Reavida e escrita: notas de uma psicanalista
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Sobre este e-book
Ana Tereza de Faria Groisman
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Reavida e escrita - Ana Lucia Lutterbach Rodrigues Holck
I
ESCREVER
Vida ou morte
Há muito, fala-se da cura pela escrita: a escrita que salva da loucura, da morte ou do encontro com um real. Será? A escrita que me interessa, porém, não é útil, não pode ser prescrita, pois não escreve quem quer, nem se escolhe ser escritor, seus efeitos, para quem para a pensar sobre essas escritas, escreve ou lê, são imprevisíveis. Simplesmente, para alguns, é preciso escrever e, se tiverem coragem, deixarem-se levar, não pela salvação, mas pelo perigo, como confessa Clarice Lispector:
É perigoso [escrever] porque nunca se sabe o que virá – se se for sincero. Pode vir o aviso de uma destruição, de uma autodestruição por meio de palavras. Podem vir lembranças que jamais se queria vê-las à tona. O clima pode ser apocalíptico¹.
Portanto, a escrita à qual me refiro tem como característica não ser útil, não servir para nada, todavia ainda se pode verificar seus efeitos, um a um.
Há uma loucura em escrever que existe em si mesma, uma furiosa loucura de escrever, mas não é por isso que se cai na loucura. Ao contrário.
A escrita é o desconhecido. Antes de escrever não se sabe nada do que se vai escrever. E em total lucidez².
É o desconhecido de si mesmo, de sua cabeça, de seu corpo. Não é sequer uma reflexão, é um tipo de faculdade que se possui ao lado de sua personalidade, paralelo a ela, uma outra pessoa que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que por vezes acaba colocando a si mesma em risco de perder a vida³.
Para pensar essas duas escritas tomarei dois livros, ambos escritos em francês, mas em circunstâncias completamente diferentes e de autores não nascidos na França: Escrever⁴, de Marguerite Duras (1993) e A Escrita ou a vida⁵, de Jorge Semprun (1994). Copiei várias passagens e, em torno desses fragmentos, procurei articular a função da escrita em cada caso.
OS ESCRITORES
Há algum tempo me interesso pelo que há de comum entre a prática da psicanálise e a escrita. Leio e releio Marguerite Duras há muitos anos. Durante algum tempo, intrigou-me ter sido pega assim por uma escritora francesa. Fui tomada também por escritores brasileiros, mas a escrita de Duras tem um efeito diferente em mim. Talvez seja justamente por se tratar de uma língua estrangeira, de uma língua do Outro, cujo sentido integral sempre escapa, e o sem sentido. Nunca consegui falar correntemente outras línguas, mesmo assim leio e falo o que posso e gosto de fazê-lo, mas sempre com estranheza.
Nascida Marguerite Donnadieu em 1914, em Gia-Dinh, perto de Saigon, no Vietnã do Sul, na época Indochina, colônia francesa, Duras foi para Paris somente em 1932, aos 17 anos, para estudar Direito e Ciências Políticas na Sorbonne. Durante a Segunda Guerra, engajou-se na resistência francesa e filiou-se ao partido comunista, do qual se desligou em 1950. Ela deixou a Sorbonne e o comunismo, mas desde seu primeiro livro, Os Insolentes⁶, em 1943, ela nunca mais parou de escrever: Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca
⁷.
Escrever foi um livro feito em sua casa em Neauphle-le Château, adquirida com os direitos da adaptação de seu livro Uma Barragem contra o Pacífico⁸ para o cinema, como ela nos conta em Escrever. E acrescenta: essa compra precedeu à loucura da escrita
⁹. Ela passou 10 anos em absoluta solidão nessa casa, só ela e a escrita.
Jorge Semprun é uma outra história. Durante o exercício de transmissão da minha experiência de análise, interessei-me pela literatura do testemunho, especialmente dos sobreviventes dos campos de concentração na Segunda Guerra. Por isso, senti-me instigada quando o livro de Jorge Semprun, A Escritura ou a vida, foi mencionado pelos colegas Angela Bernardes e Ram Mandil, em uma conversa informal no intervalo de uma de nossas Jornadas anuais.
Filho de um diplomata espanhol exilado, Semprun nasceu na Espanha e muito jovem foi morar em Paris, onde iniciou seus estudos em filosofia e tornou-se escritor. Durante a segunda guerra, sua participação na Resistência Francesa resultou em sua detenção num campo de concentração. Ao sair do campo, ele foi para a Espanha franquista e lá se manteve clandestino trabalhando como membro do partido comunista. Durante 16 anos, ele quis esquecer o período passado no campo, e esqueceu. Para ele, durante 16 anos, escrever era se lembrar o que queria esquecer; era a morte. Para ele, a escolha era entre a vida e a escrita.
[...] voltei à vida. Quer dizer, ao esquecimento: a vida era a esse preço. Esquecimento deliberado, sistemático, da experiência do campo. Esquecimento da escrita, também. Na realidade, estava fora de cogitação escrever sobre qualquer outra coisa. Teria sido ridículo, talvez até ignóbil, escrever qualquer coisa contornando essa experiência.
Tinha de escolher entre a escrita e a vida, escolhi esta. Escolhi uma longa cura de afasia, de amnésia deliberada, para sobreviver.¹⁰
E mais adiante: Escrever era me recusar a viver.
[...] decidi escolher o silêncio ruidoso da vida em vez da linguagem assassina da escrita. Fiz a escolha radical, era a única maneira de proceder. Escolhi o esquecimento, pus para funcionar, sem demasiada condescendência com minha própria identidade, baseada essencialmente no horror – e talvez na coragem – da experiência do campo, todos os estratagemas, a estratégia da amnésia voluntária, cruelmente sistemática.
[...] Tornei-me um outro, para permanecer eu mesmo.¹¹
Depois de 16 anos, a lembrança do período no campo de concentração irrompe e Semprun é inundado por uma angústia avassaladora, então, só pode