Pátria nossa a cada dia: O Sesquicentenário da Independência e a construção da nação
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Sobre este e-book
Desse modo, convido os leitores a refletir como as festas cívicas foram e são importantes para a formação da nação. Elas são parte de um projeto específico que se realiza mediante a criação de rituais, que têm como finalidade definir, por meio de estratégias, a legitimação desse mesmo projeto. Nesse sentido, o caso brasileiro não foge à regra, pois essas efemérides têm a intenção de criar uma identidade comum entre os diversos segmentos que constituem a população do vasto território nacional. Este momento foi moldado com muito esmero pelas elites políticas para se tornar o marco de fundação da nação brasileira, devendo ser comemorado todo ano.
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Pátria nossa a cada dia - Fabricio de Sousa Morais
CAPÍTULO 1 O DISCURSO DA GRANDIOSIDADE
Uma análise das relações políticas e das festas cívicas a partir do grande irmão do norte (Aprox. 1970-1975)
Nas páginas seguintes, busco expor o modo como o diplomata Philip Raine, no seu livro Brazil : Awakening giant (1974), reflete sobre a sociedade brasileira daquele período. Em seguida, utilizo-me de alguns jornais dos Estados Unidos da América para entender o olhar estrangeiro sobre as festividades do Sete de Setembro e a partir deles apreender como os periódicos enxergaram a nação brasileira.
1.1 BRASIL: O DESPERTAR DO GIGANTE
Philip Raine foi Assessor de Relações Públicas do Gabinete de Assuntos Interamericanos do Departamento de Estado, atuando desde janeiro de 1952 (como está dito no Office of the historian do governo estadunidense). Teve como ponto de partida para o seu livro o tempo que viveu no Brasil, períodos, que ele mesmo dividiu em três: 1932, 1955-1962 e 1965-1967. Nesses anos, nos trópicos, ocupou alguns cargos na diplomacia: foi conselheiro político na Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro; esteve em Brasília, no ano da sua fundação, como diretor-responsável do Gabinete da Embaixada; e também foi, no último período citado, encarregado interino de negócios da Embaixada brasileira.
Ele, é preciso dizer, não me parece ter sido uma figura de destaque no cenário diplomático daquele período. Essa afirmação toma como base as escassas informações conseguidas sobre sua atuação no Brasil ou em algum outro país²⁹. Mesmo no site do Office of the Historian, as informações se limitam à descrição da sua função e de alguns poucos documentos de sua autoria. Dentre estes, me chamou atenção um despacho da Embaixada brasileira, datado de 13 de dezembro de 1960, que trata do futuro governo do presidente eleito Jânio Quadros. Nele, Raine tenta apontar os caminhos que essa administração tomará, especialmente no que diz respeito às relações com o seu país. Tarefa que ele diz ser bastante complicada, nas suas palavras:
Os esforços para antecipar o curso de ação que Jânio Quadros venha a exercer como presidente é complicado, não só pela sua conhecida imprevisibilidade [menos de uma linha do texto original continua secreta]³⁰ mas também pelo fato de que, exceto por um mínimo exigido pelas circunstâncias, ele aparentemente não confia em ninguém³¹ (RAINE, 13 dez 1960, p. 793-794).
Esse trecho chamou minha atenção pela capacidade de Raine em atentar para a imprevisibilidade do futuro governo brasileiro e o caráter personalista de Quadros. Isso mostra que o autor tinha um conhecimento razoável do cotidiano político do país. O tom geral do documento é de preocupação e um dos motivos apontados é a falta de interesse do futuro presidente em se alinhar com a política dos EUA ou, sequer, de fazer uma visita a este país. Na conclusão, é feita uma apreciação geral das possibilidades que o governo brasileiro poderia oferecer:
No entanto, [menos de uma linha do texto original continua secreta] se tudo correr razoavelmente bem economicamente e no campo externo, Jânio pode e, provavelmente, terá um bom desempenho para o Brasil – e em um período mais longo, talvez, sobre o Hemisfério Ocidental. Além disso, [veremos] se ele é capaz de deter o crescimento do fidelismo neste país e nos outros. Ele é, sem dúvidas, consciente do fidelismo e sua ameaça aos governos constituídos e Cuba pode empurrá-lo [para uma situação] muito difícil. Melhor do que a maioria dos líderes latino-americanos hoje, ele pode enfrentar o fidelismo com suas próprias armas. Por outro lado, ele estava genuinamente impressionado com a revolução cubana, acredita que os Estados Unidos tem sido e são economicamente imperialistas para a América Latina (por exemplo, que o Departamento de Estado constituiu-se o principal defensor dos negócios americanos no exterior, para o bem ou para o mal) e, provavelmente, espera que o novo governo dos EUA mude a esse respeito. Ele também está ciente de que a transição do Brasil de uma nação atrasada e subdesenvolvida não pode ser adiada, sem o grave perigo de explosão social³² (RAINE, 13 dez. 1960, p. 796).
Nesse segundo trecho, Raine chega à conclusão de que ocorrerão mudanças nas relações entre os dois países, porém as linhas gerais da atuação brasileira permanecerão de acordo com os principais interesses dos EUA. Mesmo porque Quadros não precisaria se tornar um aliado direto para cumprir a sua principal tarefa, dentro do contexto da Guerra Fria, que era combater o avanço do comunismo – no documento reduzido ao termo fidelismo, circunscrevendo-o aos limites da ilha de Cuba.
Se na primeira citação Raine demonstra certa capacidade de previsão ao, curiosamente, atestar a imprevisibilidade dos anos, ou melhor, dos meses que estavam por vir. No segundo trecho, dentre outras assertivas, ele arrisca prever uma futura importância de Quadros para o Brasil e, posteriormente, para o Ocidente, nesse exercício o malogro é evidente.
Nesse jogo de erros e acertos me cabe o lugar mais cômodo, o de quem, pela distância temporal, pode averiguar quantos pontos
o diplomata com lampejos de vidente acertou. Não acredito ser essa a função do historiador. Mais estimulante é pensar a história a partir dos seguintes parâmetros:
Uma história que fosse feita apenas com testemunhos não criticados e retrabalhados seria uma história que perderia sua coerência e sua veridicidade. Uma história que não levasse em conta a testemunha e a irrupção da singularidade de sua situação seria uma história que recusaria o excesso, o desvio, o deslocamento, as paixões sangrentas, grandiosas ou infames (FARGE, 2011, p. 22).
O primeiro ponto dessa citação me serve para atentar à necessidade de realizar a crítica às fontes, percebendo o lugar de produção do documento – o Departamento de Estado dos EUA – e a ideia de verdade que ela transmite. O segundo me faz atentar para aquilo que não estava previsto no roteiro
dos acontecimentos, isso aparece na tentativa de Raine em criar uma projeção de futuro, considerada necessária, já que o seu escrito tem uma função pragmática: realizar um prognóstico do governo e da sociedade brasileira, tentando tornar previsíveis os fenômenos humanos e diluindo-os para alcançar o seu objetivo.
A opção por tomar Awakening giant como fonte principal pode parecer obtusa. Afinal, é apenas mais um livro perdido em uma estante qualquer, que não parece ter conhecido grande repercussão à época de seu lançamento e que representa uma visão de mundo, condicionada a determinada época e a um lugar social. Porém, creio que uma obra individual pode ser tomada como uma representação de uma parcela da sociedade estadunidense ligada aos interesses do Estado. Essa abordagem busca fugir da oposição, bastante comum por sinal, entre o indivíduo e a sociedade e se aproxima da profícua ideia de uma sociedade de indivíduos
, em que essa distinção não pode ser pensada como dada, como a-histórica (cf. ELIAS, 1994 B, p. 129-134). Na sua vasta obra, Norbert Elias estudou a relação entre o eu e o nós, entre o indivíduo e a sociedade, se preocupando com a interdependência entre eles e a sua configuração. Vejamos nas suas palavras:
A imagem do homem como personalidade fechada
é substituída aqui pela de personalidade aberta
, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto ou total) de autonomia face a de outras pessoas e que, na realidade, durante toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente delas. A rede de interdependência entre os seres humanos é o que os liga. Elas formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que, conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens a imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista básico, desaparece a cisão na visão tradicional do homem. O conceito de configuração foi introduzido exatamente porque expressa mais clara e inequivocadamente o que chamamos de sociedade
que os atuais instrumentos conceituais da sociologia, não sendo nem uma abstração de atributos de indivíduos que existem sem uma sociedade, nem um sistema
ou totalidade
para além dos indivíduos, mas a rede de interdependência por eles formada (ELIAS, 1994 A, p. 249).
A citação explicita conceitos que serão muito caros para a minha análise, destaco a seguinte formulação: a ideia de que a sociedade deve ser entendida como uma sociedade de indivíduos formados na configuração de maneira interdependente³³. Por isso, Awakening giant não é apenas um relato individual sobre os diferentes aspectos do Brasil, mas é, também, fruto de uma configuração social complexa – os Estados Unidos da América que vivenciavam o clima da Guerra Fria –, construída na interdependência entre os indivíduos. Dessa forma, abre-se um caminho para pensar a conjuntura em que estão inseridas as festividades do Sesquicentenário da