A Revolução dos Bichos
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Sobre este e-book
A revolução contra os seres humanos é um sucesso, e os animais se organizam a partir de Sete Mandamentos que constituem o Animalismo. De acordo com os princípios desse regime, todos têm direito a viver em harmonia.
Estruturada como um conto de fadas, a fascinante obra põe em evidência, com perspicácia e criticidade, temas relacionados aos regimes políticos totalitários e ao culto às personalidades, à mistificação e à deformação da realidade pelo poder político, bem como aos riscos da liberdade individual no mundo contemporâneo.
George Orwell
George Orwell (1903–1950), the pen name of Eric Arthur Blair, was an English novelist, essayist, and critic. He was born in India and educated at Eton. After service with the Indian Imperial Police in Burma, he returned to Europe to earn his living by writing. An author and journalist, Orwell was one of the most prominent and influential figures in twentieth-century literature. His unique political allegory Animal Farm was published in 1945, and it was this novel, together with the dystopia of 1984 (1949), which brought him worldwide fame.
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A Revolução dos Bichos - George Orwell
Prefácio
os porcos são os outros
Ao estabelecer um patamar do absurdo e realizá-lo na ficção, um escritor parte da premissa de que existe uma linha imaginária do processo de ruína de uma sociedade – seja intelectual, seja ética, seja moral – a qual não é capaz de cruzar. Às vezes, ele se engana.
Essa fronteira é composta pela exacerbação daquilo que, na mente de quem escreve, pode e poderá haver de pior na natureza humana, o que corresponde ao padrão mínimo do que podemos tolerar enquanto coletivo e enquanto indivíduos. Em outras palavras, aquilo que o distópico nos oferece é, sim, uma olhadela amarga e envergonhada no espelho que nos reflete. Por outro lado, conforta-nos com a promessa de que, mesmo para a decadência existe um limite, o que nem sempre é verdade.
Não raras são as vezes em que ultrapassamos, coletivamente, esse horizonte dos eventos imaginado na distopia. Quando um autor subestima a nossa capacidade de nos desumanizarmos, aquilo que foi concebido como ficção e exemplo se torna vaticínio e retrato fiel, o que será interpretado pelas gerações futuras como premonição. E é, aqui, que encontramos Orwell.
Apesar de A revolução dos bichos
configurar uma sátira declarada a Stalin, escrita por um socialista desiludido pela crueza e pelas atrocidades do regime que se sucederam à sua ascensão, ao recorrer ao artifício da fábula, Orwell empresta à narrativa o distanciamento necessário para que ela possa existir.
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviétiva lutava ao lado dos aliados, parte da opinião pública considerava aceitável o regime político do aliado circunstancial – e não media o comunismo soviético com a mesma régua com que media o nazismo alemão. Orwell apaga as insígnias, desconsidera as nacionalidades, ignora as doutrinas e, ao desumanizar os atores, torna universal o significado. Paradoxalmente, quando os humanos saem do centro da narrativa, destaca-se o que é comum a todos os humanos: a natureza política.
Diante desse pressuposto, A revolução dos bichos
evidencia os que consideravam a União Soviética um aliado, representado pelos socialistas que se negavam a reconhecer, no regime stalinista, a mesma veia totalitária do nazismo que ele ajudara derrubar. Para que essa mensagem pudesse romper as barreiras ideológicas que, de outra forma, seriam a primeira frente do negacionismo para todos que ainda tinham, na Mãe Rússia, a imagem de um aliado, Orwell transporta-a para o ambiente de uma fazenda em que animais pensantes e falantes decidem se erguer contra a injusta supremacia dos humanos.
Ao deixar pistas suficientes para nos identificarmos com as personagens do mundo de faz de conta, o autor nos torna livres para trazer, ou não, às raias do literal, um assunto potencialmente delicado para o contexto da época. Mesmo a militância que insistiria, até hoje, em exaltar as qualidades igualitárias e as boas intenções de um modelo de sociedade histórica, política e economicamente falido poderia olhar para aquele retrato roto – e por que não o condenar? – e, passando ao largo de qualquer autocrítica, retratar, no peito, o grande H vermelho da palavra hipocrisia.
Em um lugar, onde, sob o pretexto de que não nos falte o mínimo, somos impedidos de exercer nossas próprias potencialidades, estamos condenados a sobreviver ao invés de viver. Pelo menos, enquanto essa sobrevivência for de interesse da mão invisível que puxa as cordas do teatro de fantoches. Essa pantomima, que permite que as figuras de tiranos e rebeldes se alternem no poder, demonstrando, ao fim e ao cabo, que ambos são a mesmíssima coisa, é descortinada por Orwell sem pudor algum. Ou seja, ele utiliza as galinhas, as ovelhas e os patos como porta-vozes, obrigando-nos a nos reconhecer neles, vítimas, e nunca nos algozes.
Afinal, se a busca por igualdade passa pela supressão de todo privilégio, para podermos imaginar uma sociedade de iguais, precisamos estabelecer a diferença entre privilégio e direito. Orwell os define de uma maneira que nos parece muito clara. De acordo com sua concepção, privilégio é toda condição que torna a vida do outro melhor enquanto ela não estiver ao meu alcance. Todavia, no momento em que dela eu também puder usufruir, torna-se um direito. É um pensamento simples que nos leva a uma verdade muito particular: os porcos são os outros.
A manipulação da ideia de nós contra eles
estaria nos alicerces dos regimes inclinados ao totalitarismo até os nossos dias, sempre sujeita às mesmas licenças poéticas que transformam asas em patas, camaradas, para que todos possam sentir-se acolhidos por mais um dos ismos
que somos pródigos em inventar.
Platão já dizia que o povo precisa ser governado. Mediante essa forma de pensar, aprendemos que é necessário conciliar o inconciliável apenas pela dificuldade que temos em lidar com as diferenças que nos tornam humanos. Ademais, pelo alto preço que pagamos pela liberdade de celebrar e exercer essas diferenças, sem que nos tornemos escravos da veia autoritária de um governo, seja este composto por humanos ou porcos.
Não estar sob a tutela do Estado significa abrir mão da sua tulha cheia de comida, mesmo que ela esteja ali como um mero instrumento de propagação ideológica e tenha areia até a metade. Desse modo, a ilusão da segurança e da saciedade de necessidades básicas se torna uma ideia reconfortante. Se, por um lado, essa ideia nos permite imputar as nossas próprias mazelas ao fazendeiro, irmanando-nos novamente às vítimas, por outro, cria um senso de ressentimento que nos ensina a replicar o comportamento daquele que nos subjuga.
Esse ressentimento é o que condena todas as revoluções ao fracasso enquanto instrumento libertário, já que a pulsão revolucionária parte do desejo de um indivíduo de impor a sua visão à sociedade, o que faz com que todo revoltoso tenha, dentro de si, um tirano em potencial. Se já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco
, talvez, na verdade, não exista tanta diferença assim.
Quando a frase mais célebre de A revolução dos bichos
nos provoca, alertando que todos somos iguais, porém alguns são mais iguais do que os outros, Orwell demonstra, uma vez mais, que as diferenças nos distinguem dessa massa amorfa, denominada senso comum, para dentro da qual somos atraídos pela mais completa inércia.
De qualquer modo, provavelmente, poderia estar além do poder de percepção dessa distopia enquanto sátira do contemporâneo. Um cenário vago, no qual poderíamos ser monitorados e avaliados, não pelo nosso denominador comum ou por aquilo que nos une e nos dá um senso de comunidade, mas sim, por aquilo que nos condena a viver encaixotados em guetos. De modo especial, quando se torna uma prática de Estado segmentar pessoas e classificá-las a partir de critérios que reduzem a natureza humana a uma só palavra: negro, gay, mulher, ovelha, pato, galinha.
Reconhecer a atualidade de A revolução dos bichos
pode parecer um lugar comum. Se, por um lado, não torna a ideia menos verdadeira, por outro, evidencia muito do nosso fracasso pela erradicação do totalitarismo enquanto prática e enquanto ideia. Além disso, pela defesa dos valores da liberdade.
A fábula de Orwell nos permite enxergar a essência do comportamento autoritário sem nos distrairmos com a cor do uniforme do ditador do dia. Com isso, possibilita-nos ver os matizes totalitários escondidos nas causas mais difundidas do identitarismo. Assim como o boi afeiçoado à canga que o torna escravo, ao ponto de confundi-la com aquilo que lhe confere um senso de propósito, todos os dias surgem novas viúvas de ditaduras esfarrapadas, órfãos de ditadores depostos pelas armas ou pela história, saudosistas daqueles tempos mais simples em que havia respeito. Mesmo sendo um respeito que não passava do medo reinterpretado pela voz de Oscar a perguntar aos descontentes: Alguém deseja o senhor Jones de volta?
Definitivamente, não. Apesar disso, nós, os animais, talvez, ainda possamos perceber que um tirano é um tirano, esteja ele no passado, esteja ele no presente. O importante é evitar que ele seja nosso futuro.
Os porcos sabem. Contudo, são excelentes em guardar segredos.
Ricardo Gomes
CAPÍTULO 1
O Sr. Jones, proprietário da Granja do Solar, havia trancado os galinheiros para a noite que vinha chegando, mas estava tão bêbado que acabou se esquecendo de fechar as portas laterais dos galinheiros. Enquanto balançava sua lanterna para lá e para cá, ele andou pelo quintal pendendo para os lados até a porta dos fundos. Então, tirou as botas, tomou o último copo de cerveja do barril da copa, foi para a cama e encontrou sua esposa dormindo.
No momento em que a luz do quarto se apagou, um alvoroço se espalhou por todos os galpões da granja. Durante o dia, ouviram-se rumores de que o velho Major, um porco branco que já havia sido premiado, tivera um sonho muito estranho na noite anterior e queria relatá-lo aos outros animais. O combinado foi que todos se encontrariam no grande celeiro assim que o Sr. Jones estivesse em sua cama. O velho Major (assim chamado, apesar de ser exibido com o nome de Beleza de Willingdon
na exposição,) era tão respeitado na granja que todos os animais estavam dispostos a perder uma hora de sono para ouvir o que ele tinha a dizer.
Num canto do grande celeiro estava o Major, acomodado em sua cama de palha, em uma espécie de tablado elevado, sob uma lanterna pendurada numa viga. Ele