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Pandemia e neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal
Pandemia e neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal
Pandemia e neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal
E-book290 páginas4 horas

Pandemia e neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal

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Sobre este e-book

Como pensar a experiência da morte na pandemia e suas consequências? Precisamos refletir a importância dos trabalhos de luto e melancolia como estratégias contra esse projeto que reduz a morte a uma mera expropriação da vida do outro e repensar a vida em comum. Em um cenário no qual o desejo de morte é política de poder, situar as consequências subjetivas e sociais para a experiência da morte apenas no campo da depressão reforça as condições de expansão da precarização do laço social. Ao mesmo tempo que o neoliberalismo promove a matança como um desejo, ele retira da morte a possibilidade de ser uma experiência de socialização.

Este trabalho traz uma análise de como o neoliberalismo empobrece as condições de trabalho de luto em relação às perdas por morte e como isso se atualiza na pandemia do novo coronavírus. Este empobrecimento, longe de ser uma contingência, é um dispositivo importante para manter o sujeito sempre produtivo e, assim, continuar sustentando os princípios do neoliberalismo sem interrogação sobre seus pilares: a desregulamentação dos mercados; a concorrência; o isolamento dos sujeitos em relação ao laço social comunitário; o endividamento e a culpa concomitante que ele gera. A análise aqui é apresentada a partir das declarações do presidente do Brasil — mas não somente dele — sobre o enfrentamento da pandemia, quando esse empobrecimento da experiência da perda por morte é constantemente afirmado em nome de uma retomada da economia, pouco importando se as pessoas podem morrer ou não. Em contraponto a isso, afirma-se a necessidade de retomada do que Freud chama de trabalho de luto e do trabalho melancólico — inspirado em Enzo Traverso, são trabalhos coletivos e políticos e não individuais. Este duplo trabalho seria importante para colocarmos um tempo de suspensão e pensarmos sobre o desejo de morte que permeia o neoliberalismo e se atualiza dramaticamente durante a pandemia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de abr. de 2021
ISBN9786586464405
Pandemia e neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal

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    Pré-visualização do livro

    Pandemia e neoliberalismo - Roberto Calazans

    FolhaRosto

    PANDEMIA

    E NEOLIBERALISMO

    A melancolia contra o novo normal

    REVISÃO

    Milene Couto

    CAPA

    Arte sobre fotos de Billie Grace Ward

    e Marcos Nunes (Flickr)

    DESIGN E DESENVOLVIMENTO

    Patrícia Oliveira

    ISBN

    978-65-86464-40-5

    © 2021 MV Serviços e Editora.

    Todos os direitos reservados.

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    facebook /morulaeditoral

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    SUMÁRIO

    Table of Contents

    [CAPA]

    [FOLHA DE ROSTO]

    [CRÉDITOS]

    [INTRODUÇÃO]

    CAPÍTULO I - Negacionismo da pandemia, banalidade da mortandade

    CAPÍTULO II - Experiência da morte como socialização e seu empobrecimento contemporâneo

    CAPÍTULO III - Relatório da ONU sobre a depressão ou da pressa em tornar todos doentes mentais na pandemia

    CAPÍTULO IV - Razão neoliberal ou a produção de sujeitos sofredores

    CAPÍTULO V - Novo normal: velhas assombrações

    CAPÍTULO VI - Luto e melancolia mais uma vez

    CAPÍTULO VII - Uma terra melancólica: uma terra da morte

    CONCLUSÃO - Uma melancolia política contra a politização da melancolia

    [REFERÊNCIAS]

    [SOBRE O AUTOR E A AUTORA]

    INTRODUÇÃO

    Se houver tristeza que seja bonita

    Tristeza feia o poeta não gosta[1]

    A morte impõe sua sombra sobre o mundo na pandemia do novo coronavírus. Essa sombra nubla os limites do tempo – passado, presente, futuro – deixando somente à vista o terror, o medo e a angústia. Seja pelas mortes e perdas que causou, seja pelo presente incerto, suspenso na expectativa de normalidade, seja pela ameaça das perdas futuras, subjetivas, afetivas e econômicas, seja pelo medo da contaminação que pode vir a qualquer momento por um deslize nos cuidados, nos obrigando a manter o outro e o horizonte de futuro à distância, imersos na imobilidade do momento, suspensos em um indefinido instante de ver. Essa sombra se faz onipresente em todos os assuntos cotidianos: quantos morreram e quantos se recuperaram? Quantos vacinados ou quando todos se vacinarão? Há medicamentos ou não há medicamentos? Devemos fazer distanciamento social ou colocar a economia em primeiro lugar? Há colapso na saúde ou má gestão? Devemos abrir as escolas ou mantê-las em aulas remotas? Será que essa pessoa ao meu lado está contaminada? Sua onipresença torna o ar irrespirável desde março de 2019, nos obrigando a colocá-la em análise para buscar meios para que ares mais frescos possam circular pelos discursos.

    Essa onipresença da sombra, por outro lado, nos faz esquecer que a experiência da morte sempre foi um aspecto importante no processo de socialização. Lidar com essa contingência radical – a morte – é sempre tarefa do sujeito com a alteridade. No entanto, essa experiência da morte como socialização vem sofrendo alterações desde o século XX, com a configuração da modernidade como individualidade e não referenciada às experiências comuns ou ao sujeito do inconsciente como sujeito do desejo. Não bastasse isso, com a emergência do neoliberalismo e, como ele, a lógica concorrencial como elemento de constituição da subjetividade e a teodicéia da felicidade, temos uma tendência em tornar a experiência da morte como um evento que deve rapidamente ser esquecido. Essa recusa da morte como recusa da perda tem efeitos deletérios para a vida em comum: se a morte como experiência não é mais um fator de socialização, ela torna possível a banalização do extermínio do outro e, com isso, a matança generalizada daqueles que não se adequam à produtividade concorrencial, como ocorre tanto nas periferias das cidades quanto no capitalismo global.

    Diante dessa configuração da subjetividade contemporânea, a pandemia traz para a cena principal, mesmo com a precariedade da experiência contemporânea do luto, a morte como um real inadiável. Podemos dizer que ela retoma, por outro caminho, a questão da igualdade, tal como diz Jorge Aléman: O espectro da morte promovido pela pandemia inaugura um novo debate sobre a igualdade. O para todos da morte remete à pergunta sobre os distintos modos de acontecer a igualdade (Aléman, 2020b, p.20). Sim, a pandemia pode ser a possibilidade de promoção de um debate que estava, de certo modo, cancelado. Principalmente se levarmos em consideração que, se a morte é para todos, na pandemia ela continua ceifando as vidas mais vulneráveis no neoliberalismo, mesmo que seja uma ameaça real e aterrorizante para todos. Mas a morte pode ser a oportunidade de pensar nossas experiências de socialização em que ela possa, inclusive, ser considerada.

    No entanto, uma das preocupações mais patentes durante esse período é sobre a elaboração do luto: como é de conhecimento de todos, os funerais como rituais simbólicos para elaboração da perda estão limitados apenas a parentes próximos — ou, às vezes, nem mesmo a eles, devido à dificuldade de deslocamento durante a pandemia. Diante de tantas perdas sem luto, lidamos com os sintomas que vêm aparecendo com mais intensidade durante a pandemia: ansiedade e depressão.

    Ora, antes da pandemia de COVID-19, a depressão já era tida como uma pandemia que assolava todos em diferentes culturas. Uma pandemia que se agrava diante de outra. É sob esse fato que se encarna o mal-estar de nossa época, o grande sintoma social contemporâneo, que aponta para o fracasso em corresponder aos ideais civilizatórios de uma época, que exige a felicidade como uma permanente performance subjetiva otimizada.

    Assim, a tristeza, a solidão, a frustração, o desconsolo, a procrastinação, o desânimo e o luto desencadeados pela presença do vírus em nossa rotina precisam se transmutar em depressão para que nos seja permitido um poder protocolar de normatizar o que nos distancia do ideal de felicidade que após a pandemia precisa ser sustentado. A patologização do sofrimento é uma marca desse mundo que nos trouxe até aqui. A nomeação diagnóstica, que patologiza a sensibilidade do sujeito, precede a necessária medicalização na corrida contra o tempo no mundo neoliberal. O sujeito precisa o mais rápido possível se anestesiar em busca da permanente e ilusória felicidade. A tristeza, ao invés de ser reconhecida, é estancada, negada, silenciada, recobrindo o ponto de castração por uma nomeação diagnóstica que padroniza o sofrimento e considera a tristeza uma alteração química.

    Desse modo, se essas ditas doenças mentais vêm num continuum de crescimento desde antes da pandemia, então não seria o momento de se perguntar se isso ocorre porque elas ainda estão remetidas ao discurso que possibilita a sua presença? Afinal, sintomas, de acordo com Lacan, se por um lado têm algo subjetivo, próprio do sujeito, por outro lado nos apresentam também o que seria a subjetividade de uma época. O sintoma é o que aponta o laço entre o sujeito e a subjetividade de sua época, nos apresentando quais são os significantes primordiais da atualidade que fazem o sujeito repetir no laço social. O sujeito é, com o sintoma, uma objeção à subjetividade contemporânea, como diria Antonio Quinet (2000).

    Nesse sentido, pensar a saúde mental do sujeito, como nos propõe a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) em seus documentos, nos impele antes a refletir qual seria a subjetividade desta época e a ideologia a partir da qual o sujeito se apresenta com seu sintoma enquanto uma objeção.

    A depressão surge como objeção a uma subjetividade que se impõe enquanto obrigação de felicidade, de sucesso. A posição de sofrimento do sujeito diante do fracasso em fazer cumprir os ideais da civilização não pode recorrer ao luto necessário à elaboração do sujeito perante o Outro social. O luto é substituído pelas nomeações e prescrições que reordenam quimicamente os afetos, encurtando o tempo, afinal tempo é dinheiro e não se pode perdê-lo. O sujeito não pode incomodar a corrida das coisas rumo à realização da próxima meta. Assim, o sintoma do sujeito é tomado como uma patologia, que implica uma responsabilização individual endereçada ao sujeito, imputando a ele a tarefa de se reabilitar para ocupar novamente seu lugar na engrenagem social do discurso do capitalista.

    Nesse sentido, o que percebemos é uma preocupação com a saúde mental principalmente no que tange à necessidade dos sujeitos de se readequarem rapidamente à nova realidade. Façam lutos, mas façam rápido. Há uma medida invisível que calcula o tempo limite do sujeito com sua dor. Assim, achamos que tentar lidar diretamente com o luto pode ser uma maneira de obturar e responsabilizar individualmente o sujeito por algo que é não somente da ordem da intimidade, mas das relações do Outro com ele.

    Além do luto pelas vidas perdidas, o sujeito precisa se apressar a fazer o luto de um mundo tal como ele o conhecia. Estamos às voltas com futurólogos que anunciam a quatro cantos que nada será como antes. Por isso, quando o real da morte está perto demais, como na pandemia do novo coronavírus, parece-nos mais que oportuno retomar a pergunta que Freud fez em Luto e Melancolia: sabemos quem perdemos, mas sabemos o que perdemos naquilo que perdemos?

    O questionamento freudiano deve nos servir como norte, diante do tratamento dado à dimensão do trabalho do luto e às consequências subjetivas que se seguem a ele. Assim, quando vemos o tema ser tratado pela ONU, que externaliza sua legítima preocupação com a saúde mental em todo o mundo, podemos nos perguntar se essa preocupação leva em conta a dimensão da interrogação freudiana, na medida em que a experiência da morte não tem sido pensada mais como um espaço de socialização, e sim como uma perda à qual se segue uma resposta automática: a depressão. Perguntar sobre o que se perde na perda é a forma que o sujeito tem de desenvolver um trabalho de luto ou um trabalho melancólico que em nada tem a ver com a depressão, mas que coloca em cena a relação do sujeito com o Outro. Tratar como depressão é impedir que esse trabalho e esses questionamentos possam ser feitos.

    A pergunta freudiana também é pertinente diante dos arautos de uma nova normalidade ao final de uma pandemia: de que normalidade, então, devemos fazer o luto? Afirmar e admitir um novo normal, tal como ouvimos cotidianamente, não parece nos eximir de ter que responder à pergunta freudiana, já que de uma forma ou de outra seremos convocados a lidar com o efeito de saber ou não saber o que perdemos naquilo que perdemos. Essas perguntas, ou a falta delas, se aplicam não somente aos efeitos virológicos, mas principalmente ao que podemos chamar de desejo de morte que sustenta o laço social contemporâneo. Ou, dito de outra maneira: será que não podemos afirmar que a pandemia atualizou um discurso como laço social que se sustenta em um desejo de extermínio da alteridade? Não seria, então, o momento adequado para fazermos o questionamento sobre o que se perde ao se perder o normal? Que novo normal é esse que já se anuncia com tanta naturalidade e que, ao que parece, é muito parecido com o velho normal, em que as vidas precarizadas podem ser perdidas se não embarcarem em uma normalidade sustentada pelo discurso do capitalista em sua face neoliberal? Por que esse discurso em momento algum é questionado? E isso, como veremos, retornará na forma de assombrações do passado de uma sociedade que não consegue se haver com suas vítimas. Como diz Avery Gordon: O fantasma não é simplesmente uma pessoa morta ou desaparecida, mas uma figura social, e sua investigação pode conduzir àquele denso local onde história e subjetividade produzem vida social (Gordon, 1997, p. 8).[2]

    Como demonstramos em um texto anterior[3], o futuro ainda depende de um ato e, se não examinarmos as estruturas simbólicas precárias deste discurso que se atualiza na pandemia, os tratamentos propostos pela ONU podem ser apenas dispositivos para que os sujeitos permaneçam presos a esse discurso. É justamente disso que trataremos aqui ao nos perguntarmos do que faremos o luto, já que não há outro normal.

    Será que não devemos dar um passo a mais e fazer realmente o luto do normal, em vez de responsabilizar individualmente os sujeitos pelos seus sofrimentos e por suas perdas? Luto de um mundo que nos trouxe até aqui e que não pode ser imputado individualmente, solitariamente, a cada sujeito. Afinal, ao contrário do que se pensa, o luto e a melancolia não estão relacionados somente a sentimentos individuais, mas perpassam também, como Freud aponta, pelas perdas das ideias que reuniram os homens em torno de um ideal, e são ainda partes constituintes dos programas de identificação. Assim, o trabalho do luto e o estado de espírito melancólico implicam, necessariamente, algo que se perca na relação com o Outro, ou seja, a relação com a perda é uma relação entre o sujeito e o que se perde como objeto de investimento libidinal.

    Mas o que acontece quando estamos às voltas com afirmações que vêm sendo repetidas à exaustão de que o mundo não será mais como era? Ora, não podemos esquecer que esse tipo de fala em uma situação tal qual estamos passando — de total incógnita sobre o futuro — tem a capacidade de ser um ato performativo — ato de criar a realidade que, até então, não afetava ninguém.

    Nesse contexto, não seria também reportada uma outra modalidade de perda com a qual as pessoas teriam que lidar, a saber: com seu próprio modo de viver e conviver? Se a afirmação de destruição de um mundo, como vimos no ensaio anterior, pode dar ensejo a estilos paranoicos em política, podendo nos levar ao pior de um Estado totalitário por meio do aumento do controle digital, por um lado, e do amplo exercício da violência, por outro, o luto desse mundo não poderia implicar uma barreira ao totalitarismo por vir em sua face crua e não na face cínica de uma democracia, como a que vivemos hoje?

    Aqui já introduzimos um questionamento à ONU e ao seu relatório: é justificado que devamos cuidar da saúde mental e das pessoas. No entanto, será que devemos localizar a perda apenas nos indivíduos quando o que é dito é que estamos em uma situação inédita e que o mundo não será mais o mesmo? Nessa preocupação da ONU há a preocupação com o luto também do discurso? Entre a urgência de um luto que pretende restabelecer as condições de um discurso que nos trouxe aqui, a posição melancólica seria uma posição de resistência do sujeito?

    Talvez a melancolia, mais do que processar rapidamente e de maneira populacional o luto, seja um momento adequado para pensarmos o laço social. Afinal, se há uma suspensão temporal, talvez seja importante fazermos o luto também do discurso do capitalista neoliberal.

    Fazer o luto de uma modalidade de laço social — que já antes da pandemia precarizava a situação do sujeito, restringindo-o a uma identificação como empreendedor de si — é importante para dar condições de interrogação sobre esse mesmo laço. Ora, para a psicanálise só pode haver sujeito propriamente dito se ele puder colocar uma interrogação ao fluxo incessante de demandas do Outro. Por isso, quando nos deparamos com um relatório da ONU recomendando cuidados com a saúde mental, precisamos não somente nos preocupar com o momento em que estamos atravessando na pandemia, mas entender que tipo de laço social nos trouxe até aqui. Não se pode pensar em saúde mental pós-pandemia sem pensar qual o laço social, qual a subjetividade de uma época, que nos acompanhou aqui para que possamos modular uma resposta possível e com efeitos frente a esse discurso. O discurso do capitalista, a marca desse laço neoliberal, nos levou a uma situação em que não temos investimento em ciência; há uma precarização dos parques industriais dos países; os cuidados com renda são cada vez menores; os Estados, assim como os indivíduos, são levados a ter uma preocupação somente consigo em uma biografia sem história, em uma história sem transmissão na qual o sujeito seria engendrado somente por si mesmo.

    É o entendimento do laço que nos trouxe até aqui que determinará a modulação do tempo, do novo tempo: devemos saber se esse é um momento cínico em que se diz que o mundo não será o mesmo porque as coisas irão piorar em termos de laço social e de processos de subjetivação que tentam expelir o sujeito do inconsciente; ou se é o momento de não ir tão rápido assim com a necessidade da saúde mental para que possamos processar o que podemos e desejamos perder quando estamos às voltas com o sintagma o mundo não será como antes. Afinal, longe de fazer previsões de futurologia sobre que mundo viveremos, o importante é saber se desejamos perder o mundo em que estamos e o que perderemos para que realmente as coisas não sejam mais como antes.

    NOTAS

    1 Testamento de Partideiro" (Candeia).

    2 Ao que Stephen Frosh comenta: eles existem de fato, porque o que nos assombra é a realidade negada das vidas oprimidas, vidas desmoralizadas ou abreviadas, vidas marginalizadas e apagadas da história, vidas precárias tratadas como dispensáveis, mas impossíveis de serem totalmente esquecidas, precisamente porque seus efeitos perduram (2018, p. 58). Em parte, Freud e a psicanálise se dedicam inicialmente a um tipo de vida que é desmoralizada: a dos loucos em geral. Mas rapidamente passam a pensar no mal-estar na civilização que promove uma série de imposições de desigualdades.

    3 Disponível em: https://n-1edicoes.org/054. Acesso em: 06 ago. 2020

    CAPÍTULO I

    NEGACIONISMO DA PANDEMIA,

    BANALIDADE DA MORTANDADE

    Ninguém ouviu

    Um soluçar de dor

    No canto do Brasil[4]

    A pandemia do novo coronavírus continua sem tempo para acabar[5] e se apresenta em momentos diferentes em diversas partes do mundo. Ao final de maio de 2020, enquanto países da Europa estavam saindo cautelosamente da quarentena, o Brasil se tornou o epicentro da pandemia[6], com o maior número de mortes diárias e com uma expansão de casos que, ao que parece, está longe ainda de atingir o pico. Fala-se inclusive em uma segunda onda, uma vez que ainda não teria sido atingida uma taxa de imunização que poderia proteger o conjunto da população[7]. O Brasil se tornou o epicentro da pandemia mesmo sendo o país que realiza menos testes na proporção por milhão de pessoas — nossa contabilidade, em grande medida, se faz pelos óbitos. Em todo o mundo, a possibilidade de novas ondas, sem o conhecimento de um medicamento realmente eficaz e de uma vacina protetiva, traz sobre a população, por um lado, a necessidade de isolamento social e, por outro, a ameaça sempre presente da morte[8].

    No entanto, mesmo diante dessa situação, é notória a defesa por parte do governo, desde os primeiros casos no país, do uso de um medicamento que naquele momento não havia estudo comprovando ou negando sua eficácia — a hidroxicloroquina —, a ponto de determinar que os laboratórios do Exército o produzissem em larga escala[9]. A hidroxicloroquina se tornou a política de saúde exclusiva do governo federal brasileiro, sem investir em nenhuma outra medida protetiva, como o uso de estudos epidemiológicos, o aumento de leitos com respiradores ou a construção de hospitais de campanha. Trata-se de uma lógica de governo na qual se submete a dimensão da saúde à da economia, em que proteger cidadãos e pausar a circulação de sujeitos e de mercadorias implica prejuízo econômico simplesmente. Nesse sentido, para que as pessoas continuem sustentando a vida na normalidade que nos trouxe aqui — trabalhando e dando lucro para um sistema neoliberal —, é preciso investir em uma saída milagrosa, que a despeito de qualquer protocolo de saúde, precisa ser implementada. A hidroxicloroquina é a saída mágica, tal como o nióbio foi em algum momento para a saúde da economia do país, que parece ser a única que importa para esse governo[10].

    O presidente dos Estados Unidos também faz defesa enfática desse medicamento, a ponto de dizer que toma hidroxicloroquina todo dia como medida profilática, uma publicidade óbvia para sustentar um discurso que minimiza os riscos da pandemia, subjugando-os a uma medicação milagrosa. Nos Estados Unidos, essa investida teve o mesmo efeito que teve no Brasil quando a presidência dizia que a hidroxicloroquina era O medicamento para o tratamento da COVID-19: uma corrida às farmácias levando à redução da oferta do medicamento para as pessoas portadoras de doenças para as quais esse medicamento é realmente eficaz, como o lúpus[11].

    Voltando ao Brasil, o governo, para sustentar a insistência desse medicamento como política pública exclusiva contra a COVID-19, exigiu do primeiro ministro da Saúde que modificasse, na agência reguladora da saúde do país, a bula da hidroxicloroquina, incluindo nela a prescrição do tratamento para COVID-19[12]. Passado pelo primeiro ministro, foi feita uma nova demanda ao segundo ministro: a mudança do protocolo de atendimento para COVID-19, que em seus procedimentos deveria recomendar a inclusão da hidroxicloroquina tanto para casos graves quanto casos leves. Diante da recusa em acatar tal determinação, dentre outras questões, o segundo ministro[13] pediu demissão, acirrando a crise de falta de governança no ministério. Em seu lugar, foi colocado um general como ministro interino, escolha emblemática da ideologia de governo que militariza ou reduz a questões econômicas os problemas sociais e de saúde no Brasil. Com esse novo ministro, antes

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