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Terra Prometida
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E-book345 páginas4 horas

Terra Prometida

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Sobre este e-book

Na cidade de Hange, isolada do resto do mundo depois do holocausto nuclear, Peter e a sua irmã Helena descobrem a existência de humanos sintéticos, máquinas quase perfeitas que vivem dissimulados no meio da comunidade humana. Agindo contra todas as suas regras, um grupo de humanos sintéticos faz uma aliança com Peter e Helena na sua luta contra os Caçadores, humanos sintéticos transformados em máquinas de guerra que têm um único objectivo: dizimar todos os humanos sintéticos, obter o controlo da cidade e dos seus muitos segredos.

Pode uma máquina tornar-se humana?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de out. de 2021
ISBN9781005487348
Terra Prometida

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    Terra Prometida - Jorge Santos

    Prefácio

    Se vai tentar, vá até o fim

    Não há outra emoção como essa

    Você estará sozinho com os deuses

    E as noites queimarão como fogo

    Você cavalgará a vida direto para o riso perfeito

    Essa é a única boa luta que existe

    _

    Charles Bukowski

    Jorge Santos não apenas tentou, mas foi além. O autor ultrapassou o cenário pós-apocalíptico ao criar Terra Prometida, romance que transita pela Ficção Especulativa, tecendo (im)prováveis futuros da humanidade como a conhecemos hoje.

    A trama inicia-se na cidade de Hange, 500 anos após o temido fim do mundo, durante o ano de 2419, uma data meramente aleatória. Em um mundo caótico, típico de uma distopia, personagens apresentam-se divididos em humanos e sintéticos. Como consequência da guerra, permanecem privados do contato com o resto da civilização, ignorando a existência de uma realidade além dos restritos limites da cidade de Hange.

    O livro é dividido em duas partes: Céu Cinzento e Céu Azul. A distinção das duas metades revela a intenção do autor em delinear a diferença entre os dois cenários – a desolação sem trégua e o despertar da esperança.

    A descoberta do que há além da realidade dos habitantes de Hange depende da quebra das engrenagens cotidianas, visando à busca da liberdade e da autonomia, ao descontruir uma civilização fadada ao mecanicismo.

    É possível traçar um paralelo entre a ficção de Jorge Santos e o Mito da Caverna de Platão. Os personagens de Terra Prometida também se apresentam inseridos em uma realidade fechada, e mesmo insatisfeitos com a cerceada existência, ignoram o que há fora dela, além dos limites da caverna.

    O leitor pode-se perguntar que terra prometida é essa? E quem são os chamados sintéticos, no que diferem dos humanos? Questões que vão sendo esclarecidas página a página, sem que se apresse o enredo e o rumo dos acontecimentos.

    Um Sintético não sente curiosidade. Não mostra emoções. Não duvida do seu Superior. Cumpre sempre o que é ordenado. Não tem sonhos nem aspirações de qualquer ordem.

    Terra Prometida não é um livro de ficção científica, no estrito sentido da palavra. Jorge Santos consegue desvincular seu processo criativo da rotulação de géneros, ao propiciar o equilíbrio entre suspense e ação, distopia e romance, através da fluidez de uma narrativa que cativa desde os primeiros parágrafos.

    Este livro não se destina a transformar vidas, nem a mudar conceitos, mas por meio de uma leitura agradável, poderá levar a um questionamento válido – até que ponto ainda somos humanos em uma sociedade cada vez mais sintética?

    E talvez a resposta esteja muito além do que somos capazes de enxergar, encerrados em nossa matrix.

    Boa leitura!

    Santos, agosto de 2020

    Claudia Roberta Angst

    1ª Parte – Céu Cinzento

    Capítulo 1

    Estamos a ser perseguidos.

    Ulisses confirmou as suspeitas de Eliza. Olhou para trás. No meio da multidão, três homens sobressaíam, não só pelo tamanho e aspecto agressivo mas, principalmente, pelo olhar fixo neles, que começaram a andar num passo mais rápido, quase corrida. À sua frente, um polícia fazia a ronda. Se fossem pessoas normais, parariam e pediriam ajuda. Mas nem ele nem ela esboçaram qualquer intenção de parar. Estavam perto do Ninho. Ali estariam em segurança.

    Porque é que as ruas tinham de estar cheias de gente?, pensou Eliza, enquanto seguia Ulisses. À frente deles apareceram mais dois homens com o mesmo aspecto dos outros três que já os seguiam. A certeza de que estavam a ser caçados assombrou o espírito de Eliza. Ulisses virou rapidamente para um beco, passando, muito educadamente, por uma senhora grávida. Ali teriam mais liberdade de acção. Eliza presumiu ter sido esta a intenção de Ulisses, muito mais preparado para o combate do que ela própria. Seria mais simples confrontá-los longe da vista curiosa dos habitantes do bairro, mas Eliza estava enganada. No fundo do beco estavam outros dois homens, com mais de dois metros de altura e lâminas em cada mão. As suas expressões não deixavam qualquer espaço para dúvidas: estavam ali para matar. Eliza mudou a consistência da sua pele. Ulisses fez o mesmo, um segundo antes dos atacantes lhes caírem em cima. Eliza saltou por cima de um deles, mas sentiu que lhe agarravam uma perna e logo de seguida uma força imensa atirou-a contra o chão. Ela pôs-se de pé. Sentiu de imediato a mão no seu pescoço e desligou os sensores de dor antes que a lâmina lhe rasgasse o corpo. O seu último pensamento foi para Julian.

    Capítulo 2

    David abriu os olhos. A luz cegou-o momentaneamente. Quando se habituou à luz viu que estava sozinho, numa sala branca. Olhou para as suas mãos e para o seu corpo. Reconheceu que estava nu. Viu roupas em cima de uma mesa. Vestiu-as rapidamente, não porque tivesse vergonha mas porque sabia que o devia fazer. Ouviu vozes. A porta abriu-se e entraram dois homens. David sabia que se chamavam Rami e Jonathan, mesmo que nunca os tivesse visto. Sabia-o, mas não conseguia explicar a razão, tal como tinha acontecido com as roupas.

    David-258, esta é a sua missão, disse o homem que David sabia chamar-se Rami, entregando-lhe um tablet. David leu rapidamente a informação. Eram quase cinquenta páginas, mas bastou-lhe 50 segundos. No final entregou o tablet a Rami. Absorveu a informação, mas não a compreendeu completamente. Era o problema de ser defeituoso, pensou. Nunca seria usado se houvesse mais unidades disponíveis. Ele era o último. Tinha a noção disso, mesmo sem saber como obtivera essa informação. Acompanhou Rami e Jonathan pelos corredores das instalações onde se encontrava, que não passava de um armazém velho e sujo, o que para eles era indiferente.

    O telemóvel de Rami tocou. Ele atende. David olha para o rosto dele, impassível, mesmo estando a receber uma notícia supostamente grave, pelo que depreendia da rápida conversação.

    Eliza e Ulisses foram apanhados, informou Rami, depois de desligar.

    Outro ataque? Com este já foram quatro. Estamos a ser caçados. Temos de descobrir quem são. Os corpos?, perguntou Jonathan. Tinha uma voz mais rouca do que a de Rami.

    Não sabemos do corpo de Ulisses. Talvez os Caçadores o tenham levado.

    E o de Eliza?

    A voz de Jonathan não demonstrava emoção. Estavam a discutir a morte de amigos mas, aos ouvidos de David, mais parecia estarem a discutir detalhes banais.

    As pessoas viram o ataque e chamaram a polícia. Os Caçadores fugiram, levando Ulisses. A Polícia levou o corpo de Eliza.

    Jonathan olhou para David, que parecia um anão ao seu lado.

    David, tu já tens a tua missão. Vai. Nós temos de resolver isto.

    Mas David não foi.

    Prefiro ajudar-vos a encontrar os culpados pelo desaparecimento dos nossos irmãos. Não faz sentido que as minhas ordens sejam vigiar Mark-318, um adolescente de 18 anos, quando precisam mais de mim aqui., disse David.

    Rami e Jonathan entreolharam-se.

    Eu disse-te que ele era defeituoso, comentou Rami.

    Defeituoso ao ponto de questionar regras?, perguntou Jonathan.

    É um quase-humano. Como… , esclareceu Rami.

    Como a nossa irmã Eliza. Já percebi.

    Capítulo 3

    Peter observou Helena a trabalhar no portátil. Estava tão concentrada no monitor que parecia ter cessado a sua existência humana e transforma-se em mais um acessório informático. Ele detestava todo aquele mundo. Preferia lidar com pessoas. Era a sua área, por isso tinha lutado para se tornar estudante de medicina.

    Por fim, Helena disse que tinha terminado.

    A tua multa está apagada, Peter, disse ela, sem tirar os olhos do monitor. Os dedos moviam-se no teclado a uma velocidade estonteante, no entender de Peter, que entretanto tinha recebido uma mensagem no telemóvel.

    Tu não és uma pessoa normal, sabias?, comentou Peter, beijando a testa da irmã. Helena respondeu afirmativamente. Até ela própria sabia que não era normal, cogitou Helena enquanto bebia o resto da sua cerveja. Depois sorriu. Tinha descoberto mais uma falha de segurança num dos servidores da cidade. Levantou os olhos e reparou que estava sozinha na sala. Peter tinha saído sem lhe dizer nada. Helena limitou-se a encolher os ombros. Não era a única pessoa estranha na família.

    A mensagem do Professor Donovan tinha apanhado Peter de surpresa. Entrou no seu pequeno carro eléctrico e dirigiu-se à Faculdade de Medicina de Hange. O tempo estava merdoso como sempre: o céu era composto por nuvens cinzentas que apenas deixavam passar a claridade suficiente para evidenciar a existência de um sol. Peter estava habituado. Afinal, uma pessoa habitua-se a tudo, depois de 24 anos a lidar com o mesmo. Peter nunca vira o céu azul, nem mesmo o sol. Conhecia apenas o céu sem nuvens pelas fotografias dos livros e dos poucos filmes a que tinha acesso. Como era um homem pragmático, Peter não sentia a mínima curiosidade. Conhecia pessoas mais velhas na cidade que também não se lembravam de alguma vez terem visto um tempo diferente do constante céu cinzento e, mesmo assim, conseguiam ser felizes.

    Percorreu a distância até à Faculdade de Medicina, apanhando mais trânsito do que estava acostumado. Mesmo a via rápida 109 estava cheia de pequenos carros eléctrico como o seu. Sabia que no passado tinham existido carros que andavam a combustíveis fósseis, mas isso tinha sido antes da guerra. O fim do mundo, que todos esperavam que não acontecesse, tinha, afinal, acontecido há quase 500 anos. Hange perdera o contacto com o resto da civilização conhecida. Tanto quanto podiam pensar, eram as únicas pessoas vivas no planeta. O feliz acaso de ter, na altura, uma parte subterrânea, protegera a população nos primeiros tempos. Depois levantaram o Escudo de Radiações e puderam voltar à superfície, onde tentavam sobreviver o melhor que podiam há quase 500 anos. Dos tempos antigos tinham poucas recordações. Porque tinham passado anos complicados, as pessoas tinham perdido a contagem do tempo. O facto do céu estar sempre coberto de nuvens, da temperatura estar constante, dificultava determinar a passagem dos anos, mas acreditava-se que estavam em 2619.

    Um mostrador gigante mostrava a última leitura de radiação no exterior do Escudo de Radiações: nível 9. Só poderiam sair da cidade quando chegasse ao nível 3. Isto era o que diziam os cientistas. Para Peter era irrelevante: para ele só importava a medicina e uma colega por quem se apaixonara. Até ao momento em que a conhecera apenas tivera pequenos arrufos de adolescente, beijos roubados por trás da escola. Uma ou duas tristes experiências sexuais. A patética segunda experiência tinha sido de tal forma degradante que ele nem sabia se a podia contabilizar como experiência sexual.

    Depois aparecera Lydia. Mais propriamente, Lydia-318. Os nomes de família tinham caído em desuso há quase 200 anos. Agora as famílias eram identificadas por número. Peter detestava esse sistema mas, como em outras coisas, habituara-se a ele porque não conhecera outro. Tal como nunca comera comida diferente da pasta sem sabor que comia todos os dias e que era a base de alimentação de quase toda a gente naquela cidade. A comida era produzida em estufas fechadas, mais protegidas do que os bancos. Já tinha havido tumultos no passado, pelo que as mesmas estavam agora protegidas, saindo apenas a pasta uniforme para as empresas de processamento que a tratam e transformam em alimentos de aspecto minimamente interessante. Quem podia pagar, tinha acesso a alimentos de luxo, que quase pareciam carne e vegetais.

    Peter atravessa a rua ao lado da Central Energética 9, onde o pai trabalhara até problemas musculares o atirarem precocemente para a reforma, tal como tinha acontecido com tantos pedaladores em Hange. Aquela tinha sido a forma encontrada para conseguir fornecer energia à cidade: usando os músculos das milhares de pessoas que pedalavam durante horas. Quando ligava uma luz ou quando andava um quilómetro de carro, Peter tinha a noção perfeita de que o fazia à custa do esforço de alguém. Sem luz do sol nem vento suficiente, não havia outra forma. A utilização da radiação externa tinha sido excluída imediatamente, da mesma forma que um preso tem relutância em relacionar-se com o seu captor.

    Peter chegou à porta da faculdade e passou o cartão de acesso, mas a porta não se abriu. Ligou ao Professor Donovan.

    Boa noite, Professor, é Peter. A porta não me deixa entrar., disse ele ao telemóvel, assim que ouviu a voz do professor do outro lado.

    Até uma estúpida porta sabe que não devias cá estar, Peter. Dá-me um segundo.

    Donovan desligou. Peter ficou parado, a olhar para fechadura electrónica. As pessoas que passavam olhavam para ele. Deviam estar a pensar que ia assaltar a Faculdade. Era Domingo. Ninguém devia estar ali, muito menos ele. Já o Professor era outro assunto. Dizia-se que ele vivia ali, mas podia ser apenas mais uma lenda. Avançou pelos familiares corredores da Faculdade. Era estranho vê-los vazios. Esperava a qualquer momento ver Lydia descer a escada, da forma apressada que lhe era habitual. Ele já a conhecia dos tempos no Liceu. Não eram da mesma turma, mas já a tinha visto. Na altura não era muito diferente das outras raparigas, com a cara cheia de acne e despreocupada. Quando entrou para a Faculdade, no entanto, já era outra Lydia, quase irreconhecível. A Lydia que passava despercebida nos corredores do Liceu transformara-se numa jovem de formas e olhos sedutores, que tinha sempre um grupo de rapazes a gravitar à sua volta. Tornaram-se amigos porque Peter não fazia parte desse grupo. Secretamente estava apaixonado por ela, mas o sentimento de ser seu amigo era tão avassalador que ele não o queria estragar, pelo que nunca falara no assunto com ela. Preferia consumir-se em silêncio, todos os dias.

    Deu com Donovan na porta do Laboratório de Anatomia. Devia ter quase sessenta anos e o aspecto desmazelado do típico cientista louco, mas era preciso uma boa dose de insanidade para se ser o melhor médico de Hange. Podia ter sido rico, mas como o dinheiro não lhe interessava, preferiu dedicar-se à investigação e ao ensino.

    Boa noite, Sr. Peter. Obrigado por ter vindo tão depressa. Tenho aqui um caso para o qual precisava da sua ajuda.

    Obrigado pela oportunidade de ser útil, Professor.

    Escolhi-o, a si, além dos seus conhecimentos, por me parecer ser um jovem discreto, o que é essencial nesse assunto em concreto. Posso contar com a sua discrição?

    A resposta de Peter foi tão sincera quão imediata: Sim.

    Mostrando a sua satisfação, Donovan abriu então as portas do laboratório. Peter já tinha ali estado, nas aulas de Anatomia. Em cima das mesas costumava haver um conjunto de cadáveres, que depois eram recolhidos para os frigoríficos. Agora havia apenas um corpo em cima da mesa, no meio da sala. Era uma mulher de cabelo loiro, comprido. Os olhos estavam abertos, a expressão era serena. Pela naturalidade da face, dir-se-ia que dormia, não fosse o tronco rasgado a golpes que pareciam ter sido feitos por um instrumento cortante. Peter aproximou-se. Era impossível deixar de reparar na sua beleza. Ele sentiu que as suas faces ficaram subitamente quentes. Donovan sorriu ao notar o embaraço de Peter.

    Temos de ser profissionais, Sr. Peter. Eu sei que ela é diferente dos corpos com que fazem os vossos trabalhos de Anatomia. Precisava da sua opinião para avaliar até que ponto ela é, realmente, diferente.

    Peter olhou para o corpo da mulher. Depois aproximou-se do armário, tirou a sua bata e a máscara. Donovan aprovou o procedimento. Peter sentia-se como se estivesse a ser testado. Um teste estranho: o grande Donovan precisava da sua ajuda para uma autópsia feita a um Domingo. Havia ali um mistério que intrigava Peter. Observou o corpo da mulher.

    Múltiplas feridas feitas com arma branca, provocando danos em diversos órgãos vitais, nomeadamente estômago, fígado, pâncreas e intestino.

    Muito bem, Sr. Peter, mas para essa descrição não precisava da sua ajuda. O senhor da limpeza podia fazê-la tão bem como o senhor a fez. O que me pode dizer sobre o tempo que decorreu desde o óbito?

    Peter fez um sorriso amarelo, depois aproximou-se mais do corpo. O cheiro e a deterioração dos tecidos indicavam normalmente o tempo. Cheirou. Não lhe agradava aquela parte. Os cadáveres que usavam nas aulas cheiravam muito mal, mas o corpo daquela mulher não. Peter até podia sentir rastos de perfume. Os tecidos também não se tinham deteriorado.

    Tudo indica que esta mulher morreu na última hora.

    Donovan abanou a cabeça.

    Fui buscar este corpo à polícia há, precisamente, 3 dias, para ser usado nas vossas aulas. Estava dentro de um saco. Quando o abri, notei imediatamente o que o senhor acabou de dizer: o corpo desta senhora não tem qualquer sinal de deterioração. Tem ainda ar de quem ainda vive. Precisava que fizesse os mesmos testes que fiz aos tecidos. Preciso saber se ainda sou mais maluco do que aquilo que vocês dizem que sou.

    Peter cortou algumas amostras do corpo da mulher. Depois aproximou-se da mesa onde estava o microscópio. Preparou as amostras e examinou-as. Não disse nada. Percebeu a dúvida de Donovan. Fez mais testes. Por fim, levantou os olhos do microscópio e disse apenas: Interessante.

    E então?, perguntou Donovan, que não conseguia esconder a ansiedade.

    Polímeros. Os tecidos não são orgânicos.

    Exacto. São réplicas exactas dos nossos órgãos. Uma obra de arte da nanotecnologia. Uma autêntica estátua.

    Uma estátua? Feita por quem?

    Donovan sorriu.

    Esta tecnologia não existe em Hange. Veio de fora. De onde, não sei. Mas não me parece que alguém se desse ao trabalho de fazer uma obra tão perfeita para não lhe dar o toque final, o toque da vida.

    Peter abanou a cabeça. Era impossível.

    Donovan pareceu-lhe ler os pensamentos: Sr. Peter, renda-se à evidência de que existe muito que ainda desconhecemos. Este cadáver, se lhe pudermos chamar isso, é uma prova. Percebe a necessidade da sua discrição? A curiosidade das pessoas faria com que fosse impossível descobrirmos a verdade. Agora… quer ver o pormenor mais interessante?

    Donovan pegou num osciloscópio, colou as duas pontas a cada uma das têmporas da cabeça da mulher. Primeiro, não apareceu nada no visor. Apenas uma linha horizontal fixa. Passados alguns segundos, apareceu um sinal. Era fraco e irregular, mas, de facto, existia um sinal. A mulher morta não devia estar assim tão morta como pensavam, concluiu Peter.

    Capítulo 4

    Não vou, Peter. Tenho mais que fazer. É Domingo. Vou ter com as minhas amigas. Não me chateies.

    Peter ouviu as desculpas da irmã pelo telemóvel. Donovan olhava para ele com a cara de quem dizia: Vê, Sr. Peter, não lhe dizia?

    Mas Peter acabou por convencer a irmã. Aliás, eram só desculpas: ela não tinha amigas. E aquilo era a área dela. Electrónica. Só esperava que ela conseguisse abstrair-se do facto de estar ali um cadáver. Taparam o corpo com um lençol, deixando apenas a cabeça de fora, mas bastava a visão dos profundos olhos azuis, abertos, para impressionar qualquer pessoa. Saiu da Faculdade, meteu-se no carro e foi buscar Helena. Não lhe deu grandes pormenores pelo caminho.

    Vais gostar. Tem a ver com electrónica. Tens de nos ajudar a resolver um problema. És a melhor hacker que conheço.

    Sou a única hacker que tu conheces.

    Peter parou o carro. Ela saiu primeiro e rapidamente se colocou no patamar das escadas, junto a porta. Na mochila trazia o computador portátil e uma data de pequenos equipamentos cuja utilidade Peter não fazia ideia. Só esperava que ela não se passasse demasiado com o cadáver. Ele chegou ao comando da porta e passou o cartão. O verde foi, desta vez, imediato e a porta abriu-se. Helena entrou primeiro, não porque o irmão lhe desse a vez, mas porque era o seu hábito. Embora fosse baixa e de aspecto frágil, era bastante ágil. Antes de descobrir a sua paixão pelos computadores e pela electrónica, Helena interessara-se pelas artes marciais, chegando a ser campeã de Karate. Peter sabia há muito tempo que não devia meter-se com ela. Já sentira a fúria dela na pele. Helena podia facilmente mandá-lo para o hospital, com uma perna atrás das costas.

    Uma vez dentro da Faculdade de Medicina, Peter sentiu-se dentro do seu elemento. Ali, para variar, era ele que sabia o caminho. Sentiu alguma satisfação até chegar à sala do laboratório e abrir a porta. Preparava-se para explicar o que ela ia encontrar mas, como sempre, Helena já entrara e dera com um senhor de meia-idade, vestido de bata, debruçado sobre uma mulher deitada numa marquesa. Pelo estado dela, e mesmo só vendo a cabeça, Helena intuiu o resto.

    Nem pensem!, disse ela, saindo a correr. Peter foi atrás dela, corredor fora. Ela parou na porta de saída, que também precisava de cartão. Abriu rapidamente a mochila e tirou um equipamento que tinha um cartão na ponta. Peter não tinha dúvidas de que ela fosse capaz de abrir aquela porta. Chegou a dois passos de distância. Uma distância segura, dada a sua fúria.

    Calma, Helena. Não é o que tu pensas.

    Pelo menos há aqui uma pessoa que pensa. Ali está um cadáver! Eu só percebo de máquinas!

    E se eu te dissesse que aquele corpo é de uma máquina? É por isso que precisamos de ti.

    Aquilo é um andróide? Quem o criou?

    Peter sabia que tinha usado os argumentos certos. A irmã estava a ficar curiosa. O olhar, no entanto, ainda mostrava muito ressentimento.

    Um andróide, pelos livros que temos, seria um robot com forma humana. Este vai mais longe. É uma cópia humana. Exacta e fiel, mas não orgânica. Este assunto transcende-nos, como deves imaginar.

    Eu estou é a imaginar-me a dar uma sova ao meu irmão mais velho. Tu sabias que eu não suporto este tipo de coisas. Não consigo ver sangue. Tenho dificuldade em lidar com gente morta. Desde…

    Eu sei, Helena. Desde que morreu a mãe. Mas temos de fazer isto. Por favor.

    Helena guardou a máquina na mochila e pô-la ao ombro.

    Está bem. Mas não voltes a fazer uma coisa destas. Nem pela nossa mãe. Ouviste?

    Espero que não se esqueçam de que tudo o que estamos a fazer deve ser secreto. Não podemos criar alarmismo, mas também não nos devemos esquecer que alguém assassinou esta mulher, e esse alguém deve estar ainda à solta., disse Donovan. Tinha trazido comida e bebidas. Helena olhou para a comida com nojo evidente. Sentia que não poderia voltar a comer tão cedo, depois de ter visto o corpo. Tinha ligado a saída do osciloscópio ao portátil e tentava decifrar o sinal. Entretanto, Peter e Donovan faziam mais testes nos tecidos. Sempre que levantavam o lençol que cobria o corpo, Helena desviava o olhar. Já tinha visto o estado em que a mulher ficara.

    O sinal era fraco. Reconheceu uma sucessão de duas frequências. Isolou-as. Com o tempo, deparou-se com um código binário. Uns e zeros. Usou todas as combinações que conhecia, até se dar por vencida. Estava tão irritada que deu por si a mordiscar um biscoito.

    Virou-se então para os códigos mais antigos. O código ASCII codificava cada 7 ou 8 bits em letras. Agrupou-os e começou a converter os números para o valor decimal.

    84, 85, 84, 79, 82, 69, 77, disse ela, não esperando que algum dos dois estivesse a prestar atenção. Era hábito dela, para não perder a concentração. Converteu depois, de cabeça, os valores numéricos nos caracteres correspondentes.

    TUTOREM, disse. Desta vez, tanto Donovan como Peter largaram o que estavam a fazer para se aproximarem dela.

    Significa professor em Latim, disse Peter.

    Donovan, no entanto, corrigiu-o: Mas também pode significar protector.

    Continuaram a fazer testes até Donovan se dar por vencido. Estava cansado. Tinha um problema no coração que o forçava a parar, de tempos a tempos.

    Podemos ficar, professor?, perguntou Peter. Donovan concordou. Se quisessem até podiam dormir ali. Helena rejeitou essa hipótese. Nunca dormiria numa mesma casa onde havia gente morta.

    Donovan despediu-se e foi para o andar de cima, onde tinha o

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