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A Tradução de quadrinhos no Brasil: princípios, práticas e perspectivas
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A Tradução de quadrinhos no Brasil: princípios, práticas e perspectivas
E-book499 páginas11 horas

A Tradução de quadrinhos no Brasil: princípios, práticas e perspectivas

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Sobre este e-book

A TRADUÇÃO DE QUADRINHOS NO BRASIL: Princípios, Práticas e Perspectivas, é o novo livro publicado pela Editora Lexikos.

A obra, dividida em três seções: uma história em construção, as especificidades e outros territórios, é organizada por Kátia Hanna e Denny Silva-Reis e cada capítulo apresenta discussões de feras na área de HQ. Além disso, há dois prefácios, um de Bruno Porto e outro de John Milton, e posfácio de Augusto Paim, que também divide um capítulo com Lea Hübner.

Na primeira parte, Kátia Hanna e Waldomiro Vergueiro, Érico Gonçalves Assis, Nilce M. Pereira e Paula G. Arbex fazem um mapeamento historiográfico do processo de tradução de HQ no Brasil.


Na segunda, Barbara Zocal Da Silva, Dennys Silva-Reis, Renata Leilão e Sabrina Moura Aragão discutem a tradução linguística de HQ, a tradução visual em HQ, como: formato, layout, letreiramento, imagens, e ainda o caso dos mangás

Na terceira parte, os capítulos de Alessandra Matias Querido, Elizângela L. Liberatti, Aline Alkmin Camargo Spicacci, Lea Hübner e Augusto Paim discutem temas como: a representação ficcional do tradutor e do intérprete nas HQs, acessibilidade de HQ para a comunidade surda, a publicação de grafic novel brasileiras no mercado alemão e ainda há uma proposta de ensino pautada na linguagem das HQs.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de dez. de 2020
ISBN9786599232121
A Tradução de quadrinhos no Brasil: princípios, práticas e perspectivas

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    A Tradução de quadrinhos no Brasil - Lexikos Editora

    Sobre super-homens, homens-morcego e mulheres-maravilhas: prefácio para um fértil diálogo sobre tradução de quadrinhos

    Dentro da dinâmica da cultura de massa do nosso mercado editorial, Moacy Cirne aponta a revista O Tico-Tico – publicada de 1905 ao início dos anos 1960 – como o primeiro dos momentos mais expressivos na evolução formal das Histórias em Quadrinhos no país por popularizar criações brasileiras de autores como J. Carlos, Luis Sá, Max Yantok, Nino Borges e Alfredo Storni, entre outros1. A publicação semanal, entretanto, se destacou também por tornar conhecidos no país dezenas de personagens estrangeiros como Mickey Mouse, Krazy Kat, Popeye e Felix The Cat, rebatizados, respectivamente, como Ratinho Curioso, Gato Maluco, Brocoió e O Gato Félix.

    Essa combinação de produção nacional – original ou reapropriada – e reedição estrangeira – ininterrupta e principalmente de origem estadunidense – se mostrou presente em todas as etapas da formação do mercado brasileiro de HQs. Em diversos momentos, observa-se a tendência dos editores brasileiros de ajustar, adaptar ou recriar o material gráfico estrangeiro para este mercado. Estas ações vão desde o decalque e a eliminação de quadros, diálogos e páginas – pelos mais variados motivos – até a tradução de nomes próprios de personagens.

    Foi a partir deste último item que se deu meu ponto de entrada no universo dos estudos da tradução de Histórias em Quadrinhos. Meu interesse mais recorrente como pesquisador tem recaído sobre os diferentes aspectos do Design Gráfico no campo das HQs. Ao realizar uma análise gráfica de logotipos das revistas em quadrinhos publicadas no Brasil no século passado, propus-me identificar em que contexto o logotipo Superman teria sido redesenhado como Super-Homem. O que sempre me intrigara, desde criança, era a engenhosidade de se inserir cinco letras – e um hífen! – em um espaço pensado originalmente apenas para três, quando Batman e Aquaman, por exemplo, mantiveram seus nomes, e logos, originais.

    O personagem foi o primeiro do gênero Super-Herói a batizar uma revista em quadrinhos com seu nome – tanto nos Estados Unidos como no Brasil – rompendo com a prática dos títulos temáticos das antologias, como Fun Comics, Detective Comics, Mirim ou O Gury. Em versões graficamente mais rudimentares que a atual, o logotipo Superman acompanha o personagem desde o primeiro quadro da primeira página do primeiro número da revista em quadrinhos Action Comics, onde fez sua estreia em 1938. No Brasil, ele foi denominado Superhomem (sem hífen) desde sua primeira aparição, no número 445 do suplemento A Gazetinha, datado de 17 de dezembro de 1938. Se nas capas de O Lobinho, no início dos anos 1940, a grafia alternava-se entre Superhomem e Super-Homem (o hífen só seria adotado permanentemente em 1952), nas capas dos primeiros números da sua revista publicada pela EBAL entre 1947-1983, as designações nos dois idiomas conviveram em contradição: em tamanho maior, o logotipo Superman identificava visualmente o título da publicação, enquanto uma versão traduzida Superhomem adornava o estratégico canto superior esquerdo acima da icônica vinheta do herói quebrando correntes.

    As pesquisas sobre tradução de Histórias em Quadrinhos não apenas me sustentaram nessa investigação sobre super-dualidade visual como me conduziram a muitas outras descobertas que, acredito, podem exemplificar um pouco da amplitude da contribuição que estes estudos oferecem a várias áreas do conhecimento.

    Por exemplo: para analisar as características gráficas dos logotipos de revistas em quadrinhos brasileiras batizadas com nomes de super-heróis estrangeiros, me amparei em trabalhos sobre as variadas técnicas de tradução usadas nas HQs e sobre os valores conotativos e descritivos essenciais à narrativa imbuídos nos nomes próprios dos personagens. Os resultados demonstram como as decisões de tradução impactaram o trabalho realizado nos departamentos de arte das editoras, atribuindo aos letreiristas a função de designers de logotipos: cerca de 30% dos projetos analisados passaram por processos de tradução visual mantendo as características gráficas dos logotipos-fonte (como no caso do Super-Homem), e mais de 40% foram alterados significativamente das matrizes originais, sofrendo redesign completos (como na maioria dos mais de vinte logos que o Homem-Aranha teve em suas passagens pelas editoras EBAL, Bloch, RGE e Abril)2.

    Essa produção substancial de logotipos não é a única prática do mercado editorial nacional que vem à luz com o auxílio das investigações sobre tradução de Quadrinhos. Os frequentes cenários de coexistência de diferentes nomes próprios de personagens oferecem ainda indícios das práticas de licenciamentos para publicação de HQs estadunidenses no Brasil. Apesar de veiculado no país desde 1940 pelo Grande Consórcio Suplementos Nacionais com o nome em sua forma original, Batman foi simultaneamente rebatizado como Homem-Morcêgo nas histórias publicadas na revista O Guri na segunda metade dos anos 1940, e como Morcego Negro no tablóide O Globo Juvenil, entre 1944-1948, e na revista Biriba, entre 1948-1951. Entre as décadas de 1920-1980, a maioria das negociações não era feita entre as editoras brasileiras e estrangeiras, mas com os representantes dos Syndicates e, em um segundo momento, com agências de distribuição e empresas de licenciamento. Isso resultou no Grande Consórcio Suplementos Nacionais obter as HQs publicadas na revista Detective Comics, o jornal Diário da Noite (proprietário d’O Guri) a ficar com as da revista Batman, e o jornal O Globo (que publicava O Globo Juvenil e Biriba), com as tiras dos jornais.

    ImagemImagem

    Nesta situação, a tradução converte-se também na faceta mais aparente de um campo de poder – o mercado editorial – definido em sua estrutura pelo estado da relação de forças entre formas de poder3, segundo o discurso de Pierre Bourdieu. Alguns casos ocorridos na década de 1970 ilustram isso com clareza. Detentora dos direitos de publicação das HQs da revista Daredevil entre 1969-1971, a EBAL publicou 31 números da revista do super-herói rebatizado como Demolidor. Quando a editora GEA adquiriu os direitos de publicação em 1972, optou por mudar o nome do personagem para Defensor Destemido pois a EBAL era dona do registro para publicações intituladas Demolidor – que não é nem tradução de um substantivo comum, nem adaptação morfológica de Daredevil. Demonstrando mais intensamente o conceito de campo formulado por Pierre Bourdieu – em que sua estrutura é determinada pelos agentes em proporção do volume de seu capital4 – as estreias na TV Globo das séries de animação Superamigos – estrelando, entre outros, a Mulher-Maravilha – e Os Quatro Fantásticos, respectivamente em 1975 e 1977, resultaram em mudanças nos nomes dos personagens nas revistas em quadrinhos – onde eram conhecidos como Miss América e Quarteto Fantástico.

    Esses desdobramentos das traduções visuais e linguísticas dos nomes dos personagens nos contextos sócio-culturais do mercado editorial estão correlacionados apenas a alguns dos desafios com que se deparam os profissionais de tradução de Quadrinhos no Brasil. Há ainda uma imensa pluralidade de questões de ordens culturais, tecnológicas, éticas, históricas e mercadológicas, muitas das quais são abordadas nos capítulos deste livro.

    Portanto, não são apenas as reflexões elaboradas sobre a confluência multimodal tão característica aos Quadrinhos que tornam esta obra vital no cenário atual das pesquisas científicas, mas principalmente a qualidade e a importância dos diálogos travados por esta área dos estudos da tradução com a construção ininterrupta da cultura brasileira. Neste mundo globalizado regido pela abordagem transmidiática, em que o suporte digital come o papel pelas beiradas – alterando a linguagem e os modelos de produção das HQs como quando estas se libertaram dos jornais e derramaram-se pelas páginas das revistas em quadrinhos – compreendermos o que o outro diz, sente e quer, torna-se cada vez mais imprescindível.

    Boa leitura.

    Bruno Porto

    1 CIRNE, Moacy. A Linguagem dos Quadrinhos: O universo estrutural de Ziraldo e Maurício de Sousa . 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1971, p.10.

    2 PORTO, Bruno. SUPERLOGOS: Identidade gráfica dos logotipos das capas de revistas em quadrinhos brasileiras de Super-Herói. Brasília: UnB, 2017, p.95.

    3 BOURDIEU, Pierre. La nobleza de estado: educación de elite y espíritu de cuerpo. Tradução de Alicia Beatriz Gutiérrez. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2013, p.369.

    4 BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia clínica do campo científico. Tradução de Denice Barbara Catani. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p. 24.

    Como comecei a gostar de HQ e graphic novels…

    Como todo menino li bastante gibi infantil quando tinha cinco, seis, sete anos, mas depois me tornei rato de biblioteca, e me concentrei na leitura de livros, nunca desenvolvendo gosto pelas histórias em quadrinhos. No King Edwards School, o melhor colégio para meninos de Birmingham, Inglaterra, não tivemos contato com HQs, e até Tolkien (que estudou no mesmo colégio) foi considerado baixa literatura. Entrei lá em 1967, com onze anos, e fiquei até 1974, quando fui estudar Letras na Universidade do País de Gales, em Swansea. Ainda era a época em que as histórias em quadrinhos tinham pouco prestígio. Após a influência de Dr. Frederic Wertham com Seduction of the Innocent (1954) e o Comics Code, as histórias em quadrinhos não eram mais cheias de violência e sexo, mas continuavam não sendo respeitadas em círculos acadêmicos. Não consigo me lembrar de ter visto em nenhuma ocasião um colega de classe lendo HQ, e nas aulas de literatura inglesa nenhum professor ousaria falar de HQ! A influência do crítico F. R. Leavis estava no auge. Os grandes romancistas ingleses eram Jane Austen, George Eliot, Henry James, D. H. Lawrence, e Joseph Conrad; e para Leavis os grandes poetas eram Gerard Manley Hopkins, William Butler Yeats e T. S. Eliot (Leavis não gostava dos Românticos). Essa grande literatura canônica havia herdado uma parte da grandeza de Shakespeare, a Bíblia da literatura inglesa. E eu seguia essa religião. Tínhamos que respeitá-la e adorá-la, e ignorar a literatura mais popular, que não merecia consideração.

    Vim para o Brasil no começo de 1979. Uma das muitas coisas que me chocou foi ver homens adultos no ônibus lendo gibis de Donald Duck e Mickey Mouse da Disney! Que país é esse?! Entrei na PUC-SP em 1981, e na USP em 1984, e dei aulas dos grandes autores de língua inglesa. Naquela época ninguém em Letras escrevia tese sobre histórias em quadrinhos, e os estudos sobre HQ ainda estavam engatinhando na ECA…

    Depois de fazer o mestrado na PUC-SP sobre o uso da forma interrogativa DO nas peças de Shakespeare, comecei a estudar a teoria da tradução. Meu livro O Poder da Tradução (depois Tradução: Teoria e Prática) está dentro do paradigma da tradução literária, mas meus estudos subsequentes me levaram para O Clube do Livro, que publicou livros mensais baratos, dos quais 50% eram traduções, para um público que não costumava comprar livros, a preços bastante baratos. A distribuição era feita pelo correio. O crítico mais importante para meu estudo foi André Lefevere, que criou o conceito de refração, uma obra canônica vai ser refratada de diferentes maneiras: Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes), de 1847, foi adaptado para o cinema várias vezes — o filme mais famoso sendo a versão de 1939 com Laurence Olivier e Merle Oberon, que usou somente a primeira parte do livro. Há versões condensadas em muitas línguas; peças de rádio; a canção Heathcliff de Kate Bush (1978) e hoje em dia videogames. E, claro, hoje em dia há graphic novels de todas as obras clássicas.

    Mas eu ainda não lia HQs. E não participei enquanto leitor do crescimento de popularidade das novelas gráficas nos anos de 1990, continuava embrulhado em Shakespeare e Co.. Me lembro com clareza da primeira vez que li uma graphic novel. Estava na casa do meu filho Thomas em Barcelona, uns seis ou sete anos atrás. Thomas nunca fora fã dos clássicos, mas lia graphic novels. Vi Maus. E li. Quase 50 anos depois da última vez que havia lido uma história em quadrinhos. Não tive uma epifania, mas a semente fora plantada, e entendi que uma graphic novel pode ser uma narrativa interessante. Pouco a pouco comecei a mudar de opinião. Li mais algumas narrativas gráficas longas. Participei de bancas de tese sobre a tradução de HQs; li os livros de Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos; aproveitei as ofertas na Feira de Livro da USP para adquirir várias graphic novels; aprendi um pouco sobre a sua história e tradição; e apresentei um trabalho em 2019 nas Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, na ECA-USP, sobre às adaptações das obras de Monteiro Lobato, D. Quixote das Crianças, Hans Staden, e Peter Pan, para HQ, cujos originais havia analisado em meu livro sobre as adaptações de Lobato, Um País se Faz com Tradutores e Traduções (2019).

    Comecei a me entrosar na área das HQs. E tenho muito orgulho de apresentar este leque de trabalhos de estudiosos brasileiros. Há uma variedade impressionante de artigos que demonstra a maturidade dos estudos sobre HQ no Brasil. Kátia Hanna e Waldomiro Vergueiro fazem um resgate histórico do desenvolvimento da tradução de histórias em quadrinhos no Brasil e seu relacionamento com os Estados Unidos. Outro estudo histórico é de Nilce Maria Pereira e Paula Godoi Arbex, detalhando os principais acontecimentos na tradução de HQ no Brasil. Érico Assis, um tradutor praticante de HQ, descreve o mercado atual e as perspectivas para o futuro. Uma parte desse mercado que está em pleno crescimento é a tradução e produção de mangás no Brasil, o assunto do artigo de Renata Leitão. Os fãs têm um papel de suma importância nos mangás, e Sabrina Moura Aragão analisa a importância de scanlation, as traduções produzidas por fãs.

    Dennys Silva-Reis mostra que a tradução de mangás não é só tradução linguística e descreve os outros elementos como inscrições, letreiramento, reconfigurações de imagem, coloração, e compilação, que são muito importantes na produção e tradução desse tipo de narrativa. Bárbara Zocal da Silva analisa as questões específicas de oralidade, nomes próprios, topônimos, jogos linguísticos e humor.

    Alessandra Querido Matias examina como os próprios tradutores são apresentados, de máquinas automáticas de tradução a tradutores humanos. Augusto Paim e Lea Hübner, que trabalham na Alemanha, discutem a publicação de graphic novels brasileiras no mercado alemão. Neste mercado pequeno os próprios tradutores também acabam trabalhando como seus próprios agentes.

    Aline Alkmin Camargo Spicacci discute os problemas de como a comunidade surda, especialmente as crianças, pode acessar uma história em quadrinhos. E, last but not least, Elisângela Liberatti faz uma proposta de como um curso em tradução de HQ pode ser integrado dentro de um curso de bacharelado no Brasil

    Os preconceituosos Leavis e meus professores de King Edwards School se revirariam nos seus túmulos se soubessem sobre a popularidade dos estudos sobre HQ, até na universidade, e que está devidamente sendo reconhecida como a Nona Arte!

    John Milton

    Uma história em construção

    Histórias entrelaçadas: a indústria norte-americana e a tradução de quadrinhos no Brasil

    Kátia Hanna

    Waldomiro Vergueiro

    Introdução

    No Brasil o sistema de quadrinhos teve como elemento formador e modelador a tradução de produtos vindos sobretudo dos Estados Unidos. A importação de quadrinhos foi responsável por introduzir gêneros (aventura, super-heróis, horror, entre outros), formatos (comic book, livro ou álbum), tipos de narrativas (como a graphic novel), de formas de distribuição (os syndicates, agências de distribuição de quadrinhos e outros produtos), mudanças nos pontos de venda (das bancas para as lojas especializadas e livrarias) e, de modo geral, pela criação de um mercado editorial que se assemelha (guardadas as devidas proporções de tamanho e faturamento) ao norte-americano.

    Do mesmo modo registramos a importação de histórias em quadrinhos de outros países, em especial europeus e asiáticos. Nossa primeira revista de quadrinhos, O Tico-Tico, lançada no início do século passado, indica a influência europeia, acomodando em suas páginas passatempos infantis diversos, além da arte sequencial. Já nestas primeiras décadas do século XXI a presença de peso de mangás em nossas bancas e livrarias anuncia que os quadrinhos asiáticos conquistaram os leitores brasileiros, sobretudo os jovens.

    Este capítulo busca destacar a influência dos quadrinhos estrangeiros no desenvolvimento da produção nacional não apenas no que se refere à sua linguagem, mas igualmente na sua forma de produção, distribuição e recepção. O que se pretende é apresentar os acontecimentos que colaboraram na urdidura dessa trama, destacando as circunstâncias e os personagens principais, realizando uma pesquisa histórica que destaque os pontos de contato com o produto estrangeiro, sua tradução e assimilação.

    Estados Unidos e Brasil, uma longa história

    Na Europa e nos Estados Unidos o surgimento dos quadrinhos como produto de consumo de massa teve nas revistas satíricas o primeiro suporte, posteriormente migrando para os jornais. As revistas humorísticas que circulavam pelos Estados Unidos na segunda metade do século 19 incluíam textos, ilustrações, caricaturas, chistes gráficos e também algumas das primeiras experiências dos quadrinhos norte-americanos (...) (GARCÍA, 2012, p. 59). No entanto, as revistas cômicas perderam terreno para a imprensa na publicação de quadrinhos a partir da guerra entre os jornais norte-americanos New York World, de Joseph Pulitzer, e o New York Journal, de Willian Randolph Hearst. Em 1895, um ano após começar a utilizar a prensa colorida, o jornal de Pulitzer publicou em seu suplemento dominical a tira Hogan’s Alley. The Yellow Kid, como ficou conhecido o personagem Mickey Dungan, alcançou grande popularidade. Sobre a gênese dos quadrinhos como produto de massa, escreve Moya:

    (...) foi com o boom da imprensa americana, a luta Pulitzer vs. Randolph Hearst (vulgo Citizen Kane), que os suplementos dominicais coloridos surgiram, acompanhando os jornais, na figura de Yellow Kid (O Menino Amarelo), com seu panfletário camisolão amarelo, desenhado por Richard Fenton (sic) Outcault no New York World, em 1895. (MOYA, 1977, p. 35, grifo do autor.)

    Os suplementos, em tamanho tabloide (33 x 28 cm), foram uma experiência única para os leitores. García (2012, p. 69) destaca que a difusão da imagem impressa e em cores, em um mundo onde não existia a televisão nem o cinema (...), mudou a imaginação do público. E foram esses suplementos que cativaram o jornalista Adolfo Aizen quando esteve em viagem aos Estados Unidos em 1933. Aizen descobriu que os suplementos aumentavam consideravelmente as vendas dos jornais e que o carro-chefe das vendas era o suplemento infantojuvenil. Nos encartes, leitores de todas as idades acompanhavam as aventuras de Buck Rogers, Tarzan e outros heróis de aventuras. O jornalista importou a ideia dos suplementos para o Brasil, dando início ao longo processo de desenvolvimento do modelo norte-americano de quadrinhos no mercado brasileiro, tendo na tradução a ponte entre línguas e culturas.

    Por aqui, no século 19, a crítica política e social também havia sido registrada em caricaturas e em publicações humorísticas. Angelo Agostini, autor de As Aventuras de Nhô Quim, ou Impressões de uma Viagem à Corte, publicado no jornal Vida Fluminense a partir de 1869, é um dos artistas que se destacaram na crítica aos acontecimentos do Segundo Império; suas historietas são consideradas as primeiras do gênero no Brasil e talvez do mundo. (VERGUEIRO, 2011, p. 14).

    Quarenta anos depois, Agostini colaborou na criação da capa da primeira revista infantil a publicar histórias em quadrinhos no Brasil, O Tico-Tico. A revista circulou entre 1905 e 1960 e, ao estilo das publicações europeias, oferecia às crianças não apenas quadrinhos, mas passatempos, poemas e matérias sobre datas comemorativas. O personagem mais famoso da revista foi Chiquinho, cuja identidade norte-americana ficou desconhecida da maioria dos leitores por mais de quarenta anos. Acreditava-se ser uma criação nacional. Na realidade, o garoto travesso era Buster Brown, criado por Richard Felton Outcault, o pai do Garoto Amarelo. O Tico-Tico deu início ao direcionamento das histórias em quadrinhos para o público infantil, diverso do público majoritariamente adulto das publicações humorísticas do século anterior. Entretanto, foi com a importação do modelo norte-americano de quadrinhos que a mudança no público leitor se aprofundou (VERGUEIRO, 2011, p.17).

    Adolfo Aizen era funcionário de Roberto Marinho no jornal O Globo. Quando retornou ao Brasil, o jornalista tentou convencer o patrão de que os suplementos eram um negócio lucrativo. Roberto Marinho não se empolgou com a ideia, alegando falta de recursos e de patrocinadores para bancar o projeto. Seguindo conselhos de amigos, Aizen foi procurar o diretor do jornal A Nação, o capitão e chefe da polícia de Getúlio Vargas, João Alberto Lins de Barros. A proposta de publicar o modismo americano foi prontamente aceita. Nascia o Suplemento Infantil que, juntamente com a Gazetinha do jornal paulista A Gazeta, lançada alguns anos antes, ajudou a popularizar os quadrinhos norte-americanos entre o público leitor brasileiro ao lançar os quadrinhos que faziam grande sucesso nos Estados Unidos naquele momento, como Buck Rogers, Agente Secreto X-9 e Flash Gordon. De acordo com Gonçalo Junior,

    No ano seguinte, Aizen traria Mandrake, Brucutu, Príncipe Valente, Tarzan, Brick Bradford, Pinduca, Rei da Polícia Montada e até mesmo histórias inéditas de Walt Disney, que começava a chamar a atenção pelo perfeccionismo em cinema de animação. (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 310)

    A partir da introdução do modelo norte-americano, Waldomiro Vergueiro ressalta que:

    A trajetória das histórias em quadrinhos no território brasileiro passaria pelos mesmos percalços enfrentados em outros países, sendo idolatrada por adolescentes e desacreditada pela maioria dos educadores e intelectuais. (VERGUEIRO, 2011, p. 6)

    Os lançamentos norte-americanos eram rapidamente importados para o Brasil por meio dos syndicates, distribuidoras de histórias em quadrinhos e de features (ilustrações, artigos e reportagens). Em artigo sobre a formação do mercado editorial de quadrinhos no Brasil, Dennys Silva-Reis (2012) explica que em alguns syndicates havia tradutores responsáveis pela adaptação das histórias, visando à fácil assimilação do produto pelos leitores brasileiros. Daí resulta, por exemplo, ser comum a tradução dos nomes dos personagens.

    Enquanto isso, nos Estados Unidos, os suplementos se espalhavam pelos jornais de todo o país e surgiam alguns aspectos das histórias em quadrinhos que iriam definir o gênero, como a continuidade das histórias, tendo como fio condutor um personagem central. As séries de aventura fizeram grande sucesso e, no final da década de 1930, ganharam um reforço com as aventuras dos super-heróis, oriundos das revistas em quadrinhos. São desse período Popeye, Buck Rogers, Tarzan, Dick Tracy, Mandrake, Fantasma, Flash Gordon, Super-Homem, entre outros.

    Nessa época, as histórias em quadrinhos deixaram as páginas dos jornais e ganharam um suporte próprio. A ideia de dobrar as páginas dos noticiários ao meio e nelas imprimir duas páginas de quadrinhos em tamanho reduzido nasceu como uma peça publicitária na gráfica Eastern Color Printing Company em 1933. No novo formato foram impressos os exemplares de Funnies on Parade, para serem distribuídos aos clientes de fabricantes de produtos de higiene. A princípio as revistas reuniam as séries publicadas nos jornais.

    A independência dos jornais e das revistas de humor possibilitou que os quadrinhos apresentassem histórias mais extensas. Foram nos cadernos grampeados, medindo 17x26 cm, coloridos e com um número de páginas entre 32 e 64, que os super-heróis alçaram voo, sendo lidos por mais de 50 milhões de pessoas em 1942. (BENTON, 1989)

    No Brasil, a transição para a revista em quadrinhos tem início quando o Suplemento Infantil deixa de ser encartado no jornal A Nação e passa a ser comercializado avulso, com o novo nome de Suplemento Juvenil. O sucesso da publicação de Aizen despertou a inveja de seu antigo patrão, Roberto Marinho, que em 1937 decidiu fazer seu próprio jornal de quadrinhos, O Globo Juvenil, que contava com as traduções pouco ortodoxas de Nelson Rodrigues.

    Alfredo Machado fundou a Agência Distribuidora, em 1939, empresa que muito tempo depois transformou-se na Editora Record. Nas décadas seguintes, traduziu e enviou aos clientes e à imprensa artigos contra a censura dos quadrinhos, embora, como veremos adiante, seu esforço para defender os gibis tenha sido em vão. Foi ele o responsável pela elaboração do regulamento e do selo do código de ética que as grandes editoras brasileiras usariam em suas publicações para driblar a intensa campanha contra os quadrinhos na década de 1950, similar ao selo que as editoras norte-americanas introduziram e estampavam em suas revistas em quadrinhos pela mesma época (GONÇALO JÚNIOR, 2004; NYBERG, 1998).

    Antes de a campanha contra as revistas em quadrinhos causar a autorregulação da indústria e afetar o mercado de quadrinhos, o fim da Segunda Guerra Mundial contribuiu para o declínio nas tiragens das publicações de super-heróis nos Estados Unidos, tendo sobrevivido apenas os mais populares: Superman, Batman e Mulher-Maravilha. As histórias do Capitão Marvel deixaram de ser publicadas em 1953. No entanto, o declínio desse gênero não inibiu o surgimento de outros, como os funny animals, westerns, policiais, românticos, histórias de terror etc.

    No Brasil, a década de 1940 foi palco da acirrada disputa entre Aizen e Roberto Marinho, fato que acabou colocando mais publicações nas bancas. Aizen lançou uma revista de quadrinhos em formato meio-tabloide, a Mirim, que logo foi imitada pela Globo com a publicação da revista Gibi. A revista fez tanto sucesso que gibi se tornou a forma de os brasileiros designarem qualquer revista de histórias em quadrinhos. (SANTOS et al, 2010)

    A refrega entre Aizen e Marinho tornou-se definitiva quando o proprietário de O Globo comprou os direitos de publicar a maioria dos personagens veiculados pelo Suplemento Juvenil, provocando seu fechamento em 1945. De acordo com Vergueiro, com o fim das edições do Suplemento Juvenil, iniciou-se uma nova fase no mercado de editoras de histórias em quadrinhos no Brasil,

    marcada pelo aparecimento de editoras especializadas na publicação de histórias em quadrinhos. Essas editoras estabeleceram-se principalmente na região sudeste do Brasil, ou seja, nos estados mais desenvolvidos economicamente, São Paulo e Rio de Janeiro, uma situação que ainda permanece relativamente inalterada, quase setenta anos depois (VERGUEIRO, 2011, p. 22).

    O Grande Consórcio de Suplementos Nacionais foi incorporado pelo governo de Getúlio Vargas. A decisão de Aizen de vender a empresa e mudar de ramo havia sido reforçada por uma pesquisa do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), do Ministério da Educação. No relatório, concluiu-se que, além do conteúdo inapropriado veiculado pelos quadrinhos (violência e erotismo), havia uma elevada taxa de ‘estrangeirismos’ e de falhas ‘sensíveis’ de redação imperfeita ou descuidada (erros gramaticais ou ortográficos), traduções incorretas e abuso de gíria, que atingiu 13% do total das revistas examinadas. (GONÇALO JUNIOR, 2004, p.115). O relatório causou imediata reação na imprensa e entre os educadores, que passam a criticar a ganância dos editores.

    Adolfo Aizen fundou a Editora Brasil-América Ltda (EBAL), em 1945. A editora foi, por mais de 30 anos, uma das mais bem-sucedidas da América do Sul, sendo a responsável pela popularização de muitos personagens dos quadrinhos americanos, entre eles Batman, Super-Homem e Mulher Maravilha. Os autores nacionais também encontraram na EBAL espaço para desenvolver seus personagens, com destaque para as adaptações de obras importantes da literatura brasileira para os quadrinhos, na coleção Edição Maravilhosa, composta, originalmente, por traduções das histórias publicadas na revista norte-americana Classics Illustrated, da Editora Gilberton (BORGES, VERGUEIRO, 2014). A Rio Gráfica e Editora (RGE), de Roberto Marinho, se manteve a maior competidora da EBAL no ramo dos quadrinhos.

    Outras editoras foram importantes na década de 1940. Entre elas a La Selva, de São Paulo, responsável pela publicação de revistas de terror. A editora, cuja origem foi a banca de jornais e a distribuidora da família homônima, editou títulos como a revista Terror Negro, que no início trazia um super-herói norte-americano e depois, com o fim das histórias desse personagem, passou a publicar histórias de terror lançadas pelas editoras norte-americanas (VILELA,2009). Nos anos 1940, despontou, também, a Editora O Cruzeiro, responsável pela edição da revista de notícias e variedades mais importante da primeira metade do século 20, O Cruzeiro. A editora publicou títulos infantis como Luluzinha, Bolinha, Gasparzinho, Manda Chuva e Zé Colméia. Todas, provenientes do mercado de quadrinhos norte-americano.

    Nos Estados Unidos, foram comercializadas centenas de milhões de revistas de quadrinhos por ano durante a década de 1950. As histórias de amor, crime e terror faziam enorme sucesso. Na EC Comics, artistas como Harvey Kurtzman e Bernard Krigstein produziam obras voltadas para os adultos, inovando na linguagem. Entretanto, o momento criativo e lucrativo dos quadrinhos foi interrompido quando a arte sequencial foi acusada de causar danos psicológicos às crianças pelo psiquiatra Fredric Wertham, que em 1954 lançou o livro Seduction of the Innocent. Apenas entre 1954 e 1955, a venda de comics caiu em 50% nos Estados Unidos (NYBERG, 1998).

    O resultado da campanha contra as histórias em quadrinhos nesse país foi a autorregulação da indústria, com a elaboração do Comics Code. A finalidade era a de estabelecer um código de ética. Algumas das normas proibiam retratar pejorativamente autoridades, sempre castigar os criminosos e não usar as palavras terror, crime ou horror nos títulos das publicações. Com a aplicação do Comic Code, os quadrinhos voltaram a ser um produto infantil, porém, como veremos adiante, a contracultura irá ajudar a manter acesa a chama dos comics.

    A perseguição contra os quadrinhos se espalhou por outros continentes. A Grã-Bretanha aprovou uma lei que vigorou entre 1955 e 1959 proibindo que quadrinhos nocivos dos Estados Unidos fossem importados, em especial os de terror; na Holanda, queimaram revistas em fogueiras; na França do pós-guerra, houve a promulgação de uma lei, em vigor até hoje, para proteger jovens contra a influência corruptora dos quadrinhos norte-americanos; na Espanha, o regime do ditador Francisco Franco garantia uma censura constante, mas após 1952 houve o recrudescimento das leis que regulamentavam os quadrinhos; o Canadá proibiu a publicação dos gêneros de terror e crime; no Japão, a presença norte-americana no pós-guerra causou protestos contrários aos quadrinhos e às revistas eróticas. (GARCÍA, 2012)

    No Brasil, os primeiros ataques aos quadrinhos vieram dos padres, no final da década de 1930, que importaram da Itália o argumento de que os quadrinhos norte-americanos desnacionalizavam as crianças. Sob o regime do ditador Benito Mussolini, os educadores italianos se esforçavam para banir os quadrinhos americanos. Na década de 1940, ocorreram em nosso país acalorados debates sobre a influência perniciosa dos quadrinhos. O jornalista Carlos Lacerda considerava as revistas em quadrinhos um veneno importado, publicadas cada vez mais por comunistas. A revista Seleções do Reader’s Digest, por sua vez, publicava reportagens alertando os pais de que, nos Estados Unidos, a leitura de revistas em quadrinhos aumentava a criminalidade entre os jovens. O divisor de águas na campanha contra os gibis no Brasil, entretanto, foi a briga entre Roberto Marinho e Orlando Dantas, proprietário do Diário de Notícias, pelo mercado de jornais (Gonçalo Junior, 2004).

    Refregas à parte, o episódio da censura aos quadrinhos no Brasil foi longo e envolveu diversos personagens da vida pública: religiosos, escritores, jornalistas, políticos, educadores, donos de jornais. O debate atravessou o governo de Getúlio Vargas (1951-1954) e prosseguiu até o golpe militar, em 1964. A perseguição aos quadrinhos teve seus piores momentos quando foi criado o Comics Code nos Estados Unidos, mas, assim como lá, no Brasil a censura nunca chegou a ser imposta pelo governo. Nos dois países, o que houve foi uma autorregulação das próprias editoras, por receio de uma censura imposta de fora. No Brasil, a primeira a tomar a iniciativa foi a EBAL,

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