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Teologia do Antigo Testamento
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Teologia do Antigo Testamento
E-book1.771 páginas25 horas

Teologia do Antigo Testamento

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Sobre este e-book

Esta primeira e importante obra do movimento moderno em direção à construção de uma Teologia do Antigo Testamento, é ainda, aos olhos de teólogos respeitados, a abordagem mais rica e criteriosa a partir da teologia da aliança.

O livro explora os aspectos fundamentais da aliança entre Deus e o homem e seus desdobramentos em categorias teológicas em todo o Antigo Testamento.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de mar. de 2020
ISBN9786586048179
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    Teologia do Antigo Testamento - Walther Eichrodt

    TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO:

    O PROBLEMA E O MÉTODO

    Dentre todos os problemas conhecidos referentes ao estudo do Antigo Testamento, o de maior alcance e importância é o da teologia do Antigo Testamento. Por meio dela é construída uma imagem completa da fé veterotestamentária; trata ainda, em outras palavras, de dar alcance, em toda sua singularidade e autênticas proporções, ao que constitui o núcleo essencial do Antigo Testamento. Neste sentido, a teologia do Antigo Testamento vem a ser a coroação de toda a ocupação da ciência veterotestamentária; todos os demais ramos da ciência bíblica se empenham, a partir de sua tarefa específica, à consecução desta meta.

    Contudo, embora o domínio próprio da teologia do Antigo Testamento seja, comparativamente, restrito, ainda está intimamente ligado à prolífica variedade das religiões pagãs e ao reino exclusivo da Fé do Novo Testamento. Deste modo, ela exibe um aspecto duplo.

    No primeiro aspecto, se confrontará com o problema da história das religiões em geral. Aqui tem especial significado o dito de Harnack¹: aquele que conhece a religião do Antigo Testamento conhece muitas religiões. Harnack havia pronunciado estas palavras como réplica à tese de Max Müller: aquele que conhece apenas uma religião não conhece nenhuma. A religião veterotestamentária é o fruto de uma longa história por intermédio da qual se consolidou o tesouro que lhe é próprio, por meio de um longo processo de assimilação e de rejeição em seu contato com as diversas formas de religião pagã.

    Daí que seu estudo seja, necessariamente, um estudo comparado da história das religiões. Não é possível, pois, fazer uma exposição adequada da teologia do Antigo Testamento sem uma constante referência a suas conexões com o mundo religioso do Oriente Próximo.

    Não seria, portanto, exato pretender explicar o significado próprio da religião veterotestamentária somente a partir do estudo do fecundo horizonte das religiões humanas. Devemos contar também com um segundo aspecto, que não é menos essencial: sua relação com o Novo Testamento. No desenvolvimento histórico da religião veterotestamentária, se observa a presença de uma força interna que a impulsiona poderosa e incessantemente para adiante. Existem nela, evidentemente, momentos nos quais parece se tornar estática, presa a princípios fixos; mas, então, torna a surgir novamente a vontade de continuar avançando em busca de uma vida superior, reconhecendo o caráter contingente e provisório de tudo o que era anterior. Esse movimento não cessou até a vinda de Cristo, em quem encontraram seu cumprimento as forças mais nobres do Antigo Testamento. Evidência negativa, em apoio à validade dos princípios que vimos expondo, é oferecida pela aparição do judaísmo, que surgindo, como outra derivação no tronco principal do Antigo Testamento, é separado do cristianismo.

    Essa afinidade com o Novo Testamento não se estabelece em uma simples relação histórica, objeto de investigação científica, mas sim, que constitui uma característica essencial do Antigo Testamento, sem cuja consideração este não pode ser entendido. Isso se comprova quando se insere no mundo espiritual próprio do Novo Testamento. Pois no encontro com o Cristo dos evangelhos se forma uma poderosa realidade vital que está estreitamente ligada ao passado veterotestamentário e, por sua vez, aponta para o futuro. A irrupção e implantação do reinado de Deus nesta terra abrangem, indissoluvelmente, dois mundos tão diferentes externamente, quanto são o do Antigo e o do Novo Testamento. Porque, ao final, tudo encontra seu fundamento na ação de um único Deus que, na promessa e cumprimento, no evangelho e na lei, busca sempre o mesmo fim: a construção de seu reino. Por isso o Novo Testamento, justamente no que é seu conteúdo central, nos remete ao testemunho de Deus na antiga aliança.

    O fluxo histórico que leva do Antigo ao Novo Testamento corresponde, pois, ao refluxo de um movimento vital que vai do Novo ao Antigo Testamento: é a única chave capaz de dar-nos a interpretação total das idéias veterotestamentárias. Somente quando se tenha compreendido essa dupla relação entre os dois Testamentos será possível determinar corretamente a tarefa da teologia do Antigo Testamento e seu método.

    A finalidade geral de conseguir uma imagem de conjunto da fé veterotestamentária deve vir determinada por este segundo aspecto: deve se tratar de uma imagem de conjunto que faça justiça a essa íntima e essencial relação com o Novo Testamento e que não a ignore. Naturalmente, isso não significa que tenha de transpor artificialmente as expressões do Antigo Testamento para o plano do Novo, para se obter um nivelamento dos dois. Pretender fazer isto seria simplesmente manifestar que se tem um conhecimento muito escasso da diferença que existe entre um processo na vida real e um processo no pensamento lógico. A infelicidade da antiga ortodoxia foi que, a despeito de ter uma idéia válida do caminho correto, também neste ponto perdeu a visão da realidade vital e continuou pelo procedimento da demonstração lógica, ocultando, deste modo, mais do que esclarecendo, a verdadeira relação entre os dois Testamentos. A resposta a isto foi o racionalismo, com sua rejeição sistemática do Antigo Testamento. O que nos interessa, portanto, é uma exposição das idéias e da fé veterotestamentárias que tenha sempre presente que a religião do Antigo Testamento, com toda sua indiscutível singularidade, somente pode ser entendida em sua essência a partir do cumprimento que encontra em Cristo. Ninguém deu mais importância a esta interdependência e homogeneidade da revelação do Antigo e do Novo Testamento do que o conhecido crítico radical B. Stade em sua Teologia do Antigo Testamento. Isto o levaria a considerar suficientemente justificado o dar a esse aspecto da ciência veterotestamentária a uma categoria da parte integrante na teologia cristã.²

    Quanto mais claramente se vê a tarefa, tanto mais óbvio resulta, que é impossível levá-la adiante através dos caminhos nos quais tem estado empenhada a ciência veterotestamentária, isto é, as do método do desenvolvimento histórico. Não se trata precisamente de descrever a expansão universal da religião israelita ou as etapas pelas quais ela passou, mas sim de determinar qual é o nível de inter-relação e semelhança que, segundo a expressão de Stade, guarda com o Novo Testamento. No entanto, se chegará a isto fazendo um corte transversal no pensamento do Antigo Testamento que, de certa forma, permita uma visão de conjunto, facilite distinguir entre o essencial e o acidental e ao mesmo tempo deixe descoberto os pilares fundamentais e a estrutura total desse pensamento. Em outras palavras, temos de empreender uma consideração sistemática dos diferentes conteúdos, tanto em sua classificação objetiva, quanto em seu desenvolvimento ideológico. Com isso nem se esquece nem se relega a um segundo plano a investigação histórica; assim construímos, ainda mais, sobre seus resultados e fazemos uso de seus instrumentos de trabalho. Mas a análise evolutiva tem de dar o lugar à síntese sistemática, ao se querer alcançar uma explicação do sentido último do fenômeno religioso que aparece no Antigo Testamento.³

    Esse método que é dado pela própria natureza da matéria, se confirma plenamente se fizermos um trajeto pela história desta disciplina. Como já se assinalou, o racionalismo pulverizou a inadequada tentativa da ortodoxia de apresentar a íntima relação entre o Antigo e o Novo Testamento por intermédio da comparação dos chamados textos de prova e de um sistema extensivo de tipologia;⁴ o racionalismo demonstrou a impossibilidade de reduzir a um compêndio de doutrina dogmática todo o mundo de idéias veterotestamentárias, condicionado como está por uma variedade tão imensa de tempos e pessoas. Contudo, o racionalismo, por sua vez, foi incapaz de oferecer um substituto a isso tudo, pois seu entusiasmo pela análise crítica impediu-lhe de captar a síntese vital do Antigo Testamento, e unicamente conseguiu perceber as diversas formulações doutrinárias dos autores bíblicos individualmente.⁵

    Na época do romantismo, o novo método histórico chegou, por fim, a colocar diretrizes únicas nesse caos de disjecta membra, em que havia degenerado o Antigo Testamento: despediu-se da aproximação intelectualista, preocupado unicamente com a doutrina, e com um olhar atento a tudo, se empenhou em captar a vida religiosa em toda a riqueza de suas manifestações. Além disso, submeteu ao controle a inesperada ampliação do horizonte, com sua fórmula mágica da evolução histórica; esta fórmula permitia integrar os elementos particulares no marco do processo histórico, procurando desta maneira definir o sentido da totalidade a partir da análise de seu resultado final.

    Este método de tratamento, iniciado por Herder⁶ e De Wette,⁷ chega ao seu ápice com Wellhausen⁸ e sua escola; durante algumas décadas, os trabalhos de teologia veterotestamentária se conduziram por caminhos históricos. De que serviu, em meados do século passado, que um Beck⁹ e um Hofmann¹⁰ tentassem formular um sistema de doutrina bíblica? Se for verdade que utilizando o Antigo Testamento para esse fim lutavam por algo de interesse vital para a fé cristã, não é de se desprezar o fato de que nada conseguissem contra a impetuosa corrente do estudo histórico, sem falar do fato de que o sistema dogmático, por intermédio do qual eles subordinaram o pensamento do Antigo Testamento, tinha sérios problemas.

    Maior atenção deve ser dada a três homens que, na segunda metade do século 19, em meio ao triunfo da crítica histórica, buscaram fazer frente à nova problemática e, ao mesmo tempo, expor sistematicamente o conteúdo essencial do Antigo Testamento: G. F. Oehler,¹¹ A. Dillmann¹² e H. Schultz.¹³ Os três rendem tributo à nova corrente antepondo à sua exposição um esboço histórico da religião veterotestamentária; depois tratam de obter uma síntese sistemática do que examinaram antes, no decorrer do processo histórico.

    É uma pena que as duas primeiras obras citadas apareçam após a morte de seus autores e muito do que diziam deixara já de ser válido.¹⁴ Mas suas várias reedições mostram que suas obras chegaram a preencher uma lacuna. De fato, do ponto de vista sistemático, continuam oferecendo-nos o fundamental do estudo da fé veterotestamentária, ainda que, desde então, a investigação tenha exposto à luz muitos materiais novos e relevantes e introduzido novas proposições e, com isso, tenha mudado fundamentalmente o quadro do conjunto.

    É significativo que, nos 25 anos seguintes à última edição da teologia de Schultz, ninguém se atrevera a fazer uma exposição semelhante da fé do Antigo Testamento. O método histórico havia alcançado uma vitória total.

    Não se deve pôr em dúvida que esse método deu uma grande contribuição à compreensão histórica da religião veterotestamentária: é impossível imaginar uma descrição histórica que não faça uso de suas conclusões. Por isso, todos nós estamos em débito com ele. Mas suas conseqüências foram funestas tanto para a teologia quanto para a compreensão geral do Antigo Testamento, por sua idéia de que, resolvendo o problema histórico, tudo estaria acabado. A inter-relação essencial, do Antigo Testamento e o Novo Testamento, se viu reduzida, diríamos, aos fracos elos da simples conexão histórica e da seqüência causal de ambos; uma causalidade externa, nem sempre suscetível de segura demonstração, substituiu a homogeneidade natural apoiada num mesmo conteúdo vital. É notório a que extremo de pobreza chegou a interpretação da relação intertestamentária. E se entende também que o Antigo Testamento, ao ser valorizado unicamente como base histórica ou como precursor do Novo Testamento, perdesse necessariamente seu valor específico de revelação, ainda que ganhasse mais do que nunca grande apreço histórico. Uma conseqüência disso é a total ausência do Antigo Testamento na construção da fé cristã. E se, em algumas circunstâncias, como no caso de Harnack,¹⁵ lhe é negada sua dignidade canônica, transferindo-o, desse modo, da teologia à simples ciência das religiões, isso parece mais uma concessão acadêmica do que uma autêntica convicção de sua absoluta necessidade.

    O fato de os teólogos especialistas se conformarem em lidar com o desenvolvimento que as coisas haviam tomado e crerem também que, por meio desses caminhos, ficaria a salvo o valor do Antigo Testamento, somente se pode entender, ao se levar em conta a forte maré de historicismo que inundou todos os terrenos do saber, impediu que se visse com clareza que os resultados da investigação histórica, por mais atraentes que fossem no momento, não podiam na realidade substituir a idéia da inter-relação essencial dos dois Testamentos. O método histórico deixou a tarefa da teologia do Antigo Testamento reduzida a uma exposição histórica da religião judeu-israelita; pois a fórmula mágica da evolução dificilmente pôde ocultar que com isso o Antigo Testamento havia perdido toda a unidade, se convertendo, desta forma, em uma série de períodos desconexos que com freqüencia refletiam religiões diferentes. Foi algo bem natural que em tais circunstâncias se renunciasse muitas vezes ao nome de teologia do Antigo Testamento e aparecesse em seu lugar o da história da religião israelita.¹⁶ Ainda nos casos em que se manteve a antiga designação¹⁷ nem se pretendia nem se podia oferecer outra coisa senão que uma exposição do processo histórico da religião israelita.

    Por isso, se deve assinalar como um feito corajoso o fato que, em 1922, E. König se dispusesse a publicar uma teologia do Antigo Testamento com a intenção séria de fazer justiça ao título. É verdade que o livro mostra, entretanto, certa atitude ambígua: o método histórico-evolutivo ultrapassa os limites da primeira parte, histórica, e penetra na parte sistemática; com isso impede a tarefa de síntese da parte sistemática; de outro lado, os condicionamentos de uma divisão dogmática rejeitam, deste modo, o objeto, obrigando-lhe a seguir um caminho que acaba sendo forçosamente artificial e violento. Mas o autor preencheu uma lacuna do momento; a grata acolhida de sua obra foi um justo reconhecimento de seu mérito.

    Na realidade já é hora de que se rompa com a atitude despótica do historicismo e se volte à velha e sempre nova tarefa de captar a fé veterotestamentária em sua unidade estrutural e de interpretá-la em seu sentido mais profundo, atendendo, de um lado, ao mundo religioso que a rodeia e, por outro à sua relação essencial com o Novo Testamento.¹⁸ Somente deste modo se conseguirá devolver ao estudo do Antigo Testamento em geral — e a sua teologia em particular — o lugar que lhe cabe dentro da teologia cristã e que tinha dado lugar à história geral das religiões.

    Em nenhum momento queremos ignorar as dificuldades que tal iniciativa demanda. A natureza singular da religião israelita resiste obstinadamente a ser submetida a um tratamento totalmente sistemático, pois o que a distingue das demais religiões é a abundância de personalidades religiosas criadoras, que estão em íntima relação com as experiências históricas do povo. A fundação de uma religião envolve sempre a fixação do conteúdo principal de sua fé, a qual no futuro sofrerá pequenas mudanças para um melhor reconhecimento, ou para um maior aprofundamento ou para novas formulações; também no Antigo Testamento nos encontramos com um material elementar, mas, ao mesmo tempo, deparamo-nos com um crescimento progressivo que introduz na religião conteúdos sempre novos e conjuga o enriquecimento externo com o aperfeiçoamento interno. Esta importância, do aspecto pessoal e histórico na religião israelita, é a razão do por que o escritor cede facilmente à tentação de fazer uma exposição seguindo o processo histórico do desenvolvimento.

    Esta consideração, ainda que óbvia, não é inapelável, já que também pode se obter uma visão do desenvolvimento histórico da religião israelita por meio da história de Israel, na qual a vida religiosa merece um lugar destacado, graças a sua estreita conexão com a história política e à recíproca influência entre as duas. Por isso, a teologia do Antigo Testamento pressupõe sempre a história de Israel. E como a história cultural israelita tem motivado mais que um desenvolvimento reformador em sua religião, deve-se fazer com que o princípio sistemático conte sempre com o complemento histórico, e ao tratar particularmente das idéias religiosas, ter em conta os momentos mais importantes de sua evolução. Somente assim poderemos valorizar corretamente a tendência unificadora que aparece em toda a história da religião israelita e que a transforma, apesar de suas várias formas, em um conjunto harmônico. Nesta tarefa há algo, especialmente, do qual é necessário se precaver, e é o de fazer uma disposição organizada de todo o material não segundo suas próprias leis, mas sim, por intermédio de um esquema dogmático qualquer. É impossível se aproximar da fé veterotestamentária com um sistema de idéias desenvolvidas sobre uma base totalmente distinta; ficamos expostos ao perigo de introduzir idéias estranhas e de incapacitados para sua compreensão. Assim sendo, é um fato evidente que o Antigo Testamento contém pouco do que se pode chamar verdadeiramente de doutrina; o israelita nunca recebe lições sobre a essência e os atributos de Deus, mas sim que o conhecimento de Deus advém da realidade vital: conhecer a natureza de Deus por meio de um raciocínio a posteriori desde normas e costumes do direito e de culto que regem sua própria vida com autoridade divina, até os acontecimentos da história e a interpretação que deles dão seus chefes espirituais; em uma palavra, a partir da experiência diária do domínio de Deus. Deste modo, vai captando a essência de seu Deus, e, certamente, com muito mais segurança que a que poderia dar-lhe qualquer tipo de conceito abstrato. Por isso, no Antigo Testamento sempre se apresenta uma notória demora em construir conceitos, ao passo que os valores espirituais, que nós estamos acostumados a captar conceitualmente, desfrutam de uma presença incontestável e eficaz.

    Disto fica uma conclusão para nosso empenho: ao tratar a fé do Antigo Testamento temos de deixar de lado todos os nossos esquemas dogmáticos cristãos de teologia, antropologia, soterologia, ordo salutis etc., e nos guiarmos pela dialética própria do Antigo Testamento. Ela nos fala da revelação de Deus do povo, que em sua atuação se mostra como Deus do mundo e do indivíduo. Resulta assim em três círculos principais, dentro dos quais iremos seguindo a natureza específica da fé israelita: Deus e povo, Deus e mundo, Deus e o homem.¹⁹

    Ao andarmos por esse caminho, abrindo mão de toda teoria arbitrária e conservando algo da imediatez vital da fé israelita ainda em seu tratamento teórico, iremos conseguir, sem mesmo pretendê-lo, umas vantagens: discutir até onde se deve estender uma exposição da religião israelita, limitar os testemunhos veterotestamentários e estender até os escritos extra canônicos do judaísmo. Se for verdade que não existe nenhum impedimento de princípio para incluir em nossa consideração o estudo e a apropriação que das idéias veterotestamentárias fizera o judaísmo tardio, temos de advertir, de outro lado, que não é uma coincidência superficial que Jesus e todo o Novo Testamento façam uso quase que exclusivamente dos escritos veterotestamentários canônicos, prestando-lhes uma especial importância na formulação de seu pensamento. Na realidade, encontra-se ali a parte mais extensa e valiosa das idéias e concepções que dão à fé israelita sua natureza específica. Portanto, a teologia do judaísmo tardio somente poderá entrar em nossa consideração enquanto tenha, por hipótese, uma re-elaboração de certas concepções veterotestamentárias e, por conseguinte, tenha influenciado na repercussão do Antigo e Novo Testamento. Para um conhecimento histórico mais detalhado da fé do judaísmo posterior, teremos de nos remeter à história de Israel ou, de acordo com os casos, à da época do Novo Testamento.

    Após a primeira edição desta obra, apareceram vários tratados sobre a fé do Antigo Testamento que seguem também as diretrizes aqui desenvolvidas, sobretudo a obra monumental de O. Procksch (Theologie des Alten Testaments, 1950), verdadeira coroação do trabalho realizado por esse erudito, que, por infausto conhecimento, não foi possível conhecer sua publicação. Começa como uma síntese histórica para assim livrar seu tratado sistemático posterior de problemas e poder oferecer, segundo o mesmo plano que nós, o esboço sistemático da mensagem veterotestamentária. Igualmente, a famosa obra de Th. C. Vriezen (Hoofdlijnen der Theologie van het Oude Testament, 1949,1954), que em sua primeira parte trata de esclarecer o problema Ciência e fé, história e revelação, para, na segunda parte, estudar os elementos centrais da teologia veterotestamentária; predomina nesse objetivo a idéia de uma nova realização de comunidade, devido à iniciativa de Deus que se deu a si mesmo, analisando de forma viva tanto a unidade interna do Antigo Testamento quanto, também sua referência a Cristo. Seguindo a idéia dominante da ação de Deus como Criador do mundo e do homem e como Senhor da história, E. Jacob (Théologie de l’Ancien Testament, 1956) procura dar uma síntese sistemática dos conteúdos essenciais da teologia veterotestamentária: na primeira parte trata sobre a natureza de Deus e na segunda, mais breve, em forma de conclusão, sobre o pecado, a morte e a consumação, os outros temas são tratados no restante da obra sem uma seqüência especial. De modo diferente, E. Sellin (Theologie des Alten Testaments, 1936) e L. Köhler (Theologie des Alten Testaments,1949), seguem o velho plano dogmático com uma distribuição marcadamente acadêmica. O primeiro, através de uma descrição paralela da história da religião israelita e judaica, procura esclarecer as conexões históricas da parte didática seguinte; o segundo só pretende apresentar de forma eclética aquelas idéias, intuições e conceitos veterotestamentários que tenham importância teológica, e pode por isso se contentar com a velha divisão dogmática de teologia, antropologia e soteriologia, pois para ele as diferenciações históricas fazem, tão-somente, romper a unidade interna, cristologicamente determinada, do Antigo Testamento.

    A exposição histórica cronológica também tornou a encontrar seus representantes: assim A. Lods (La Religion d’Israel, 2 vols., 1935-39) e M. Buber (Het Geloof van Israel, em De Godsdiensten der Wereld, vol.I, 2a ed. 1948, 168-307). Na mesma linha, segue o tratado da Religião israelita, de H. Ringgren, 1963, que oferece um quadro bem documentado da história da religião israelita, desde a época dos patriarcas até o judaísmo tardio, no marco das culturas do antigo Oriente, se baseando nas mais modernas teorias e descobertas.

    De outro lado, a grande obra de G. von Rad, Teologia do Antigo Testamento, vol I: Teologia das tradições histórica de Israel (1957); vol. II. Teologia das tradições históricas de Israel (1957), admite hipoteticamente que há uma tentativa renovadora na definição da tarefa que compete à teologia do Antigo Testamento. Partindo de uma análise das leis formais que foram desenvolvidas em fenômenos concretos, considera a mensagem do Antigo Testamento como uma constante transformação do testemunho das tradições recebidas nas expressões de fé do presente, que emerge à superfície em cada momento à imprecação das crises do povo e encontra sua compilação normativa nas escolas deuteronômica e sacerdotal. A primeira função da teologia do Antigo Testamento consiste em: descrever as afirmações que, ao longo do cânon, o próprio Antigo Testamento faz sobre o encontro com o Deus da História, pois nelas aparece uma gama de imagens da história da salvação, descritas a partir do ponto de vista da fé; estas, nada têm a ver com as imagens da história de Israel proporcionadas por essa investigação. Como descrição confessional da história, somente tem uma fraca relação com a realidade histórica, e pode ser manifesto por intermédio de um breve resumo histórico. A tarefa da teologia do Antigo Testamento consiste, pois, unicamente em: expor todo esse mundo testemunhal contido em formulações múltiplas e resistentes a toda unificação; sendo assim, a teologia do Antigo Testamento, por conseguinte, não pode descrever o mundo da fé israelita numa estrutura sistemática. Assim, no primeiro volume se contrapõem as imagens da relação de Israel com Deus, criadas pelos testemunhos veterotestamentários e contidas nos livros históricos, à resposta da comunidade, expressa nos salmos e nos escritos sapienciais; no segundo, ao contrário, se aborda a mensagem dos profetas como afirmação extraordinária da fé, que dá lugar, pela primeira vez, a uma boa nova escatológica. A conclusão está dedicada a uma explicação sucinta da relação entre os dois Testamentos. Essa nova compreensão, da teologia do Antigo Testamento, tem ocasionado um debate caloroso e ainda não concluído, que promete um valioso enriquecimento na compreensão da fé veterotestamentária. (O leitor encontrará uma resenha do novo delineamento no prólogo na parte II desta obra.) Cremos também serem significativas as seguintes obras: N. H. Snaith (The Distinctive Ideas of the Old Testament, 1944) e H. H. Rowley (The Faith of Israel, 1956 A Fé em Israel.) oferecem magníficas perspectivas da fé veterotestamentária e tratam em um pequeno espaço dos problemas fundamentais da mensagem do Antigo Testamento.

    O. J. Baab (The Theology of the Old Testament, 1949) deseja apresentar uma abordagem sistemática que coincide com o anseio de L. Köhler, ou seja, uma seleção das idéias religiosas que lhe parecem verdadeiramente importantes para nosso acesso ao Antigo Testamento. Seu estudo contém muitas coisas notáveis, mas não consegue abranger a totalidade da fé veterotestamentária. Isto se nota, sobretudo, no fato de que, independentemente da história das idéias, não se dá a suficiente atenção à vida da comunidade israelita tanto no direito quanto no culto. Ainda menos satisfatória é a tentativa, de tendência psico-racional, para demonstrar que a fé do Antigo Testamento, como fé racional, responde às necessidades do espírito humano. Nesse contexto, é evidente que se esqueça por princípio a especificação básica que a teologia do Antigo Testamento recebe do Novo Testamento, como teria de se pôr às claras, por exemplo, em conceitos como profecia e cumprimento.

    Pode também se consultar com proveito o extenso estudo arqueológico de W. F. Albright, Archeology and the Religion of Israel, 1946, que constitui um estupendo complemento de sua importante obra De la edad de piedra al cristianismo (Santander, 1959). O autor circunscreve a fé veterotestamentária dentro da ampla perspectiva da história do antigo Oriente.

    NOTAS DO CAPÍTULO 1

    ¹Die Aufgabe der theologischen Fakultäten und die allgemeine Religionsgeschichte , 1901, p. 10.

    ²Biblische Theologie des Alten Testaments , 1905, p. 15.

    ³Sobre a relação que esta tarefa deve guardar com a exposição propriamente dogmática do Antigo Testamento dei alguns princípios em meu artigo Hat die alttestamentliche Theologie noch selbständige Bedeutung innerhalb der alttestamentlichen Wissenschaft? Cf. ZAW 47, 1929, p. 83s.

    ⁴Não podemos nos deter por hora em exceções como G. Calixt e J. Cocceius .

    ⁵Cf., por exemplo, C. F. Ammon , Biblische Theologie , 1972; G. L. Bauer , Theologie des Alten Testaments , 1796.

    Der Geist der hebräischen Poesie; Briefe über Theologie, Die ältesten Urkunden des Menschengeschlechts e outras obras.

    Beiträge zur Geschichte des Alten Testaments , 1806/7; Bibl. Dogmatik , 1813, 1831.

    Prolegomena zur Geschichte Israels , 1878; Israelitische und jüdische Geschchte , 1894; Die israelitisch-jüdische Religion , 1906 (Kultur der Gegenwart, I, 4).

    Die christliche Lehrwissenschaft nach den biblischen Urkunden , 1841.

    ¹⁰ Der Schriftbeweis , 1852/55.

    ¹¹ Theologie des Alten Testaments , 1873, 1891.

    ¹² Handbuch der alttestamentlichen Theologie , ed. por R. Kittel , 1895.

    ¹³ Alttestemenliche Theologie , 1896.

    ¹⁴ Isto vale também para a menos importante Alttestamentliche Theologie de E. Riehm ,1889.

    ¹⁵ Marcion , 1921, pp. 247s.

    ¹⁶ R. Smend em seu extenso Lehrbuch der alttestamentlichen Religionsgeschichte ², 1899; F. Gieserbrecht , Grundzüge der israelitischen Religionsgeschichte , 1904; K. Marti , Geschichte der israelitischen Religion ⁵ , 1907; K. Budde , Die Religion des Volkes Israel bis zur Verbannung ³, 1912; E. König , Geschichte der alttestamentlichen Religion ², 1915; R. Kittel , Die Religion des Volkes Israel , 1921; G. Hölscher , Geschichte der israelitischen und jüdischen Religion , 1922.

    ¹⁷ B. Stade , Biblische Theologie des Alten Testaments , 1905; E. Kautzsch , Biblische Theologie des Alten Testaments , 1911. Neste mesmo sentido, A Kuenen , De godsdients van Israel , 1869s., assim como a obra do mesmo nome de B. D. Eerdmans , 1930.

    ¹⁸ Cf. o exame de R. Kittel sobre a importância da teologia do Antigo Testamento em seu artigo Die Zukunft der alttestamentlichen Wissenschaft , ZAW 39, 1921, p. 94s.

    ¹⁹ As formulações concisas dos três círculos principais eu tenho que agradecer ao esquema básico das lições de O. Procksch sobre teologia do Antigo Testamento, que me proporcionou mais de uma sugestão. Nesta ordenação do tratado precedeu já H. Schultz com a distribuição que deu à segunda parte de sua teologia do Antigo Testamento; somente que ele, de forma característica, trata a esperança como uma parte especial.

    CAPÍTULO II

    A RELAÇÃO DE ALIANÇA

    I. O SIGNIFICADO DO CONCEITO DE ALIANÇA

    O conceito de aliança, no qual o pensamento israelita deu a expressão definitiva à relação do povo com Deus, demonstra desde o princípio a singularidade do conhecimento israelita de Deus. Tem-se discutido, vivamente, como uma aliança da época mosaica possa ser considerada como o fundamento da relação com Deus.¹ Contudo, pode ser demonstrado que a aliança entre Yahweh e Israel é um elemento original em todas as fontes, mesmo que elas se apresentem, em parte, de maneira muito fragmentadas. Isso é verdadeiro, ainda nas passagens nas quais a palavra Berit desapareceu completamente.² O mesmo fato é testemunhado, ao longo de toda história israelita primitiva, pela força com que o sentimento de solidariedade religiosa está ligado à tradição sinaítica.³ É na época pós-mosaica, em que a relação com Deus tem a característica de uma relação de graça, ou seja, está fundamentada em um fato histórico inicial, mantida sob condições determinadas e protegida por um guardião divino poderoso; mesmo quando não se fale de aliança, as premissas espirituais de uma relação de aliança com Deus estão claramente presentes.⁴ Finalmente, o uso do conceito de aliança na vida profana induz a pensar que também o Berit religioso se considerou sempre como uma relação bilateral; pois ainda que a distribuição dos encargos entre as partes estipulantes seja desigual, nunca se põe em dúvida a reciprocidade da nova relação.⁵ A idéia de que no antigo Israel, ao falar de Berit, se pensava em uma auto-obrigação de Yahweh, a qual não exigia de si uma resposta humana (Kraetzschmar), é, portanto, errônea.⁶ Assim, pois, a idéia sugerida pelo próprio Antigo Testamento de que Moisés, aceitando um velho conceito da vida profana, baseou o culto a Yahweh sobre o pacto de uma aliança é o verdadeiro ponto de partida para estabelecer a relação com Deus. Isto, entretanto, torna mais importante a tarefa de captar com clareza o significado teológico da idéia de aliança.

    a) Deve-se observar, em primeiro lugar, que na conclusão de uma aliança, como Moisés nos transmite, se põe em evidência um elemento fundamental de toda a experiência israelita de Deus: a natureza efetiva da revelação divina. A auto-revelação de Deus não se apreende de modo especulativo, não se oferece em forma de doutrina; Deus dá a conhecer seu próprio ser atuando na vida de seu povo e modelando-o conforme a sua vontade. Esta interpretação da aliança é indicada pelos acontecimentos históricos que a precedem: a fundação de uma ordem duradoura estabelecida sobre uma base de aliança aparece como o fim e a coroação da poderosa libertação do Egito; a força, o auxílio e a fidelidade que o povo experimentou antes em Yahweh se lhe oferecem neste instante como uma riqueza permanente e, por sua vez, submetem seu próprio comportamento a normas determinadas. Ao surgir como um fato concreto da história, como uma aliança expressa em formas históricas, à vontade de Yahweh representa uma urgência bem definida na vida prática, permitindo que o progresso natural dos conhecimentos espirituais sejam a causa primária da conceitualização religiosa.

    b) Mas essa tarefa conta já com poderosos impulsos nas circunstâncias imediatas da aliança divina. Ela manifesta, por exemplo, uma clara vontade divina, na qual se pode confiar e à qual é possível apelar. A aliança não é somente exigência, mas sim, também promessa: Vós sereis meu povo e eu serei vosso Deus, dando, deste modo, uma finalidade à vida e um sentido à história. Desaparece, assim, aquele medo geral do paganismo com relação à arbitrariedade e capricho da divindade; com esse Deus o homem sabe realmente que pode se apegar, pois, surge uma atmosfera de confiança e de segurança que dá força para uma entrega obediente à vontade divina e alegria para se enfrentar as situações da vida.

    Sendo assim, para que isso seja plenamente válido, é necessário que o conteúdo concreto da ordem da aliança assegure e garanta as possíveis deduções que se possa tirar de sua singularidade formal. Somente quem reconhecer que os simples preceitos do antigo Israel, cheios de um profundo sentido de justiça, que se encontram no Decálogo e no livro da Aliança, constituem de qualquer forma a base da aliança mosaica,⁸ ultrapassará o terreno das simples hipóteses ou das conclusões caprichosas, e encontrará na criação de uma ordem social e moral uma única vontade divina que governa tudo, o fundamento não somente da forte unidade da concepção israelita do mundo, mas também de sua valente aceitação da vida, duas marcas que a distinguem claramente da dispersão e das tendências pessimistas do paganismo. (Veja um exame mais detalhado deste ponto no capítulo III: Os estatutos da aliança.)

    c) Esta vontade divina manifesta na aliança a sua capacidade configuradora na forma como determinar aos homens com os quais se alia, sua situação privilegiada. Pois, a participação na aliança divina imprime um caráter especial à inconsistente coalizão tribal na qual Israel despertou à consciência histórica. O que dá expressão religiosa a seu sentido nacional no culto de Yahweh não é o fato de ser uma comunidade radicalmente fechada, mas sim a vontade de Deus, que une as tribos entre si e as transforma em um povo unido com um forte sentido de solidariedade. É no nome de Yahweh e na aliança por ele sancionada que as tribos encontram o laço de união que se opõe às tendências centralizadoras do egoísmo tribal e cria elementos bem definidos de uma unidade com direito, culto e consciência histórica comuns. Não é de estranhar que numa nação surgida desses fundamentos, a idéia do Senhor da aliança exerça uma influência predominante: os interesses da totalidade do povo receberam sua força obrigatória, diante de cada um dos membros, única e exclusivamente pela lembrança da vontade divina da aliança, a qual submeteu a seus objetivos toda a vida do povo.⁹ É significativo que essa associação não apresente uma nítida linha de separação diante de elementos estranhos, mas sim que está constantemente assimilando outros que são fora.¹⁰ Para isso, o determinante não são os laços naturais, senão a disposição para se submeter à vontade do Senhor da aliança e fazer votos a esse Deus. O povo que assim nasce não é, pois, naturalmente o que recebe seu estatuto de vida da linhagem e da terra, mas é uma criação de Deus na história, uma comunidade espiritual¹¹ com uma ordem e uma força interior que lhe dão sua coesão e caráter. Assim, do foedus iniquum da aliança sinaítica surgiu efetivamente um domínio com um senhor e súditos; desde então paira no ambiente a idéia do reino de Deus. Mas não é esse termo, formado por analogia com a vida política, o que importa agora, mas sim as descrições autenticamente religiosas, que definem a situação especial do povo da aliança: o círculo de homens da aliança quando se reúnem seguindo ao chamado de Deus¹² se descreve como qāhāl e ‘ēdāh, ‘assembléia e comunidade’, designações religiosas que provavelmente provêm da vida destas antigas confederações religiosas que nós conhecemos melhor sob a forma grega de anfictionia.¹³ Uma designação mais geral, que não mantém relação alguma com cúlticos interesses, é o de’am (hā)’ elōhim¹⁴ ou ‘am yhwh,¹⁵ ou seja, um povo que tem unidade em função de sua condição de seguidores de um Deus em comum.¹⁶ Também segundo alguns, o termo Israel, significando Deus governa, como nome que abrange a confederação das tribos, teve desde o começo, um significado sacro-religioso e não político.¹⁷

    Sendo assim, isto significa que a existência da nação não podia se transformar em um fim em si mesma, mas sim que desde o primeiro momento estava sujeita a um fim superior, a uma idéia dominante, a saber: à realização da tarefa religiosa nacional. Se for verdade que essa tarefa muitas vezes por azar do povo — por exemplo, na guerra —, sempre esteve acima de todas as considerações utilitaristas, porque seu fundamento estava na vontade de um Deus zeloso que exige obediência. Assim, a idéia de uma aliança entre Deus e o povo, como expressão da nova relação com Deus, é apropriada para estabelecer uma ligação orgânica entre a nova fé e a verdadeira existência do povo, sem que aquela tenha de se achar reduzida a uma falsa dependência com relação à vontade de sobrevivência e de poder do povo. Não se fala de uma religião nacional no sentido usual do termo, já que na realidade não existe uma verdadeira nação. E, no entanto, a religião impulsiona, como uma grande força motriz, na direção de uma existência nacional e por isso mesmo não é percebida como algo inorgânico e estranho à vida do povo.

    d) Isso implica a conclusão de que a fé no Deus da aliança guarda uma íntima relação com a história. Assim como a fé está baseada, desde o começo, em um dado da história e vive constantemente dele,¹⁸ assim a história constitui o campo de atuação daquela: capta a vontade de Deus na formação social da vida do povo, e encontra a ação divina nos destinos da nação. Com isto, a história adquire uma importância que não existe nas religiões das antigas culturas. Se for verdade que também o antigo Oriente reconheceu, em acontecimentos isolados, a obra da divindade e experimentou neles sua justiça ou seu auxílio,¹⁹ nem sequer pensou em reconhecer na sábia ação divina a causa do acontecimento histórico ou em ordenar toda a realidade por meio de uma grande idéia religiosa; sua visão da atividade divina sempre esteve fortemente impregnada de idéias mitológico-naturalistas. Em Israel, contudo, o conhecimento do Deus da aliança e de sua ação libertadora despertou a capacidade de entender e apresentar o processo histórico, primeiro somente do destino do povo, e depois também de todo o mundo como obra da única vontade divina, até mesmo de se servir dos mitos naturais para desenvolver sua própria compreensão (vinculação de criação e história!).²⁰ Até que ponto essa interpretação da história colocava suas raízes nos acontecimentos fundamentais da época mosaica se percebe claramente no papel que, como paradigma da ação divina, desempenham nos cronistas, assim como nos profetas e nos juízes, a libertação do Egito e a posse da Terra Prometida.²¹ Dessa forma, a concepção da eleição e da aliança e, em estreita relação com ela, a lei divina, se transformou na linha determinante da interpretação israelita da história.²²

    e) Junto a essa relação de base entre religião e nação, na época em que a consciência nacional despertou com toda sua força e foi penetrando em todos os aspectos da vida, se dão certas garantias contra a confusão da religião com os interesses nacionais.

    Entre elas está, em primeiro lugar, a rejeição de toda concepção da relação com Deus no sentido de uma religião popular naturalista. O estabelecimento da aliança exclui a idéia, amplamente aceita e disseminada entre os povos vizinhos de Israel, de que entre o deus nacional e seus adoradores existe uma relação natural, seja de uma espécie de parentesco de sangue ou de uma ligação divina com o país mediante a qual o deus está também indissoluvelmente ligado a seus habitantes.²³ Esse tipo de religião popular, no qual a divindade é unicamente o ponto mais destacado da consciência nacional, o gênio nacional ou o mistério das forças naturais características de determinado país, ficam superadas, em princípio, pela idéia de aliança. A religião de Israel leva desse modo o selo distintivo de uma religião de eleição, entendendo essa expressão no sentido de que uma eleição divina é o que se contrapõe a qualquer tipo de religião natural.

    Não importa, que no rito da aliança pareçam ser influenciadas por concepções próprias de religiões primitivas. Nesse sentido, poder-se-ia alegar que a aspersão com sangue, do altar e do povo, no sacrifício da aliança, segundo Êxodo 24:6.8, se move na linha dos ritos misteriosos de renovação comunitária, como se conhecem por intermédio de muitos usos primitivos; e o mesmo se poderia dizer do banquete de aliança sobre o monte de Deus, de Êxodo 24, 9-11. A simples comparação com os primitivos ritos de aliança, nos quais pretende-se a mediação de um poder misterioso, manifesta a singularidade própria da idéia israelita da aliança. Uma característica invariável desses ritos é sua repetição constante, pois somente são eficazes no momento de sua realização. Ao contrário, o sacrifício da aliança israelita é sem repetição: já em sua primeira realização cria a relação de aliança para todo o tempo subseqüente.²⁴ Além disso, o rito dos povos primitivos, desde que seja feito corretamente, tem eficácia automática; lhe faltam o fundamento moral e a intencionalidade, que são essenciais no rito israelita. Finalmente — e isto está estreitamente ligado com o anterior —, os ritos primitivos não tendem a estabelecer uma comunhão pessoal entre Deus e o homem. Eles se realizam na transferência completamente impessoal de poder, não criando, assim, um relacionamento pessoal, mas que considerem a divindade como uma substância com poderes prodigiosos e de plenitude de vida. A aliança israelita, ao contrário, está totalmente impregnada da idéia de soberania, de natureza totalmente pessoal, a qual determina o novo tipo de relação e, se bem que não exclui as idéias de participação do poder e da vida, as admite somente enquanto dons que se concedem soberanamente. É também importante ressaltar, sobre isso, que a conclusão da aliança não é uma ação sem palavras que contém em si mesma seu próprio valor, mas sim que segue sempre acompanhada da palavra como expressão da vontade divina.

    Essa clara separação de toda idéia naturalista da relação com Deus se vê reforçada por outra conseqüência surgida da idéia de aliança: a dissolubilidade, por parte de Deus, de uma relação na qual ele entra livremente. Nega-se assim toda vinculação forçosa de Deus a seu povo: Deus existia antes do povo, é por natureza independente da existência deste e pode abandoná-lo quando ele se recusar a conformar com sua vontade.

    A idéia da aliança inclui também, ainda que de forma menos explícita, a defesa contra outro perigo: o da distorção legalista da relação que ela expressa, através da qual se pretende rebaixar tal relação ao nível de um pacto baseado na mútua prestação de contas entre sócios iguais. A liberdade com que Deus estabeleceu relações de aliança dentro da história serve para fazer lembrar aos homens que a natureza da aliança sinaítica é totalmente diferente da dos pactos humanos. Ela, enquanto dom gracioso, acentua o livre direito de Deus de dispor de tudo. Mas, para que essa lembrança seja eficaz, importa muito que a soberania da pessoa divina se mostre à consciência com tal força que, até diante deste Ser gracioso, seja natural se inclinar o homem surpreendido pelo medo e temor. Somente assim pode se excluir toda idéia de uma simples relação mercantil entre Deus e o homem, na qual tudo se reduziria a cumprir externamente as condições estipuladas. Não há dúvida alguma de que na mesma estipulação da aliança a idéia de soberania foi o fator de maior predominância: a manifestação do poder com que Yahweh acompanha o estabelecimento da aliança é o que deu ao culto, na época mosaica, esta natureza de prostração temerosa diante do Deus zeloso que não permite desprezo algum de sua majestade. O terrível poder de Deus que aplica suas armas, a lepra, a serpente e a peste²⁵ (cf. Êxodo 4:1-7; Números 21:6s; 11:33s) contra seu próprio povo, não deixa dúvida de que a aliança feita por Deus não é um refúgio seguro sob o qual alguém possa, astutamente, se servir do poder divino para seus próprios interesses. A aliança reinvindica a todo homem, chamando-o a uma entrega sem reservas.

    II. HISTÓRIA DO CONCEITO DE ALIANÇA

    Quanto mais importantes sejam, para a idéia geral de aliança, os aspectos característicos até aqui citados, tanto mais concretamente afetará a relação de aliança qualquer desprezo ou violação dos mesmos. Não é de estranhar, pois, que no longo processo de ajustamento da religião mosaica à fé e à cultura cananéia, seja também, nesse mesmo ponto, em que a batalha oscila entre a assimilação ou repúdio, levando, em alguns casos, a uma desfiguração ou a uma melhor compreensão e aperfeiçoamento do conceito de aliança. Portanto, se faz necessário percorrer pela história da idéia de aliança se quisermos chegar a entendê-la adequadamente.

    1. Problemas de Israel diante da aliança

    No processo de assimilação que experimentou a religião de Yahweh em Canaã, notam-se três elementos que colocaram em perigo a aliança: a aproximação das concepções cananéias da divindade, o desenvolvimento exclusivo do aspecto cultural da religião e a falsa independência do poder nacional.

    a) A imagem popular de Yahweh, influenciada pelo contato com as divindades benfeitoras cananéias, transforma o conteúdo da relação com a divindade em comunicação de vida sobrenatural a seus adoradores. Dão, assim, especial importância as idéias naturalistas de uma comunhão com o poder divino entrando por meio do ritual na esfera do santo e na experiência sensível do impacto surpreendente desse poder divino em uma exaltação estática. Diante desse misterioso poder de vida, perde terreno a vontade moral da divindade, e por conseguinte, também sua distância radical de todo o humano. A distância aberta, entre Deus e o homem, pela terrível majestade divina, fica eliminada graças à ênfase colocada num parentesco e comunhão psicofísicos; somente em ocasionais acessos de ira sem motivo mantém alerta o sentido da distância. Com isso se põe em questão a tradicional importância da idéia de soberania: o deus do bezerro, do vinho, da prostituição sagrada, perdeu os direitos absolutos que assistem a quem está acima da natureza.²⁶ Isto significa a debilitação, quando não a perda, de um pressuposto imprescindível da idéia de aliança; se abre uma fenda por onde é fácil cair na deformação e no abuso da aliança: Deus fica vinculado às necessidades humanas.

    Nessa mesma linha, deveríamos colocar a convicção segundo a qual a divindade deve ser considerada como restringida dentro dos limites concretos de um país estreitamente ligado ao povo. Sempre que o mistério da natureza se transforma em elemento categorial do qual se forma o conceito do poder divino, este fica, necessariamente, condicionado pelos mesmos critérios de localização pelos quais se regem os fenômenos naturais. Deus é simplesmente aquele que garante e distribui os bens que constituem o patrimônio do país. O conceito de aliança perde nesse contexto sua especial dimensão moral, ao se considerar como uma das funções essenciais da divindade a obrigação de outorgar seus dons aos habitantes do país. Existem evidentemente certas condições sem as quais fica impossível desfrutar o favor divino; mas isto surge como normal exigência do papel que se concede à divindade de atuar como protetor da vida natural e social do povo. De fato, pois, não se pode dizer que fique garantida à divindade uma existência com autêntica independência frente à nação e o povo. Entra, ao contrário, no centro de seus interesses, não resistir às exigências dos homens, mas sim se render à suas demandas naturais. Neste contexto resultaria totalmente incompreensível à imagem de um deus a se opor à resistência nacional de um povo, sacrificando a existência deste a fim de que a sua vontade seja cumprida. A aliança transforma-se na expressão dessa realidade que se impõe: Deus e o povo se necessitam mutuamente, não podendo um viver sem o outro.

    b) Essa transformação da relação de aliança num sistema especial de comunhão topograficamente limitada a partir de exigências impostas pelo mesmo conceito de Deus, receberia um empurrão, de certa maneira decisivo, com o desenvolvimento exclusivista do aspecto cultual da religião, ao estilo dos cananeus e, em geral, dos povos do Oriente Próximo. A consolidação política, unida à crescente importância que foram requerendo os grandes santuários com sua elite sacerdotal, favoreceu o auge e a confirmação do aparato externo da religião, o qual influenciou poderosamente no pensamento e na conduta religiosa. A preponderância natural de um rico desenvolvimento cúltico reduziu a prática religiosa ao campo do cumprimento externo: sacrifícios, celebrações, peregrinações, jejuns, etc., e trouxe consigo o esquecimento do aspecto ético-social das exigências divinas. Com isso, aumentou o perigo de que o culto se degenerasse em um opus operatum e que seu valor se medisse simplesmente pela grandiosidade da ação. A profunda mudança que a cultura israelita conheceu nos séculos oito e sete, com todas as suas divisões sociais, contribuiu para que tal perigo crescesse. Assim, a imagem que os profetas nos oferecem da piedade de seu povo apresenta os traços típicos de uma religião de massa com todos os seus aspectos sombrios. Para a idéia de aliança, isso supôs a exteriorização da relação com Deus, convertendo-a em uma religião do do ut des*, na qual as ações do homem devem responder sempre aos dons divinos. Essa degradação legalista da relação de aliança para um tratamento mercantil entre duas pessoas juridicamente iguais priva a relação com Deus de sua vitalidade e leva o homem a uma contabilidade desrespeitosa das obrigações divinas, tornando impossível pensar em uma entrega confiante. Falsificam-se, desse modo, os valores religiosos da aliança original, que fica reduzida a um refúgio de egoísmos irreligiosos.

    c) Essa degradação foi atingida por não se ter conseguido uma resposta satisfatória ao conflito entre um poder nacional, que havia alcançado sua consolidação estatal, e a vontade de Deus com seus imperativos absolutos. Um despotismo consciente, apoiado na força das novas formas de vida política, já havia chegado desde o começo a se enfrentar com as bases sociais da aliança de Yahweh.²⁷ A monarquia que a princípio surgiu por inspiração carismática, se lançou de forma cada vez mais consciente, em parte pela força das circunstâncias e também pela influência cananéia e de outros modelos estrangeiros, pelos caminhos da tirania hereditária, e ainda que esta somente tenha chegado a ser realidade tardiamente, a forte tendência que a impelia não pôde evitar fortes choques com os representantes da vontade de Yahweh. Dada a fundamentação religiosa das pretensões monárquicas, essa situação de conflito, declarado ou não, teve sua importância para o desenvolvimento do pensamento religioso. Ao utilizar o título de filho de Deus, o rei atribuía ao posto de governante, que havia conseguido por meios puramente naturais — como membro da dinastia ou chefe dos exércitos —, a prerrogativa de supremo funcionário religioso, prerrogativa que na realidade somente seria justificada no caso de o aspirante ao trono ser eleito por via carismática. Dessa maneira conseguia, por sua vez, ocultar seus fins dinásticos e imperialistas egoístas e vincular estreitamente à instituição nacional como tal a assistência da aliança, fazendo com que Yahweh surgisse como aliado natural da grandeza do poder nacional. A aplicação do título de rei a Yahweh e a festa da entronização, com sua renovação regular do reinado de Deus sobre a terra, deveriam dar novo impulso a essa associação de idéias, pois desde o momento em que a relação rei-povo se aplica à relação Deus-povo, esta aparece como algo simples e plenamente dada, sem que se perceba sua fundamentação numa ação especial de condescendente benevolência. A partir de tal perspectiva, a aliança deixa de ser vista como o dom insondável do Deus que está acima de toda grandeza terrena, que em sua soberania dispõe de seu povo para se transformar na formulação mais ou menos modificada de uma relação natural entre dois que se necessitam mutuamente. Com isso se endurece a crítica da vida nacional a partir da religião e se favorece a identificação entre interesses nacionais e a vontade de Deus. Todo o sentir popular da época dos profetas²⁸ e também o espírito de muitas narrações patriarcais — durante seu período de transmissão oral quando ainda não haviam experimentado as correções de sua atual redação — dão conta da debilitação das precauções contidas na idéia de aliança contra qualquer concepção naturalista sobre Deus.

    A ameaça que a assimilação ao pensamento cananeu atribuiu para a concepção original de aliança obrigou os responsáveis espirituais da teologia javista a uma nova postura.

    2. A reformulação do conceito de aliança

    a) Em primeiro lugar, temos de nos referir à ampliação e explicação do conceito de aliança entre os primeiros narradores do Pentateuco, que têm enormes conseqüências: a exposição javista e a eloísta da história patriarcal apresentam, tanto em sua formulação externa, quanto no enfoque de seu conteúdo, um significativo retroceder da idéia da aliança para a pré-história do povo. Com ela, pretendem pôr em evidência como na história dos patriarcas já se encontra a base da consciência de eleição do povo de Israel. No mesmo material se apresentam sem dúvida os pressupostos necessários para essa interpretação, pois nele se falava de uma migração dos patriarcas desde a Mesopotâmia até Canaã movida por motivos religiosos e pela natureza peculiar de seu culto a Deus. Mas as lacunas e saltos dentro da tradição e a forma própria que as narrações patriarcais apresentam em cada um dos autores do Pentateuco mostram claramente que a imagem geral da época dos patriarcas recebeu seu cunho da idéia de Deus criada pela aliança mosaica. J¹ expõe a história da eleição divina seguindo uma cadeia de bênçãos que ligam a posição preeminente de povo e a possessão da terra à descendência de Abraão²⁹; J² indica a situação de privilégio de Abraão e sua descendência³⁰ em uma progressão narrativa desde o sacrifício expiatório (Noé) até o sacrifício da aliança (Abraão) cuja singular execução recorda a conclusão da aliança sinaítica³¹; finalmente, E vê como os patriarcas vão sendo retirados de seu ambiente pagão mediante uma série de provas acolhidas na fé e na obediência.³² Numa palavra, toda essa tradição mais antiga encontra seu sentido mais profundo ao fundamentar a consciência de eleição de Israel na eleição divina de seus antepassados.

    Ao se querer buscar uma razão para essa aplicação aos antepassados da relação de aliança de base histórica (aplicação que de certo modo se converte em rival da aliança mosaica³³, e por isso silenciada em alguns círculos populares, por exemplo, pelos profetas), não há necessidade de pensar em uma intenção política³⁴ que, para manter o ideal do grande Israel num povo dividido em dois reinos inimigos, apelara ao seu destino divino; sendo assim, se deve recorrer, à influência histórica da idéia de aliança, cuja dinâmica interna submeteu umas tradições, desordenadas e marcadas de elementos estranhos, à idéia final da eleição divina, convertendo-as em uma cadeia sistemática de acontecimentos para chegar a conceber a história do povo em sua totalidade como obra de Yahweh.

    De outro lado, não se pode menosprezar a ânsia de retrospecção ocasionada pelo impressionante auge do poderio israelita sob os reinados de Davi e Salomão e que tende a explicar a situação de Israel no meio das nações ligando sua história à cadeia da história universal. Na história dos patriarcas, havia que salientar a peculiar predestinação divina pela qual Yahweh, desde os inícios mais insignificantes, havia criado um povo e desde o primeiro momento construíra sua existência sobre os seus maravilhosos atos. Aqui encontrou também fundamento a pretensão imperialista de Israel: o Deus dos pais é, por sua vez, o Criador, que precisamente enquanto senhor da humanidade faz sua eleição e realiza seu plano com Israel.

    Deste modo, a introdução das idéias de aliança e eleição na história patriarcal se transforma em firme contrapeso de uma estreita interpretação particularista e, não menos, da degradação naturalista da relação de aliança. O Deus da aliança é o Deus do mundo, cujos planos ultrapassam os limites de Israel; o poder do povo é o efeito não merecido da eficácia das promessas feitas aos antepassados e exige humildade; a eleição, como demonstra o caso dos patriarcas, requer do homem a resposta de uma obediência humilde e uma confiança incondicional que deve acreditar suportando provas difíceis. Essa viva interpretação da relação de aliança, que encontrou rica continuidade em Deuteronômio e P pôs, sem dúvida, em movimento, contra o endurecimento da fé na eleição segundo sua formulação legalista e de frieza dogmática, fortes energias religiosas, que, todavia nas épocas exílicas e pós-exílicas demonstram seu vigor; e depois da ruptura da aliança mosaica, elas se encarregaram de fortalecer a confiança em um dom de aliança totalmente gratuito por consideração aos patriarcas.³⁵

    b) Continua sendo um fenômeno estranho que, no tempo em que os profetas clássicos criticavam duramente a religião popular israelita, o conceito de aliança passara ao segundo plano. Certamente é um exagero afirmar com Kraetzschmar que os profetas anteriores a Jeremias não sabiam nada sobre uma relação de aliança entre Deus e Israel; na realidade, Oséias fala duas vezes (6: 7; 8:1) do berit que Israel violou. Mas vale a pena notar que tampouco ele põe a ênfase na idéia de aliança, fazendo uso de outras categorias para destacar o relacionamento religioso. Assim como Isaías e Miquéias, Amós entende que a relação de Israel com Deus partiu da livre vontade deste como um dom insondável; por exemplo, quando o profeta — Amós 3:2 — expressa claramente o orgulho de todo o povo falando de como Yahweh elegeu a Israel acima de todos os povos. Mas, todavia, é mais surpreendente que precisamente em tais momentos, quando a palavra aliança vem a nossos lábios, os profetas não a utilizem.

    Talvez haja nesse fato estranho certa justificação da solução radical de Kraetzschmar; somente resistimos, no entanto, a crer que nesse terreno se possa chegar tão longe com o bisturi da crítica literária. Tem de se considerar, além disso, a atitude geral dos profetas frente ao tesouro espiritual de seu povo. E para isso é de importância decisiva que saibamos ver como esses indivíduos reformadores se opõem sistematicamente à exterioridade morta da ação religiosa e à rotina mecânica do pensamento religioso. Opõem-se à insistência em seguir estatutos e ordenanças, usos e costumes estabelecidos, assim como na execução escrupolosamente organizada dos serviços prestados a Deus, tendo como garantia sua ação benéfica como retorno. Amós investe tanto contra as intermináveis prerrogativas e peregrinações aos santuários célebres quanto contra a suntuosidade dos serviços nos templos;³⁶ Oséias reprova os sacerdotes que estão fazendo riquezas às custas da consciência de pecado de seu povo e se aproveitam de seus impostos;³⁷ Isaías denuncia publicamente a assídua visita ao templo e as magnificentes orações feitas em seus recintos, como preceito humano rotineiro.³⁸ O que todos eles destacam é a nota pessoal da relação com Yahweh; isto é que, segundo eles, está faltando, e por isso compelem com toda energia e paixão para que reine o sentido de honra, de amor, de entrega. Por conseguinte, descrevem a ação de Yahweh como a ação de um amor e uma fidelidade totalmente pessoal que, com ardente vivacidade, pretende ganhar a confiança do povo e espera uma resposta espontânea, um movimento originado do mais profundo do coração.³⁹ Nessa luta contra todo opus operatum, a idéia de aliança podia prestar-lhes pouca ajuda, porque, como vimos antes, o ponto fraco dessa idéia estava precisamente em que sua natureza jurídica a fazia passível de ser apresentada como garantia da vida religiosa e até de converter-se em lugar garantido para o parasitismo de um do ut des religioso.

    Por isso se compreende que, quando querem referir-se ao fundamento da situação de privilégio de Israel, os profetas não falem da aliança sinaítica, mas sim da libertação do Egito. Nada podia ser-lhes melhor para dar todo o realce à graça antecedente de Yahweh e evitar a perversão da sua atuação, tornando-a presa à estipulações da aliança. No mais, a idéia do senhorio de Yahweh, tão do agrado de Isaías, se relaciona bem com a aliança, pois esta, como assinalamos, desemboca no conceito do senhorio de Deus.

    c) As coisas se apresentam diferentes a partir da reforma de Josias. Na lei deuteronômica, e em todo o volume de escritos nascidos sob a influência de suas diretrizes, nos encontramos rapidamente com um conceito do termo berit empregado com uma ênfase especial e parcial. Naturalmente, ninguém pensará que esse termo tenha caído no esquecimento; existiam, ao contrário, determinados grupos que o cultivavam; os mesmos que tinham a seu cargo a torá (cf. Dt 33:9). Mas a popularidade que desfrutou no reinado de Josias é claro que deveu-se a uma nova e geral situação espiritual surgida graças à atividade dos profetas. Trata-se do objetivo de levar a efeito uma reforma radical de todo o ser nacional que volte a fazer viva a idéia da aliança divina. Com o descobrimento do livro da aliança (sēper habberit 2 Reis 23:2) a época de Manassés foi estigmatizada como uma indigna ruptura da aliança, e a nova aliança que o rei Josias firmou, em cumprimento da lei, significou ao mesmo tempo a volta à antiga aliança de Deus. Não

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