Navegação inquieta: Ensaios de psicanálise
De Luiz Meyer
()
Sobre este e-book
Filho de imigrantes judeus agnósticos, Luiz nasceu no Brasil e frequentou uma escola brasileira. Crescendo no conforto de um lar burguês, cedo deu-se conta da injustiça de seus privilégios. Buscou conciliar uma profissão respeitável com sua paixão pela cultura.
Eis a história de suas múltiplas almas, a cujas reivindicações passou a vida tentando atender. A conciliação – possível, ou impossível – tornou inquieta sua navegação. O leitor poderá desfrutar das ricas paragens em que aportou: diversidade da clínica e sonhos; análise didática; acontecimentos históricos e políticos; cinema; poesia e literatura.
Marion Minerbo
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Navegação inquieta - Luiz Meyer
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Conteúdo
Agradecimentos 11
Apresentação 13
Prefácio 19
Parte I. A clínica e sua diversidade 35
Introdução 37
Abordando o sonho como uma questão: uma investigação sobre a função expressiva do sonho 41
Produção onírica e autoanálise 87
Conversando sobre a escuta analítica com um(a) jovem analista 99
Familidade e bissexualidade: dificuldades de integração 127
Prisioneiro de si mesmo: clínica do habitante do claustro 141
Parte II. Questionando a análise didática 161
Análise didática enquanto enactment institucional 163
A análise didática deve ser mantida? 193
Parte III. Contemporaneidade: um olhar crítico 201
Introdução 203
A mente totalitária 209
Analista desconcertado, analista desconcertante 231
Parte IV. Cinema: o feijão e o sonho 241
Introdução 243
Endereço desconhecido 247
Melancolia e a psicopatologia contemporânea 265
Parte V. Poesia: a luta com as palavras 279
Introdução 281
Resistência: a propósito do conflito estético 287
Parte VI. Literatura: a polissemia de Machado de Assis 311
A fatal secreção: notas sobre o conto Verba testamentária
313
Parte VII. Recreio: textos de circunstâncias 343
O corpo na psicanálise: sua especificidade do ponto de vista da história das ideias 345
Luiz Tenório Oliveira Lima
Comentário sobre o trabalho O corpo na psicanálise: sua especificidade do ponto de vista da história das ideias
, de Luiz Tenório Oliveira Lima 369
Breve nota sobre hipocrisia 381
Posfácio 387
Agradecimentos
Inúmeras foram as pessoas que contribuíram para a publicação deste livro. Seria impossível mencionar todas. Mas há algumas cujo apoio foi essencial e com as quais me sinto particularmente em dívida. Agradeço em primeiro lugar a Liana Pinto Chaves, a organizadora do livro, que de modo incansável e persistente, acompanhado de aguda percepção e de sua conhecida delicadeza, selecionou os artigos, organizou-os em capítulos, sugeriu correções e fez a ponte com a editora. Agradeço também ao nosso grupo semanal de discussão – Liana, Marion Minerbo e Maria Elena Salles –, que há mais de vinte anos se reúne e que, ao criar um clima de intimidade e franqueza, possibilitou que abríssemos, uns aos outros, nossos corações e nossas mentes. Agradeço a Elias Mallet da Rocha Barros, que, aceitando escrever o posfácio, deparou-se com uma formidável tarefa e produziu um texto generoso. Agradeço a Luiz Tenório Oliveira Lima, que cedeu gentilmente um artigo seu para ser incluído no livro. Agradeço imensamente a Elisabeth Cruz, minha secretária há mais de 35 anos, que adquiriu a capacidade de decifrar os meus garranchos, escritos com caneta tinteiro em cores variadas, e que de forma tenaz e perseverante consegue transformá-los em texto legível.
Evidentemente agradeço o diálogo com os pacientes e as trocas com colegas que estimularam a escrita.
E, como escrevo na parte final do prefácio, a segurança e o aconchego com que minha família – Regina, Diogo, Ana Elisa, Cibele e Clarice – me envolve são o alicerce deste livro.
Apresentação
Uma menininha pequena, de uns 4 anos, se debruça sobre o parapeito de uma varanda. Os pais correm, preocupados com uma queda.
Ela, tranquila, diz: Eu estava olhando o mundo
.
(Clarice, neta do Luiz Meyer)
Para começo de conversa (este livro foi, na sua confecção, assumindo um tom conversacional), é preciso que eu fale do prazer que foi ajudar o Luiz a lhe dar forma. Esta breve introdução é uma espécie de making of do livro, que reúne trabalhos dos últimos doze anos. O anterior – Rumor na escuta: ensaios de psicanálise – foi publicado em 2008, pela Editora 34.
O trabalho começou mais sério, mais sóbrio, e aos poucos foi assumindo um jeito mais espontâneo e descontraído. Ele foi se tornando uma espécie de grupo de estudos, de conversas muito interessantes, e se transformando à medida que avançava. Tornou-se uma costura autobiográfica do próprio Luiz, com seus vários depoimentos, impressões e lembranças antes de algumas seções ou artigos. O livro foi ganhando corpo e alma, ainda que cada texto tivesse corpo e alma próprios, mas agora era a integração da obra com a pessoa desse autor.
Em várias das notas introdutórias aos artigos, o Luiz fez uma viagem pelo túnel do tempo, costurando sua história. Daí, muito justificadamente, a menção à neta dele na epígrafe. Ela é a quarta geração de uma cadeia que começa – para fins destes escritos, mas o melhor seria continua – com a chegada dos pais do Luiz (d. Adela e sr. Salmen) ao Brasil, passa por Luiz e Regina, segunda geração, pelos filhos Diogo e Ana Elisa e pela nora Cibele, terceira geração, e chega à Clarice, quarta geração. Este é um livro confeccionado com amor e gosto pela vida. A mesma curiosidade da Clarice é o que constatamos nos escritos do Luiz: esse olhar curioso e atento ao mundo, nas suas variadas expressões, em que ele procura ler e dar sentido à experiência e ao cenário nos quais está inserido. Um olhar sempre orientado pela ótica da psicanálise. Não sei quem puxou
a quem – se foi a neta que puxou
ao avô ou o avô que puxou
à neta. O fato é que história de vida, família, trabalho, política etc. – está tudo muito bem entrelaçado. O fato é que o Luiz pratica a arte de prestar atenção
. Esta expressão não é minha, é do Hermínio Belo de Carvalho numa entrevista à CBN em 6 de abril de 2019.¹
Está aí o mundo para ser compreendido – tanto o mundo interno quanto o mundo externo. O livro mostra essa mescla do caráter criativo e autoanalítico.
Fizemos uma espécie de brainstorming para chegar ao título. Muitos foram cogitados e postos de lado. O primeiro foi Prisioneiro de si mesmo: ensaios psicanalíticos, que foi criticado por soar como autoajuda! Depois pensamos em Errâncias psicanalíticas, caminhante, andarilho, paisagens, ponto de fuga, territórios diversos, convergência etc., na tentativa de atinar com algo que transmitisse a ideia da diversidade dos seus interesses. Acabamos chegando a Navegação inquieta: ensaios de psicanálise.
Chegamos também a um formato: o livro foi organizado em sete seções que cobrem a grande gama de temas trabalhados pelo Luiz nestes últimos anos.
A primeira trata da clínica psicanalítica e de sua diversidade. Dois dos artigos abordam um tema muito caro ao Luiz, que é a análise dos próprios sonhos. Esses são artigos densos. Os demais versam sobre análise de família (de que Luiz é especialista e pioneiro aqui no Brasil), escuta psicanalítica e o conceito meltzeriano de claustro na análise de um paciente difícil (esse último no artigo também bastante denso Prisioneiro de si mesmo
).
A segunda parte junta dois artigos sobre o instituto da análise didática. A posição do Luiz de intensa oposição a esse tipo de análise de formação é bem conhecida, já vem de longa data e de publicações anteriores. Essa postura nunca o impediu de conviver com a nossa instituição, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), nem com a International Psychoanalytical Association (IPA), ele que facilmente poderia ter sido um excelente analista didata.
A terceira parte – Contemporaneidade: um olhar crítico
– reúne dois artigos de peso que nos mostram sua leitura sobre acontecimentos históricos e políticos, sempre pela ótica da psicanálise: A mente totalitária
e Analista desconcertado, analista desconcertante
.
A quarta parte, intitulada Cinema: o feijão e o sonho
, diz respeito a uma das atividades mais apreciadas pelo Luiz – a análise de filmes. Havia muitas, e tivemos de limitar a escolha a apenas dois filmes (Endereço desconhecido e Melancolia). Eu teria incluído alguns outros (Veludo azul e Le mani sulla città), mas não passaram pelo crivo do Luiz. Havia ainda a preocupação de o livro ficar grande demais.
A quinta parte – Poesia: a luta com as palavras
– nos apresenta o Luiz poeta. Não é exato dizer nos apresenta
, afinal ele já tem um livro de poemas publicado e muito bem-visto por críticos literários. O livro se chama Réu confesso: poemas reunidos, publicado pela Ateliê Editorial em 2010. Aqui, no presente livro, Luiz nos mostra o processo de criação e o vaivém do poeta na luta pela expressão mais límpida e precisa. Lendo o Luiz poeta e todos os seus demais escritos acompanhados das notas autobiográficas, lembro-me de alguns versos de Murilo Mendes,² tão apreciado por ele e citado na sua entrevista:
Não pedi para nascer, não escolhi meus pais
Fui imposto a mim próprio. O enigma permanece
e
O absurdo, nosso pão cotidiano,
Nossa técnica atual de autoasfixia
ou então:
Assumir a palavra refratária
Nossa única herança e território.
Os escritos do Luiz são isto: a respiração diante da condição humana e a psicanálise que nos instrumenta a lidar com ela.
A sexta parte, Literatura: a polissemia de Machado de Assis
, nos brinda com uma análise elegante, refinada, do conto de Machado Verba testamentária
.
A sétima parte – Recreio: textos de circunstância
– traz um saboroso comentário a um trabalho do nosso colega Luiz Tenório de Oliveira Lima (aqui incluído) e uma breve nota sobre a hipocrisia.
Como se vê, ele gosta de olhar o mundo. Termino dizendo, mais uma vez, que foi um prazer participar deste projeto.
Liana Pinto Chaves
Disponível em: https://m.cbn.globoradio.globo.com/media/audio/255045/aos-84-anos-herminio-bello-de-carvalho-se-consider.htm.
Murilo Mendes, Poesia completa e prosa (Nova Aguilar, 1994).
Prefácio
Choro do Poeta Atual
Deram-me um corpo, só um!
Para suportar calado
Tantas almas desunidas
Que esbarram umas nas outras,
De tantas idades diversas;
Uma nasceu muito antes
De eu aparecer no mundo,
Outra nasceu com este corpo,
Outra está nascendo agora,
Há outras, nem sei direito,
São minhas filhas naturais,
Deliram dentro de mim,
Querem mudar de lugar,
Cada uma quer uma coisa,
Nunca mais tenho sossego.
Ó Deus, se existes, juntai
Minhas almas desencontradas.³
Luiz Meyer, Liana Pinto Chaves, Maria Elena Salles e Marion Minerbo formam há mais de vinte anos um grupo de trabalho que se reúne semanalmente, às quartas-feiras, para se ajudar face a questões que os angustiam, surgidas em suas clínicas. Constituem um grupo de amigos que se ampara mutuamente em suas aflições, colegas que têm uma formação variada, o que possibilita o aporte de visões diferentes, cada um com suas particularidades, preocupações, alegrias e descobertas. Ao conversarem sobre este livro, ocorreu a Liana, Maria Elena e Marion propor a Luiz Meyer algumas perguntas baseadas no convívio amigo de tantos anos, e não exatamente na leitura dos artigos que o compõem.
Essas perguntas – sob a forma de entrevista
– teriam como finalidade servir de prefácio
ao livro. É algo parecido com aquela atividade que ocorre nos congressos Meet the Author da International Psychoanalytical Association (IPA), em que um analista-autor é entrevistado e dado a conhecer para o público.
Vida particular/biografia
1) Luiz, vamos propor uma série de perguntas sobre a sua trajetória na vida e na psicanálise. Por exemplo, para começar, qual a sua visão sobre a sua condição/identidade de ser judeu? Como é o seu judaísmo? Essa indagação é inspirada por aquela passagem da biografia de Freud em que ele narra a situação em que seu pai é agredido e humilhado por ser judeu e cai na rua. Nas palavras dele, naquele momento ele passou a se considerar judeu.
Antes de começar preciso esclarecer que a sugestão de fazer um prefácio composto de respostas às perguntas feitas por minhas colegas sobre minha trajetória não se prende à importância da minha obra ou de algum feito pessoal. Ela parte da suposição de que o modo como conduzi minha vida possa ser representativo da forma de pensar, do comportamento e da inserção social de um segmento de minha geração, e é neste sentido, documental, que ela pode ter alguma relevância. Mas um documental que se expressa ao modo da associação livre psicanalítica, e não em um nível unicamente factual.
Minha experiência não é igual à de Freud porque sou filho de emigrantes e nunca vivi no país de origem de meus pais, nunca presenciei esse tipo de cena que lá fazia parte do cotidiano. Meu pai saiu da Polônia por causa da situação econômica, que não permitia que um jovem inteligente, empreendedor e ambicioso como ele pudesse seguir uma carreira de nível superior. Mas esse impedimento era devido – e eu diria sobretudo devido – ao intenso antissemitismo que impedia os judeus de frequentar a universidade por causa do numerus clausus. Minha identidade judaica foi então se construindo por meio da escuta de relatos sobre o ambiente e os costumes de um lugar longínquo, onde meus pais haviam vivido antes de imigrarem.
Eles habitavam um shtetl – uma aldeia onde os judeus constituíam a maioria da população. A família de meu pai era muito pobre. Meu avô fabricava sabão e era também pintor de paredes. Tudo que me contavam ou que conversavam entre si à guisa de recordação mexia com minha imaginação: o pequeno armazém de meus avós maternos, em cuja porta ficavam barricas de arenque e pepino em salmoura; meu pai saindo de madrugada, de charrete, no rigor do inverno, para vender sabão de porta em porta; minha mãe colhendo framboesas nos bosques na primavera; a limpeza a fundo das casas junto com a compra anual de roupas novas para a festa do Pessach; meu pai orgulhoso porque era procurado para dar aulas particulares de matemática; e inúmeros outros pequenos fatos e detalhes que foram compondo o quadro de uma vida distante, presente nas conversas, mas completamente diferente de meu cotidiano. O respeito aos dias festivos, o gosto pela cozinha judaica, o arroz com feijão que nunca faltava, mais romeu e julieta de sobremesa, a presença na casa de um idioma estrangeiro acentuaram esta dualidade, esta experiência de estar sempre seguindo por duas vias que corriam em paralelo.
A compreensão do Holocausto, embora (ou porque) tenha acontecido somente em uma das vias, se abateu de modo fulgurante sobre minha casa e consequentemente tornou ainda mais acentuada em mim essa dupla presença. O trabalho A mente totalitária
certamente se deve a essas circunstâncias. Na nota que o antecede descrevo a forma trágica como a família de minha mãe foi exterminada.
2) Como foi para você ser brasileiro e filho de judeus europeus imigrantes?
A resposta vai se encadear com a pergunta anterior. Já mencionei a duplicidade de influências que marca minha vida. Esta pergunta vai permitir que eu a descreva de forma mais extensa. Assim, à semelhança de Freud, eu me definiria como um godless jew. Eu tinha, claro, consciência de pertencer a um grupo específico, para não dizer peculiar, minoritário, que, movido tanto pelas origens religiosas quanto pela origem emigratória, se mantinha unido.
Em mim, esse conjunto de circunstâncias se cristalizou sob a forma de uma identidade poética
. Meus pais pertenciam à primeira geração de judeus secularizados da Polônia. Em vez da yechiva, frequentaram a escola pública (que era de ótima qualidade), passaram a falar polonês e não mais iídiche. Do ponto de vista de crença ou de sua prática, eram laicos e jamais pensaram em me colocar numa escola religiosa de qualquer tipo. Nós nos identificávamos como judeus, mas éramos aculturados.
A aculturação e o aspecto laico – o judeu destituído de religiosidade – se exprimiam por meio do tipo de sociabilidade que eu ia assumindo. Fiz o primário numa escola perto de casa, o Externato Teixeira Branco, cujas donas eram normalistas solteironas (provavelmente quatrocentonas, mas sem pretensões aristocráticas), exigentes quanto à escolaridade e muito acolhedoras. Logo identificariam em minha mãe a estrangeira aflita, saudosa de sua família e necessitada de apoio. Usávamos um uniforme fora do padrão: a gola da camisa tinha um desenho particular e, no bolso, o bordado ETB
era obrigatório. No pátio da escola havia uma enorme jabuticabeira, rodeada por um banco de tábuas de madeira, que todo ano ficava coberta de frutos. Assim que eles ficavam maduros, as professoras os colhiam, e cada aluno ganhava um saquinho para levar para casa.
Quando meus colegas de classe se prepararam para a primeira comunhão, embora tivesse sido dispensado, eu pedi para assistir às aulas de catecismo: curioso sobre aquele outro mundo, queria me informar
. Era uma escola exigente e ao mesmo tempo tolerante: sentíamos que os professores gostavam e se interessavam por nós.
Anualmente festejavam-se a Independência e a República, num clima de patriotismo pedagógico. No 3º ano passamos a ler, capítulo por capítulo – uma vez por semana –, o livro As aventuras de Tibicuera, de Erico Verissimo, cujo subtítulo é que são também as aventuras do Brasil. O personagem central, um índio tupinambá que adquirira o dom da imortalidade, vai percorrendo toda a nossa história, participando de modo heroico de cada evento marcante, descrevendo-o segundo sua perspectiva. Já estava na Bahia quando por lá aportou Cabral, participou da primeira missa, lutou nas invasões francesas e holandesas, aliou-se ao Quilombo dos Palmares, conheceu Tiradentes e José do Patrocínio, e vai terminar seus dias em Copacabana. O Brasil me era oferecido – e descrito – como uma sucessão de duras lutas e conquistas esforçadas, por meio de um indianismo algo bélico e realista que contrastava com aquele presente no nosso romantismo. E em casa, voltando da escola, o sotaque carregado de minha avó.
O impulso final – e provavelmente definitivo – em direção à brasilidade se deu com a leitura dos livros infantis de Monteiro Lobato. Um lugar que jamais havia sido mencionado no meu cotidiano passou a frequentar minha imaginação: o sítio (nesse caso, o Sítio do picapau amarelo; judeus iam para Águas de Lindoia, Santos e, mais tarde, Guarujá, mas nada que tivesse a ver com o campo fazia parte do repertório). Córrego, pescaria, lambaris, animais falantes, saci-pererê, bolinhos da tia Nastácia, serões na cozinha formaram um universo cujo peso e cuja magia vinham contrastar com a paisagem urbana que compunha meu dia a dia.
O poema de Murilo Mendes, que serve de epígrafe a este prefácio, menciona o poeta atormentado pela existência de múltiplas almas, cada qual com sua reivindicação particular, o que as torna desencontradas. No meu caso – para o bem ou para o mal –, procurei atendê-las como se fosse possível uma conciliação.
3) Como você se definiria politicamente? Na frase que você citou do Machado de Assis, você alude à necessidade de ser um homem do seu tempo e do seu país
. Claro que todos o somos em alguma medida, para o bem ou para o mal, só que tem muita gente que não sabe disso.
Na medida em que procurei integrar as vias divergentes já mencionadas na pergunta anterior, fui me transformando – parodiando Raul Seixas – em uma contradição ambulante. Mas é justamente esta situação que me torna um homem de meu tempo e de meu país, principalmente se à proposta de Machado de Assis acrescentarmos também um homem de sua classe social e suas origens.
Sou filho de emigrantes que valorizavam muito a educação e a informação. O Estadão era presença matinal em casa desde que me conheço por gente. Minha mãe lia para mim, regularmente, capítulos variados do Thesouro da Juventude, uma coleção de vários volumes encadernados em azul, cheios de estampas (provavelmente comparáveis ao que foram os fascículos publicados mensalmente nos anos 1980 e 1990). A coleção continha informação sobre os mais variados assuntos, todos com viés educacional, visando aprimorar a cultura do jovem leitor.
Ajudado, pois, por minha mãe, eu ia alinhavando um saber diversificado e variado que abrangia múltiplos interesses: história, geografia, arte, ficção etc. Certa vez, em uma exposição de pintura – deveria ter uns 7 anos –, provocando espanto no público, apontei para um quadro e disse com naturalidade: Olha lá, mamãe, é Napoleão
. Havia também os mal-entendidos: folheando um volume do Thesouro, vi uma foto de uma cachoeira congelada. Perguntei a minha mãe, que se ocupava de alguma outra coisa: Mãe, o que é catarata?
. E ela de pronto respondeu: Uma doença dos olhos
.
Ser filho de emigrantes é também viver em um meio que prestigia os hábitos burgueses e as suas ambições e as projeta nos filhos. Prestígio tanto mais intenso quanto mais presente é a sombra do passado, da pobreza e da perseguição antissemita. A consciência de injustiça social corria paralela à necessidade de alçancar a respeitabilidade de classe. De um lado, meus pais sempre cultivaram e aprovaram meu interesse pelo campo da cultura
: crédito livre para comprar livros, assinatura de concertos, festivais de cinema, aulas particulares de francês e de inglês. As Bienais, visitadas religiosamente a partir de 1953, revolucionaram meu sentido estético, abalando os padrões a que estava habituado: lembro da Guernica, de Picasso (e de vários outros quadros de Picasso expostos conjuntamente). E também de Pollock, Henry Moore, Max Bill, Henri Laurens, Mondrian, Chagall e Morandi.⁴ Fiz contato ainda muito jovem (Guernica foi exposto em 1953, eu tinha 14 anos) com um universo maravilhoso e, sobretudo, desafiador.
Em paralelo à participação entusiasmada nesse mundo, havia a consciência de que eu deveria fazer um nome
, isto é, escolher uma profissão respeitável: por ser burguês, por ser judeu, por ser filho de emigrantes.
Mas essa mesma consciência levou-me muito precocemente a outra descoberta.⁵ Dei-me conta de que minha boa fortuna era devida inteiramente ao acaso. Ela não nascera do reconhecimento de algum feito que eu praticara e que justificaria – ou mesmo explicaria – o fato de que, em vez de ser uma criança retirante, pau de arara, eu vivia protegido e rodeado de conforto, sem ter em nada contribuído para obtê-lo. Um jogo do destino me pusera naquele lugar, do mesmo modo que poderia ter me colocado em outro, de caráter oposto.
Essa percepção, a modo de uma demonstração por absurdo, impunha a crença de que, paralela à minha, corria a vida de outra criança, que minha usurpação tornava destituída e sofredora. Essa culpa, desencarnada de um fato preciso e perenemente emergente, está na origem de minha definição política. Ser de esquerda – posição que nunca abandonei – não tem como origem uma formação ligada a leituras engajadas. Nasceu da necessidade de reparação.
4) O que o levou à psicanálise? Quando você escolheu fazer Medicina, já havia ali um germe dessa escolha futura?
É impossível deixar de fornecer dados biográficos
diante desta pergunta, o que, penso, não é bem o objetivo da entrevista, mais dirigida a conhecer minha visão de mundo e sua relação com a escolha da psicanálise.
As respostas anteriores deram uma clara visão dos conflitos que eu vivia. A escolha da profissão só poderia espelhá-los. A medicina era respeitável e carregada de prestígio; já o trabalho intelectual vinha impregnado de entusiasmo e alegria (mas, no meu ambiente burguês, não era considerado meio de vida
). Eu não sentia um pendor específico; não havia nada que me atraísse particularmente; poderia escolher qualquer profissão, mas escolhi medicina. Vivia um estrabismo de classe: um olho voltado para a carreira
e o outro para a agitação cultural da cidade. Era um aluno aplicado, mas desinteressado. Eu me consolava dirigindo o departamento cultural
do centro acadêmico, organizando jornadas de cinema, conferências e debates políticos. Ainda é possível ver, porque é esporadicamente exibido na TV, um telejornal em que apareço recebendo Sartre no aeroporto. Eu o convidei para vir a São Paulo falar sobre Cuba e o Apartheid.
Com todos esses antecedentes, é compreensível que eu tenha me interessado pela psiquiatria. Tive a sorte de trabalhar, ainda estudante, com dois psiquiatras brilhantes, Benedicto Arthur Sampaio e Edu Macho Gomes, recém-chegados da Europa, impregnados pelo clima de liberdade pós-guerra que ali vigia. Sua formação dinâmica contrastava – para não dizer se opunha – com a da psiquiatria oficial ensinada nas escolas médicas. Na psiquiatria me atraía o trabalho de prevenção. Então, na Escola Paulista de Medicina e também no hospital do Juqueri, depois de formado, fui trabalhar no Departamento de Medicina Preventiva. Em 1964 saí do Brasil e fui à Europa, onde fiquei por cinco anos. No primeiro ano estagiei no Hôpital Sant’Anne, em Paris, no serviço do Professor Delay, que ficara conhecido por seu pionerismo no tratamento de psicóticos com psicotrópicos. Era um homem distante, aristocrático, que não fazia contato com os jovens que lá trabalhavam.
Paris foi uma festa! Para além dos teatros, cinemas, concertos, debates, assisti e participei de um sem-número de atividades ligadas à psiquiatria e à psicanálise: do psicodrama às conferências de Minkowski; das apresentações de Lacan às de Green. No sótão do hospital, vestido com um terno prince-de-galles verde com colete, ele discutia casos de pacientes hospitalizados. Já seguia o padrão que se tornaria sua marca: anotações no quadro negro intercaladas com perguntas à audiência. Tinha então 37 anos e já era um brilho. No ano seguinte frequentei o serviço de Henri Ey, situado numa abadia medieval adaptada para funcionar como hospital psiquiátrico. Ficava numa pequena cidade, Bonneval, perto de Chartres, e lá fui morar com minha mulher. Henri Ey era considerado o psiquiatra mais importante da França, apesar de não ter funções acadêmicas. Havia escrito um manual de psiquiatria muito difundido, no qual expunha sua teoria: o organo-dinamismo, uma mistura de neurologia dinâmica com psicanálise (ou vice-versa). Era um personagem teatral (seu escritório ficava na antiga cozinha da abadia, dominada por uma enorme lareira), grandalhão, intenso, às vezes bufão, um verdadeiro artista quando conversava com os pacientes para fazer a anamnese. De lá fui para Genebra, onde trabalhei, já oficialmente contratado pela Universidade, como assistente, no Hôpital Bel-Air – Julian de Ajuriaguerra, eminente psiquiatra de origem basca, refugiado do regime de Franco, fora convidado para assumir o ensino de psiquiatria da Universidade e, por extensão, a assistência a toda a cidade. O hospital, composto de vários pavilhões, era uma maravilha: ficava um pouco afastado do centro, em meio a imensos gramados. O atendimento era moderno, de alto padrão; o acompanhamento dos pacientes pós-hospitalizados seguia uma linha preventiva. Aulas e discussões clínicas faziam parte do cotidiano. Durante minha estadia fiz análise com Marcelle Spira. A cidade era acolhedora e calma, e lá nasceu meu filho. De volta ao Brasil, nomeado professor da Universidade de Brasília, tentei quixotescamente implantar essa mentalidade na cidade, já que me encontrava bastante influenciado pelo movimento antimanicomial da época e pelo surgimento das comunidades terapêuticas. Convidei Virgínia Bicudo a ir regularmente a Brasília, visando estabelecer ali um núcleo psicanalítico. Fatores variados (a maioria ligada ao meio político universitário) fizeram com que eu me afastasse da academia e deslizasse para a psicanálise, que acabou se tornando a minha atividade professional básica.
Recordo que na primeira análise que fiz eu não tinha a menor preocupação com a veracidade das interpretações. O que me atraía era a beleza das construções, a astúcia do jogo interpretativo, a beleza dos achados inesperados. Eu vivenciava a análise como uma experiência ficcional.
O ensino médico da Universidade de Brasília era ministrado em um hospital na cidade-satélite de Sobradinho. O contato próximo com a população local atraiu minha atenção para a importância da dinâmica familiar na criação dos quadros psicopatológicos. Foi esse interesse que me levou a estudar terapia de família com uma bolsa de estudos na Tavistock Clinic, onde permaneci por três anos. Via pacientes, discutia casos, fazíamos seminários clínicos e teóricos focados nas questões familiares. Em paralelo, participava das atividades (seminários, apresentação de trabalhos) da Sociedade Britânica de Psicanálise, na qual fui aceito como membro temporário.
Nesse período empreendi uma reanálise
com Donald Meltzer. Toda essa experiência foi de enorme impacto, particularmente a análise. Ela me possibilitou um conhecimento consistente do pensamento kleiniano, uma abertura para a natureza e o funcionamento do mundo interno que desde então vem norteando minha forma de conceber e trabalhar a psicanálise.
Minha atual concepção deste trabalho pode ser bem representada por uma frase de Renoir citada por John Rewald na sua Histoire de l’impressionisme 2: En plein air on triche tout le temps
, o que pode ser traduzido como Ao ar livre a gente trapaceia o tempo inteiro
. Logo em seguida Rewald propõe uma interpretação dessa frase: A trapaça consistia simplesmente em fazer uma escolha ante a multiplicidade de aspectos que a natureza oferecia, a fim de transpor os milagres da luz em uma linguagem de cores e em duas dimensões; e também tornar o aspecto escolhido com os tons e a execução que mais se aproximassem da impressão recebida
.⁶
Os pintores impressionistas se propuseram a abandonar as regras rígidas prescritas para a pintura em ateliê, voltada para o realismo e o classicismo, para ir a campo, ao ar livre, e aí se deixar infiltrar (contaminar?) pela luz natural, cambiante, descontrolada
, que passou a exigir, para ser representada, uma técnica nova caracterizada pela pincelada nervosa e improvisada, e pelo uso da cor de modo impressionista... Isto é, segundo a impressão de como a percebiam (e não de forma realista). Os seus contemporâneos consideravam que aquilo que os impressionistas faziam era puro fruto de sua incompetência,