente ela que conferia a toda existência valor, dignidade e beleza. Só o episódico, só o que tinha começo e fim era interessante e despertava simpatia, animado que estava pela sua condição de transitório. Mas tudo era assim – todo Ser cósmico era tocado pela efemeridade, e só o Nada era eterno e, por isso mesmo, não possuía alma nem merecia simpatia. O Nada do qual o Ser fora convocado para gozar e sofrer.

    * * *

    Acabo de escrever esse trabalho e encontro o Fonseca, o jardineiro branco e pobre do vizinho. Por ter a mania de me transformar em professor e oráculo, ele comenta:

    – Eu estou muito desconfiado desse negão esquisito, candidato a presidente americano. Como é mesmo o nome dele? Obana?

    – Barack Obama! – retifico imediatamente e, já que estamos no terreno familiar das pessoas, solto outro corretivo: – Esquisito é o Bush! Brancalhão que faliu a economia americana.

    Esperto, o Fonseca imediatamente muda de assunto. Eu volto para o computador pensando: até o país mais poderoso do mundo tem a sua primeira vez...

    A SETE PALMOS

    De todos os simbolismos convocados pelo número 7 – esse algarismo ímpar e primo, divisível somente por 1 e por si mesmo e que, quando repartido, deixa (como seus irmãos de magia, o 3, o 9 e o 13) uma sobra, um resto que não pode ser alinhado nas fileiras paralelas promovidas pela bifurcação simétrica –, a associação com os palmos de terra é, de longe, a mais macabra, a mais triste e a menos desejada.

    Não há quem desconheça esses sete palmos que medem a profundidade dos túmulos e o abismo desmesurado da morte. Todos temos uma impressão marcante da tumba recém-aberta ou preparada, recheada de terra virgem ou alcatifada de cimento e umidade, esse buraco de sete palmos que irá servir de cama e casa para aqueles que nos precederam naquilo que é o único evento capaz de nos igualar de modo exato, preciso, conclusivo, irremediável e substantivo: a morte.

    Esses sete palmos que dividem os mortos dos vivos são a ponte que nos segrega e une a uma margem desconhecida e, pior que isso, que é impossível de explorar. Essa cova circunspecta, porque bem demarcada pelos lados e pelos fundos, pela qual se entra no chamado outro mundo. Cova que, como dizia Thomas Mann, nos obriga a falar baixo e andar na ponta dos pés.

    Vinicius de Moraes, numa de suas elaboradas letras para uma bela canção popular, aborda os sete palmos pelo seu lado mais aterrador, quando entoa: Por cima uma laje/ Embaixo a escuridão/ É fogo, irmão!/ É fogo, irmão! E por aí vai ele, convencendo pela lembrança desses sete palmos que fabricam o lado talvez mais aterrorizante e doloroso da morte, o de que temos um fim, daí a necessidade de fazer o bem e de colocar de quarentena não os prazeres do mundo, mas o dinheiro que engendra tanto mal. Já meu tio Marcelino associava a morte com a vida,

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