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Cultura de direita
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E-book287 páginas4 horas

Cultura de direita

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A cultura de direita é uma cultura na qual o passado é uma espécie de mingau homogêneo que pode ser preparado e conservado de maneira muito útil. Cultura em que prevalece uma religião da morte ou uma religião dos mortos exemplares. A cultura em que se declara que existem valores não questionáveis, indicados por palavras iniciadas por letra maiúscula, especialmente Tradição e Cultura, mas também Justiça, Liberdade e Revolução. Em suma, uma cultura feita de autoridade, de segurança mitológica em relação às regras do conhecimento, do ensino, do comando e da obediência. A maior parte do patrimônio cultural, mesmo das pessoas que não querem, hoje, de forma alguma, ser de direita, é um resíduo cultural de direita. Nos últimos séculos, a cultura protegida e ensinada foi, sobretudo, a cultura de quem era mais poderoso e mais rico, ou, mais exatamente, não foi, a não ser minimamente, a cultura das pessoas mais fracas e mais pobres. É inútil e irracional ficar escandalizado com a presença desses resíduos, no entanto é necessário tentar saber de onde eles vêm.

Original estudioso da mitologia moderna, Jesi dedica os estudos aqui reunidos a identificar as matrizes subterrâneas e a linguagem das «ideias sem palavras» da cultura de direita entre os séculos xix e xx; e o faz desmascarando os clichês, fórmulas e slogans que aludem a um «vazio» a ser preenchido com materiais mitológicos, um núcleo mítico profundo e incognoscível, mas fundador e modelador, ao qual se referem os «valores não questionáveis» de Tradição, Passado, Raça, Origem, Sagrado. Partindo dessa perspectiva, Jesi investiga o esoterismo de Julius Evola e o luxo retórico de D'Annunzio, as páginas de Liala e Pirandello, os aparatos linguísticos e icônicos subjacentes ao fascismo e neofascismo, nazismo e racismo. Esta primeira edição brasileira de um livro ainda muito atual é acompanhada por três textos inéditos e uma entrevista.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2022
ISBN9786559980185
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    Cultura de direita - Furio Jesi

    I. CULTURA DE DIREITA E RELIGIÃO DA MORTE

    O PASSADO, O ESPÍRITO E A «HORA DO DESTINO»

    Quem folheia os primeiros anais de uma revista como Deutsche Kunst und Dekoration [Arte e decoração alemã], que, no início do século, gozou de grande prestigio e teve um certo número de assinantes também na Itália (talvez para um artista italiano, sobretudo para um arquiteto, ter sua coleção era prova de invejável atualização cultural e emprestar os fascículos aos amigos significava expor-se, sem dúvida, a um furto), pode surpreender-se com o caráter singularmente híbrido da produção ali exposta. Em fotografias em preto e branco, que ainda trazem, em um canto, a sigla em negativo do fotógrafo ou do zincógrafo, e em lindos espaços com textos em cores, são reproduzidos quadros, painéis decorativos, estátuas, placas em relevo, vitrais, projetos de edifícios e de interiores, de forma alguma homogêneos ao sistema gráfico Jugendstil¹ da revista; o Jugendstil está bem representado, mas, especialmente, nos frisos, nas molduras, nos desenhos dos arquitetos, enquanto a seleção de pintura e de escultura mistura os alunos de Lenbach² e os de Böcklin,³ mais um longo cortejo de artistas que se voltam, por assim dizer, para o passado: tetos afrescados com faunos, máscaras silênicas e mulheres exuberantes vestidas de ninfas, mas também tapeçarias e vitrais, com certa profusão heráldica, de cavaleiros à moda antiga e de meninas serenas neogóticas.⁴ O Jugendstil determina, quase sempre literalmente, as molduras desses materiais, e a coisa mais desconcertante é justamente a legitimação de vanguarda que ele proporciona institucionalmente, dada a arte gráfica da revista, ou por piscadelas (perguntamo-nos se não eram involuntárias) de ornamentos e de caracteres tipográficos, vinhetas e maiúsculas iniciais, a uma precária relação de devoção pelo antigo, que, das vinhetas Biedermeier das revistas para as famílias,⁵ procede diretamente ao neogótico e ao neorrenascentista das silhuetas ascéticas, das insígnias, das pinturas de gênero e das armaduras, das orgias dionisíacas no teto da sala de baile, ou, até mesmo, da grande cervejaria.

    Portanto, materiais muito heterogêneos, mas que compõem um quadro compacto de uso legítimo e luxuoso dos produtos culturais, cujo consumo pode efetivar-se como em um menu: a cada prato corresponde um estilo, uma imersão em uma época do passado bem definida (tão bem definida que provavelmente jamais tenha existido), uma profecia de futuro que responderá, verdadeiramente, a suas evocações para que os valores do passado, sobre os quais se baseia para dar força ao chamado dos dias por vir, sejam valores eternos e metamórficos.

    Há, no entanto, quem se lamente: nas ciências, prevalece, há tempos, uma especialização que é, ao mesmo tempo, esterilidade e morte, porque significa progressiva incapacidade de capturar o sentido da vida em sua completude, incapacidade de perceber o tipo de circulação unitária do existente que aparece nas iluminações, declaradas eminentemente alemãs, de Leibniz e de Goethe, no claro-escuro «baixo-alemão», de Rembrandt,⁶ e que se torna invisível quando é submetido às «lentes côncavas do finalismo».⁷ A especialização racionalista do conhecimento científico, por um lado, expõe, com muitas evidências nítidas aos olhos do observador, imagens do passado que fundam sua verdade em um claro-escuro atemporal; por outro, cria barreiras transparentes, porém insuperáveis, entre as forças vivas do passado e os homens do presente. O risco é, aliás, que essas barreiras transparentes e insuperáveis também se interponham entre o presente e as forças criativas do futuro: que os homens do presente reencontrem-se — por sua culpa, deformação e fraqueza — dentro de nichos hermeticamente fechados ou vitrines de museus, retirados da circulação da vida universal, incapazes de apreender os ritmos que a dividem e, portanto, também incapazes de apreender «a hora de seu destino». Essa expressão é do etnólogo Leo Frobenius, cujo pensamento sobre a crise das ciências europeias (e, particularmente, das ciências alemãs) causada por excesso de especialização sintetizamos nas linhas anteriores. A «hora do destino» tornou-se expressão corrente na Alemanha nos anos imediatamente anteriores à Primeira Guerra Mundial: o livro do americano Homer Lea, The Day of the Saxon, foi traduzido, em alemão, em 1913, pelo conde E. Reventolw, com o título Des Britischen Reiches Schicksalsstunde [A hora do destino do Império britânico]; o título foi logo retomado pelo coronel H. Frobenius (não confundir com o etnólogo), que escreveu Des Deutschen Reiches Schicksalsstunde [A hora do destino do Império alemão], célebre panfleto do militarismo de Guilherme II:⁸

    Basta passear pelas ruas de Berlim para ver exposto, nas vitrines de todas as livrarias, o escrito de Frobenius, Des Deutschen Reiches Schicksalsstunde, com o telegrama de recomendação do grande senhor (o Kronprinz). Frobenius nutre os mesmos sentimentos de Friedrich von Bernhardi (autor de Deutschland und der Nächste Krieg): sua obra demonstra que é necessário iniciar o ataque antes que seja tarde; visto que os outros querem nos atacar, precisamos precedê-los e atacá-los.

    Leo Frobenius, o etnólogo, que em 1903 já havia compartilhado e aprovado com sua autoridade o princípio de ataque preventivo,¹⁰ publicou, depois, em 1932, Schicksalskunde in Sinne des Kulturwerdens (Teoria do destino no sentido do devir cultural), que faz ecoar o título do panfleto de H. Frobenius. Seria errado identificar, sem dúvida, o comportamento de Leo Frobenius diante das «ciências alemãs» com o comportamento que assumiriam os nazistas. O conceito de «ciências alemãs» tornou-se de uso corrente durante o Terceiro Reich, especialmente em contraposição às «ciências judaicas» (as teorias de Einstein e de outros cientistas), e, nessa direção, estranha a Frobenius, também se dirigiam acusações de homens da direita italiana, como Julius Evola:

    Mas, aqui, também vale chamar a atenção para a obra destruidora que o judaísmo, assim como segundo as disposições dos Protocolos, efetuou no campo propriamente cultural, protegido pelos tabus da Ciência, da Arte, do Pensamento. Judeu é Freud, cuja teoria pretende reduzir a vida interior a instintos e forças inconscientes, ou a convenções e repressões; também o é Einstein, com o qual entrou em moda o «relativismo»; do mesmo modo, Cesare Lombroso, que estabeleceu equações aberrantes entre gênio, delinquência e loucura; judeu é Max Stirner, o pai do anarquismo individualista, assim como são Debussy (como meio-judeu), Schönberg e Mahler, principais expoentes de uma música da decadência. Judeu é Tzara, criador do Dadaísmo, limite extremo da desagregação da chamada arte de vanguarda; também são judeus Salomon Reinach e muitos integrantes da conhecida escola sociológica, na qual há uma interpretação degradante das antigas religiões.¹¹

    Um conceito de «ciências alemãs» já estava, no entanto, amplamente amadurecido no período guilhermino,¹² no âmbito das reflexões sobre o «estilo alemão» de todas as formas de Kultur, e havia assumido um primeiro e explícito aspecto político quando cientistas como Wilhelm Conrad Röntgen, Ernst Haeckel, Wilhelm Wundt (e outros homens de cultura, escritores, artistas) haviam lançado, em 3 de outubro de 1914, o Aufruf an die Kulturwelt [Apelo ao mundo da cultura], para colocar sobre a balança o peso de seus nomes e defender a causa da Alemanha «agredida».

    No fim de sua vida, em 1933, um ano depois de Schicksalskunde, Leo Frobenius, dando um passo atrás, escreveu o texto abaixo, que, de acordo com seu ponto de vista, soava otimista:

    Neste período, entre milhões de noções singulares, aprendemos que a transformação da vida orgânica foi interrompida. Só agora ficou claro para nós que faunas inteiras alternaram-se […], que o desaparecimento está sempre ligado ao mesmo fenômeno, isto é, à excessiva especialização. […] Extremamente especializada também é a visão dos europeus de nosso tempo. Atrofia-se, como se atrofiaram, um dia, os trilobitas moribundos. E, em nós, alvorece uma nova orientação. A imagem da metrópole com milhares de edifícios empalidece. Outra começa a mostrar seus traços. O pensamento muito especializado do finalismo morre; e o impulso de compreender o sentido da vida movimenta os jovens membros do corpo.

    À dispersão do múltiplo, sucede a comunhão na unidade.¹³

    O texto foi escrito, como apontamos, em 1933, precisamente em agosto desse ano; portanto, havia seis meses que Hitler era chanceler do Reich. Leo Frobenius (amigo e devotíssimo de Guilherme II)¹⁴ e os nazistas nunca se deram bem: é importante mencionarmos isso, antes de acrescentarmos a próxima citação tirada da obra de

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