Crônicas da vida e da morte
()
Sobre este e-book
Entre exercícios de distanciamento e aproximação, o antropólogo usa toda a sua experiência em universidades e trabalhos de campo para investigar fenômenos aparentemente triviais do cotidiano brasileiro e mundial. A partir de escândalos políticos e crimes bárbaros que se avolumam no noticiário, DaMatta oferece novas chaves de interpretação da sociedade brasileira, relativizando 'verdades' e 'mentiras' registradas em nosso inconsciente.
Com a experiência de um antropólogo social que aprendeu a examinar os fenômenos sociais pelo seu avesso, DaMatta lança luz sobre a sociedade em que vivemos, sem medo de afirmar com segurança que não é o patriotismo, mas a inveja, o sentimento básico da vida coletiva no Brasil. Ao desnudar o típico exemplar nacional, entre carnavais, malandros e heróis, Roberto DaMatta continua atento às transformações e permanências da sociedade brasileira.
Leia mais títulos de Roberto Da Matta
Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro Nota: 4 de 5 estrelas4/5O que faz o brasil, Brasil? Nota: 2 de 5 estrelas2/5Relativizando Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNo princípio, era a roda: Um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRetrospectiva Rocco na Flip Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO que é o Brasil? Nota: 3 de 5 estrelas3/5Conta de mentiroso Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNotícias da América Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFila e democracia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA bola corre mais que os homens: Duas Copas, treze crônicas e três ensaios sobre futebol Nota: 0 de 5 estrelas0 notasBrasileirismos: Além do jornalismo, aquém da antropologia e quase ficção Nota: 0 de 5 estrelas0 notasExplorações: Ensaios de sociologia interpretativa Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFé em Deus e pé na tábua: Ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Relacionado a Crônicas da vida e da morte
Ebooks relacionados
Notícias da América Nota: 0 de 5 estrelas0 notasConta de mentiroso Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Que É (a) Sociologia? Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHistória e utopia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO novo tempo do mundo: E outros estudos sobre a era da emergência Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEnsaios do assombro Nota: 5 de 5 estrelas5/5Fila e democracia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO que é o Brasil? Nota: 3 de 5 estrelas3/5Explorações: Ensaios de sociologia interpretativa Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAntropologia estrutural dois Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA revolução recuperadora Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEsperando Foucault, ainda Nota: 5 de 5 estrelas5/5Fantasmas da minha vida Nota: 0 de 5 estrelas0 notasBrasileirismos: Além do jornalismo, aquém da antropologia e quase ficção Nota: 0 de 5 estrelas0 notasIntrodução à obra de Marcel Mauss: (in Sociologia e antropologia) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA função social da guerra na sociedade tupinambá Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSobre Lima Barreto: Três ensaios Nota: 0 de 5 estrelas0 notasArgonautas do pacífico ocidental – Introdução e Capítulo 1 Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPor Que Ser Antropólogo? Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO desencantamento do mundo: Estruturas econômicas e estruturas temporais Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEtnobiografia: Subjetivação e etnografia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPreconceito, racismo e política Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEscritos sobre a universidade Nota: 3 de 5 estrelas3/5A sociedade contra o Estado Nota: 5 de 5 estrelas5/5Antropologia estrutural Nota: 4 de 5 estrelas4/5Walter Benjamin está morto Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDiálogo imaginário entre Marx e Bakunin Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Brasil de Florestan Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDireita e esquerda na literatura Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRousseau: Escritos sobre a política e as artes Nota: 5 de 5 estrelas5/5
Contos para você
A bela perdida e a fera devassa Nota: 5 de 5 estrelas5/5Procurando por sexo? romance erótico: Histórias de sexo sem censura português erotismo Nota: 3 de 5 estrelas3/5Todo mundo que amei já me fez chorar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSADE: Contos Libertinos Nota: 5 de 5 estrelas5/5Contos pervertidos: Box 5 em 1 Nota: 4 de 5 estrelas4/5Meu misterioso amante Nota: 4 de 5 estrelas4/5Só você pode curar seu coração quebrado Nota: 4 de 5 estrelas4/5Novos contos eróticos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasQuando você for sua: talvez não queira ser de mais ninguém Nota: 4 de 5 estrelas4/5Melhores Contos Guimarães Rosa Nota: 5 de 5 estrelas5/5Safada Nota: 4 de 5 estrelas4/5O DIABO e Outras Histórias - Tolstoi Nota: 0 de 5 estrelas0 notasContos de Edgar Allan Poe Nota: 5 de 5 estrelas5/5Os Melhores Contos de Franz Kafka Nota: 5 de 5 estrelas5/5Prometo falhar Nota: 4 de 5 estrelas4/5Para não desistir do amor Nota: 5 de 5 estrelas5/5Homens pretos (não) choram Nota: 5 de 5 estrelas5/5Felicidade em copo d'Água: Como encontrar alegria até nas piores tempestades Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO louco seguido de Areia e espuma Nota: 5 de 5 estrelas5/5TCHEKHOV: Melhores Contos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAmar e perder Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRua sem Saída Nota: 4 de 5 estrelas4/5Dono do tempo Nota: 5 de 5 estrelas5/5MACHADO DE ASSIS: Os melhores contos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasOs Melhores Contos de Isaac Asimov Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO homem que sabia javanês e outros contos Nota: 4 de 5 estrelas4/5A Espera Nota: 5 de 5 estrelas5/5
Avaliações de Crônicas da vida e da morte
0 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
Crônicas da vida e da morte - Roberto DaMatta
Estes escritos são dedicados à memória do meu amado filho Rodrigo.
SUMÁRIO
Para pular o Sumário, clique aqui.
Prólogo
I – VIDA E MORTE
Questionamentos
A CURA POR SCHOPENHAUER
A PRIMEIRA VEZ
A SETE PALMOS
A VIDA IMITA A ARTE OU VICE-VERSA AO CONTRÁRIO
A VIDA IMITA A ARTE OU VICE-VERSA AO CONTRÁRIO ( II )
A CARTA DO FILHO MORTO
ENTRE PRESENTES
DEPOIS DE TUDO: EM TORNO DE HERANÇAS E LEGADOS
QUANDO O TEMPO PASSA
REZAR E CHORAR
SABEMOS DEMAIS
Memórias da antropologia
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA
MUITAS DÁDIVAS E UM RECONHECIMENTO: DAVID MAYBURY-LEWIS
UMA RENÚNCIA DO MUNDO – OU ONDE ESTAVAS QUANDO TOMARAM O BRASIL?
RENUNCIANTE DO MUNDO (OU ONDE ESTAVAS)
SOBRE EXAMES E CONCURSOS
NÁUFRAGOS
II – SOCIEDADE BRASILEIRA
Velhos hábitos
A VIDA PELO AVESSO
DE NOVO, VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?
VOCÊ TEM INVEJA?
A CRÔNICA DA INVEJA E A INVEJA DA CRÔNICA
O MACACO CIDADÃO
EM TORNO DOS GATOS
MANIFESTAÇÕES COLETIVAS
O LUGAR DA POLÍCIA
ONDE ESTÁ A POLÍCIA
O NOVELO DA NOVELA
Hierarquias, igualdade, calvinismo
A CULTURA COMO REALIDADE
A RESSURREIÇÃO DA CARNE: O CULTO DO CORPO NO BRASIL MODERNO
O COMBATE ENTRE O CORPO E A ALMA
CORPO FORTE, ALMA FRACA
MODERNIDADE, CONFORTO E CULTO DO CORPO
UM CORPO BRASILEIRO?
CONSPIRAÇÕES E SEGMENTAÇÕES: EVENTOS E SOCIEDADES (A percepção dos dramas nacionais no Brasil e nos Estados Unidos)
DIÁLOGOS & DIALÉTICAS
A MONTANHA DO ESPINHAÇO QUEBRADO
Crise e identidade
BATENDO DE FRENTE COM O MUNDO
A IMAGEM DO BEM LIMITADO (E ILIMITADO)
EM TORNO DO BEM ILIMITADO
O VALOR DAS IDEIAS
EM TORNO DE UM VALOR NACIONAL: A MENTIRA
EM TORNO DE UM VALOR NACIONAL: A MENTIRA (II)
BRASIL DE TODOS OS SANTOS, PECADOS E ÉTICAS
BRASIL DE TODOS OS SANTOS, PECADOS E ÉTICAS (II)
DESCUMPRIR A LEI: MEMÓRIA DE UMA CONFERÊNCIA
MACAQUEANDO: EM TORNO DAS IMITAÇÕES
MACAQUEANDO: EM TORNO DAS IMITAÇÕES (II)
ESFERA PÚBLICA E MENDACIDADE
CUIDAR OU GOVERNAR?
UMA HISTÓRIA DO DIABO
DECOLAGEM E CONTRADIÇÕES: A VISÃO DE FORA
III – CRÔNICAS DO DIA A DIA
PRE (VISÕES)
AMOR, ÉTICA E SOCIEDADE
OS EFEITOS SOCIAIS DO NEOLIBERALISMO
DE NOVO, AS OLIMPÍADAS
POR QUE GOSTAMOS DE FUTEBOL?
QUE TIME É TEU? OU O ETERNO RETORNO DO FUTEBOL
O FUTEBOL E SEUS HÓSPEDES NÃO CONVIDADOS
O FUTEBOL E SEUS HÓSPEDES NÃO CONVIDADOS (II)
O PÚBLICO E O PRIVADO
II
III
TROPA DE ELITE E TROPO DE ELITE
ALGEMADO
ALGEMADO (II)
ALGEMADO (III)
QUEM É DONO DO SOCIAL
?
SOBRE MÃES E MADRASTAS
NA PRAIA, A REFORMA DA SOCIEDADE
DESPERDÍCIOS
Data Original de publicação das crônicas
Obras do Autor
Créditos
O Autor
PRÓLOGO
Neste livro o leitor vai encontrar uma seleção de crônicas publicadas em periódicos, a sua esmagadora maioria nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.
Quando se decide tirar escritos de um periódico, assume-se a esperança de que sejam capazes de sobreviver aos fatos que implícita ou explicitamente foram seus motivadores e agenciaram sua escrita. Neste sentido, o livro de crônicas inverte a sua mais óbvia manifestação, pois se os comentários e as críticas foram inventados ao sabor e no calor dos eventos e em torno das circunstâncias sempre complexas do seu acontecer, agora – como um volume – elas são os fatos. Oxalá resistam ao chão empoeirado das rotinas e aos ares superiores de algumas interpretações.
Como desculpa para o que pode parecer a alguns como complicação sociológica, gostaria apenas de reiterar que todas as crônicas giram em torno da questão da igualdade como valor na sociedade brasileira. Essa igualdade que faz par com a liberdade e que é fácil de falar, mas complicada de praticar num sistema social que permanece perfeitamente coerente com seus princípios e vieses aristocráticos que engendraram entre nós um país fora do comum. Um lugar onde misturamos capitalismo com monarquia e escravidão e que, pasmemos todos, atravessou todo o século XIX altaneiro e brilhante, como um romance de Machado de Assis. No meu entender, devemos à igualdade uma reflexão ou ponderação mais profunda, já que estou convencido, como digo explicitamente neste livro, de que todo o problema da nossa democracia (e modernidade) tem a ver, num extremo, com sua rejeição; noutro, com a ignorância de sua presença vital como prática e ideal no liberalismo.
De novidade o leitor terá, ao lado do conhecido cronista acadêmico, o homem perplexo com as reviravoltas do mundo e da vida. Nos últimos anos, perdi amados mentores, professores e amigos, um queridíssimo irmão mais novo e o meu primogênito. O filho que me tornou pai e me trouxe a concretude da experiência de doar a vida, e com isso de desfrutar da experiência dos deuses.
Essas crônicas têm a marca da renovação e do renascimento. Da renovação, porque diante da doença, da indiferença, da hipocrisia e da morte, eu sigo sereno, escolhendo a vida e o trabalho. Do renascimento, porque este trecho da minha vida tem revelado que cabe mesmo a nós, humanos, dar sentido – como homens entre homens, como dizia Sartre – a todos (e eu repito, todos!) os acontecimentos que constituem e dão fundamento às nossas trajetórias.
Ensaio aqui, certamente pela primeira vez de modo mais franco e aberto, a tentativa de alinhavar alguns fatos num fio literário. Se apenas um fio separa a vida da morte, espero que esse mesmo fio possa ligar esses escritos a vocês, queridos leitores.
ROBERTO DAMATTA
Jardim Ubá – 13 de abril de 2009
I – VIDA E MORTE
Questionamentos
A CURA POR SCHOPENHAUER
Sem livros, eu teria me desesperado há muito tempo.
Arthur Schopenhauer
Somos levados pela vida. Mas a sabedoria
do velho lema não resiste a alguns segundos de reflexão. Como não ser levado pela vida se o cara está vivo? Só os mortos não são mais levados pela vida e dela estão brutalmente separados. O congelamento ridículo do morto é o centro do paradoxo. Como morreu, se estava vivo? A pergunta burra é fundamental para compreender esse ser levado pela vida
: a condição básica para morrer é estar vivo!
Viver é ser levado e, mais das vezes, arrastado pelo ralo da existência. O sujeito se esconde no quarto ou no alto cargo pensando que vai escapar da queda-d’água, mas está apenas entrando num outro tipo de corrente. Os renunciantes do mundo, quando não são marginais plenos, fundam seitas religiosas e movimentos sociais. Foi o caso de Antônio Conselheiro, cujo isolamento da vida comunitária teve tal profundidade, que acabou por trazê-lo de volta ao mundo do qual buscava escapar no bojo do mais trágico conflito armado e aberto da história brasileira: a guerra de Canudos.
Todos somos cegos sobre nossas vidas porque, como reitera o trovador, de perto ninguém é normal. O filósofo Schopenhauer dizia que, nos seus minúsculos detalhes, tudo na vida parece ridículo ou cômico. Tal como uma gota d’água na qual vemos uma multidão agitada de protozoários. Mas note bem o verbo parecer. Pois, se chegarmos perto do microscópio, como fazem os terapeutas, descobrimos que o ridículo e o cômico adquirem novos significados. Como Schopenhauer foi um renunciante do mundo no melhor estilo indiano, cujas lições de sabedoria conhecia e certamente tentou seguir, ele também adotou o olhar distanciado, promovido pelo cume das montanhas que faz desaparecer o pequeno, deixando ver somente o relevante.
Esses efeitos de estranhamento por aproximação ou distanciamento são importantes para lidar com os fatos da vida. Quando um evento avassalador nos pega de surpresa, não podemos usar o microscópio. Pois se entrarmos dentro do que nos arrasta ficamos presos na correnteza. Nesses casos, devemos fazer uso da visão do cume da montanha que nos ajuda a distinguir o grande do pequeno. E faz com que até mesmo os fatos irremediáveis, como a morte súbita ou a doença incurável, percam seu poder esmagador.
No mundo público, é comum olhar o adversário pelo microscópio para vê-lo perdido nos seus próprios defeitos enquanto vemos a nós mesmos e os nossos aliados pela lupa do Lula como os mais inovadores, os mais honestos e os mais perfeitos. Como magníficos descobridores da pólvora: aqueles que fizeram tudo neste país
. A lupa do narcisismo, se não torna o outro invisível, o faz sumir em meio a seus erros. Na política, é rotineiro o olhar do cume da montanha nas campanhas eleitorais e, dessa distância, enxergar tudo o que precisa ser feito; e, ao mesmo tempo, usar o olhar próximo para os opositores que, no governo, são acusados da grama e não do gramado.
Os defeitos são dimensões da proximidade, já as qualidades surgem com a distância contida na saudade, na generosidade e na compaixão. O amor é ponte porque, num sentido preciso, ele liga virtudes longínquas, como a esperança, com as próximas, como a caridade. Foi por isso que São Paulo Apóstolo falou que de nada vale o sino do melhor metal, se no seu som não há amor. Do mesmo modo, de nada valem leis formalmente perfeitas e que resolvem tudo, se não há juízes, delegados, policiais, advogados e cidadãos para segui-las e honrá-las.
* * *
Esses pensamentos são o resultado de uma indizível perda pessoal que tenho elaborado, entre outras coisas, pela leitura. Na sua humildade de túmulos quando fechados, mas com sua voz profética e amorosa quando abertos, os livros – como a vida e as pessoas – nos levam para outros livros.
Thomas Mann me reconduziu a Freud, fez-me reler Nietzsche e me despertou para Schopenhauer, cuja filosofia, centrada na vida como sofrimento, bem como na experiência estética como finitude graciosa dentro da dura indiferença do mundo, tem me ajudado a transformar a aridez da perda no campo verdejante da saudade.
Foi, pois, o próprio Arthur Schopenhauer e não a lista de best-sellers que, por seu turno, levou-me a Irvin D. Yalom, e ao seu maravilhoso A cura de Schopenhauer. Ali eu me inspirei para escrever sobre esse princípio da proximidade e da distância como ponto fundamental para entender o meu cotidiano e – quem sabe? – cumprir o verdadeiro papel de cronista. Pois o que faz a crônica senão tentar tirar o leitor da caótica indiferença de um cotidiano fragmentado por todo tipo de injustiça, imoralidade e incúria governamental, fazendo-o olhar para si mesmo com mais caridade, paciência e esperança?
Quem sabe não podemos usar Schopenhauer para, senão curar
o Brasil, pois isso seria muita inocência, ao menos aliviar a confusão de um único leitor. O que seria uma bênção.
A PRIMEIRA VEZ
Graças à força da publicidade e ao talento de Washington Olivetto, muito tem sido dito sobre aquela premiada peça publicitária, na qual uma moça linda e virginal – uma rara imagem primaveril de mulher neste nosso mundo onde todos estão emancipados – experimenta o seu primeiro sutiã.
Agora mesmo, no belo sábado estival de 27 de setembro passado, testemunhei a compra do primeiro sapato de salto alto para uma de minhas netas. Por motivos desconhecidos e que estão muito além de toda a sabedoria humana e, mais ainda, dos meus desejos, ocupei o lugar do pai nesse minúsculo rito de passagem, quando a menina calça o sapatinho de salto alto expressivo desses primeiros degraus de sua transição para o estado de adolescente ou de mocinha, como falamos afetivamente no Brasil. O sapato de salto alto, como sabe a Cinderela, é expressivo desses primeiros passos em direção ao complexo território dos gêneros.
No momento da compra, uma vendedora abriu o processo de ritualização, perguntando para a acanhada compradora se ela queria mesmo um sapato de salto alto. Ouvida a afirmativa, a lojista tocou no ponto crítico de todo rito de passagem, quando questionou se ela sabia mesmo andar de salto alto, o que a menina realizou em seguida – mas não sem alguma hesitação. Falo em ponto crítico porque, no meu entender, é a sustentação de um foco ou de um ponto de vista que, afinal de contas, engendra a ritualização, dramatizando – com as provas e os testes contidos nessas ocasiões – algo que, sem a força exagerada da atenção, faria parte da inconsciência geral com a qual somos embrulhados pela correnteza da vida.
No seu livrinho clássico sobre os rituais de passagem, Arnold Van Gennep, que descobriu e consagrou a expressão, bem como as etapas desses rituais, diz o seguinte sobre essas cerimônias da primeira vez
:
A primeira vez é que tem valor
, afirma um ditado popular, não deixando de ter interesse observar que não somente essa ideia é propriamente universal, mas traduz-se em toda parte com maior ou menor força, por meio de ritos especiais (ver Os ritos de passagem, tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, p. 147).
Vendo minha querida compradora calçar e dar seus primeiros passos de salto alto, eu a imaginei em outras caminhadas. A primeira dança, abraço, beijo, enamoramento, e tudo o que chega com essas coisas e, de dentro do meu coração de avô, veio aquele primeiro desejo (misto de prece e esperança – as duas andam sempre juntas) de que todas as suas estreias fossem repletas de beleza e verdade.
* * *
O importante, o arriscado, o fatal, o que tem a ver com entrega e doação sempre implica uma primeira vez, mesmo que tenha sido muitas vezes realizado. Um importante empresário brasileiro ficou impressionado com meu nervosismo numa conferência sobre o Brasil na Universidade de Oxford.
– Mas você faz tanto isso...
– É justamente por causa disso que estou nervoso...
* * *
Toda primeira vez sinaliza um empacotamento de vida. Toda estreia assinala a possibilidade de (re)fazer uma história que, por ter início, meio e fim, como descobriu com esplêndida ingenuidade Van Gennep, aniquila um pouco a indiferença de um mundo sabidamente contínuo e, por isso mesmo, indiferente ao pipocar de vida e de paixão que eventualmente surge em seu seio.
Porque, como sabe a moça do sutiã e vai saber a menina do sapato alto, todo começo implica uma metade e, depois, um fim. Só o eterno e o nada não têm primeira nem última vez. Sabendo ou não, Van Gennep e tantos outros que depois dele (inclusive eu) falaram em ritual como uma máquina de promover diferenças face a uma realidade indiferente (a vida) apenas exprimiam aquilo que um Thomas Mann imbuído de Schopenhauer disse de forma mais cabal e completa pela boca de Felix Krull, seu herói mais desconstruído e malandro:
Dizendo que se a vida era apenas um episódio, isso a tornava mais simpática a mim, eu expressara o mais humano dos pensamentos. Em lugar de achar que a transitoriedade desvalorizava, era exatamente ela que conferia a toda existência valor, dignidade e beleza. Só o episódico, só o que tinha começo e fim era interessante e despertava simpatia, animado que estava pela sua condição de transitório. Mas tudo era assim – todo Ser cósmico era tocado pela efemeridade, e só o Nada era eterno e, por isso mesmo, não possuía alma nem merecia simpatia. O Nada do qual o Ser fora convocado para gozar e sofrer.
* * *
Acabo de escrever esse trabalho e encontro o Fonseca, o jardineiro branco e pobre do vizinho. Por ter a mania de me transformar em professor e oráculo, ele comenta:
– Eu estou muito desconfiado desse negão esquisito, candidato a presidente americano. Como é mesmo o nome dele? Obana?
– Barack Obama! – retifico imediatamente e, já que estamos no terreno familiar das pessoas, solto outro corretivo: – Esquisito é o Bush! Brancalhão que faliu a economia americana.
Esperto, o Fonseca imediatamente muda de assunto. Eu volto para o computador pensando: até o país mais poderoso do mundo tem a sua primeira vez...
A SETE PALMOS
De todos os simbolismos convocados pelo número 7 – esse algarismo ímpar e primo, divisível somente por 1 e por si mesmo e que, quando repartido, deixa (como seus irmãos de magia, o 3, o 9 e o 13) uma sobra, um resto que não pode ser alinhado nas fileiras paralelas promovidas pela bifurcação simétrica –, a associação com os palmos de terra é, de longe, a mais macabra, a mais triste e a menos desejada.
Não há quem desconheça esses sete palmos que medem a profundidade dos túmulos e o abismo desmesurado da morte. Todos temos uma impressão marcante da tumba recém-aberta ou preparada, recheada de terra virgem ou alcatifada de cimento e umidade, esse buraco de sete palmos que irá servir de cama e casa para aqueles que nos precederam naquilo que é o único evento capaz de nos igualar de modo exato, preciso, conclusivo, irremediável e substantivo: a morte.
Esses sete palmos que dividem os mortos dos vivos são a ponte que nos segrega e une a uma margem desconhecida e, pior que isso, que é impossível de explorar. Essa cova circunspecta, porque bem demarcada pelos lados e pelos fundos, pela qual se entra no chamado outro mundo. Cova que, como dizia Thomas Mann, nos obriga a falar baixo e andar na ponta dos pés.
Vinicius de Moraes, numa de suas elaboradas letras para uma bela canção popular, aborda os sete palmos pelo seu lado mais aterrador, quando entoa: Por cima uma laje/ Embaixo a escuridão/ É fogo, irmão!/ É fogo, irmão!
E por aí vai ele, convencendo pela lembrança desses sete palmos que fabricam o lado talvez mais aterrorizante e doloroso da morte, o de que temos um fim, daí a necessidade de fazer o bem e de colocar de quarentena não os prazeres do mundo, mas o dinheiro que engendra tanto mal. Já meu tio Marcelino associava a morte com a vida,