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UMA FILÓSOFA EM TERAPIA
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E-book382 páginas5 horas

UMA FILÓSOFA EM TERAPIA

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Sobre este e-book

O encontro entre a Filosofia e a Psicologia pode ser testemunhado nesta obra que retrata, por meio de uma coletânea de Ensaios acerca das temáticas mais diversas e controversas, a jornada trilhada por uma filósofa na cena terapêutica ao longo de dois anos de tratamento. Analisar uma pensadora constitui certo desafio, visto que seu perfil é o de alguém que por si só já se mostra uma analista do mundo, da vida e do ser humano inserido em suas circunstâncias. Contudo, a terapeuta por ela escolhida para auxiliar na travessia do deserto dos traumas, temores e dramas que costuram a existência jamais titubeou frente à tarefa árida que cumpriu com maestria e perspicácia.
No livro em questão é possível seguir de perto a trajetória do fenômeno psíquico da transferência como ferramenta útil à construção do elo de confiança entre terapeuta e paciente, a fim de permitir que os conteúdos inconscientes da mente viessem à tona elaborados e ressignificados no âmbito da análise. A cura, nesse contexto, depende, portanto, da cumplicidade e da parceria com a psicóloga também protagonista da trama que rege a narrativa deste projeto literário antigo que só se consolidou graças à decisão de uma filósofa que se dispôs a ingressar na terapia, cujos frutos derivam de experiências ácidas, intensas, francas e como diria o grande Nietzsche: demasiadamente humanas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de ago. de 2022
ISBN9786553703193
UMA FILÓSOFA EM TERAPIA

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    UMA FILÓSOFA EM TERAPIA - Bruna Milene Ferreira

    A filosofia das paixões nada platônicas... apenas humanas, demasiadamente humanas...

    Não sei se a população geral ou a classe erudita costuma defender a firme opinião de que os filósofos deveriam ser reclusos, severos, duros nas suas convicções, estéreis, plastificados, impassíveis, absolutamente inatingíveis frente a qualquer paixão humana...

    Será que um pensador não deveria se atrever a pertencer à condição dos simples mortais? Platão, sensatamente, percebeu a dificuldade de quem se dedicava à filosofia no seu tempo, especialmente os mais jovens, em se prender ao patamar exclusivo do conhecimento teórico e, diante disso, inseriu como primeiro estágio do amor pelo saber, o convite para o sexo, por ser uma forma de sedução difícil de resistir, uma vez que somos também seres sensíveis.

    O segundo estágio do processo do desvelamento desse amor é exatamente o afastamento dos sentidos (sexo) e daquilo que eles emanam na direção da exclusiva admiração intelectual pelo outro, a isto se dá verdadeiramente o nome de amor platônico, não sendo nem de longe a compreensão do que se passou a disseminar nas rodas de conversa das ruas e jantares das pessoas que acham que possuem alguma afinidade com o pensador grego.

    Aliás, para Platão, o verdadeiro amor só poderia de fato ser conhecido para além do mundo material, no chamado mundo ideal para o qual segue a alma após a morte, um mundo de ideias perfeitas no qual se encontra a ideia absoluta do Amor, com a qual a alma ficará face a face. Somente assim, o amor poderá ser conhecido, não dependendo, portanto, de outro ser humano. Para Platão amar é conhecer o amor em si, sem a mediação do outro.

    A metempsicose ou transmigração das almas permitiria isso, segundo suas crenças. Aqui no mundo material conhecemos o amor apenas como ideia distante, opaca, na relação com outras pessoas quando nos apaixonamos ou no contato com a sabedoria (a filosofia). O sexo nada mais é que um chamariz, mas a medida em que nos afastamos fisicamente uns dos outros, nos mostramos cada vez mais atraídos pelas ideias, pela sabedoria em si, mais próximos nos tornamos do amor, até que um dia a alma possa estar diante dele.

    No entanto, uma certa filósofa que um dia buscou, seja lá por quais motivos fazer terapia, não conseguiu se deixar convencer pela teoria do amor platônico. Não passou da fase do sexo entre iguais. Aliás, fez muito sexo, todo o sexo do mundo, todo o sexo possível.

    Mas, o que seria segundo Platão o sexo entre iguais? Na Grécia antiga as mulheres não entravam na conta do conhecimento filosófico. Apenas os homens eram considerados dignos de trocarem um saber tão elevado. Elas se restringiam aos cuidados domésticos. Já eles tinham total acesso à vida pública e estavam a todo o tempo na companhia uns dos outros, inclusive na cama. A nossa filósofa contemporânea já dotada de direitos de mulher globalizada pôde subverter os papéis: levou para a cama as mulheres, tantas quantas quis e pôde.

    Precoce como sempre, em tudo, iniciou todo o seu processo de sedução praticamente aos 10 anos de idade e não parou mais. O hedonismo tornou-se sua marca registrada, devotou sua vida a ele e seguiu como quem está disposto a desfrutar de tudo o que os sentidos podem oferecer, à exaustão. Uma grande contradição se instalou em meio a tudo isso, visto que uma filósofa que também sempre se dedicou com todas as forças às ideias parecia totalmente obstinada a explorar sensações cada vez mais intensas, sejam elas relacionadas ao sexo, ao álcool, às compras compulsivas ou qualquer outra experiência sensorial possível.

    Costumo dizer que o intelecto é um afrodisíaco infalível para quem aprecia a inteligência e boas referências bibliográficas, é claro. Excita mais que qualquer estimulante. Não é à toa que no mundo acadêmico professores e alunos acabam vivenciando as intermináveis transferências eróticas que, em muitos casos, mais do que se imagina, terminam nos lençóis. Tudo em nome da Filosofia e da Ciência que, afinal, são mesmo irresistíveis e dão um tesão enorme. Nossa pensadora enquanto docente fez carreira neste quesito seduzindo inúmeras acadêmicas, ao se mostrar sempre pronta a destilar seu sarcasmo e suas provocações ácidas.

    A filósofa muito antes de pensar em terapia, ainda muito jovem, cursando filosofia, pensou também em trilhar os caminhos do epicurismo, cujos pilares são: alimentar-se daquilo que é estritamente essencial para saciar a fome e a sede, cultivar a amizade, não se preocupar com a morte e evitar perturbações ligadas ao corpo e à alma. Esta última advertência também lembra os estoicos, pensadores contemporâneos aos epicuristas, defensores de uma vida austera, pautada no desapego da materialidade e dos prazeres, igualmente apreciados pela nossa pensadora que, na prática, em sua jornada deixou de lado qualquer tentativa de equilibrar suas decisões ou renunciar aos desejos e simplesmente levou adiante o projeto nietzscheano de viver perigosamente.

    Especialmente após uma decepção amorosa aos 17 anos, com uma mulher mais velha que representou a primeira de suas paixões e, talvez, a única. Promessas de um relacionamento duradouro, mas sempre feitas à distância, por cartas e e-mails, alimentaram expectativas sólidas que se dissiparam no ar em poucos dias com palavras jogadas ao vento, sem nenhum conteúdo verossímil, ditas horas a fio ao telefone, madrugadas adentro. Encontros exíguos que alimentavam grandes fantasias e a decepção diante da pequena vingança de uma mulher traída que usava a outra para exorcizar seus ressentimentos, sem se importar se praticava uma roleta russa e em quem poderia acertar a bala.

    Afinal, uma roleta dessas acaba se repetindo várias outras vezes e sempre acerta aqueles que nada têm a ver com o contexto, mas a filósofa depois disso sobreviveu ao tiro, encontrou uma armadura espartana lá com os gregos, vestiu, pegou a lança e o escudo, bloqueou o choro, a mágoa, as emoções, fez uma promessa a si mesma e seguiu adiante declarando guerra a todas as mulheres do mundo, pois fracassou em seu projeto de ser platônica, epicurista, estoica e também não conseguiu ser uma romântica suicida à moda do jovem Werther de Goethe.

    Tornou-se, então, gelo, geada, trovão e tempestade ou quem sabe apenas mostrou-se demasiadamente humana depois de ter conhecido a paixão pelo lado do avesso. Dizem que quem a conhece nesta versão nunca mais recupera a sanidade...talvez em uma destas esquinas, após amargar sua decepção amorosa nossa filósofa descobriu seus fantasmas internos, suas oscilações, suas incoerências e o principal: amor romântico só em Romeu e Julieta de Shakespeare. Na vida real vale mais a sedução, o teatro e o descarte. Garantia de sofrimento zero ou o seu dinheiro de volta.

    A prostituição da psicologia na modernidade líquida

    Melhor abusar de algum medicamento tarja preta, de vez em quando, a perder tempo com todo o lixo da autoajuda que anda lotando as estantes das livrarias do país com seu blá, blá, blá inútil.

    Depois dos clássicos da psicologia, a saber: Freud, Lacan, Jung e a Gestalt, este conhecimento passou gradativamente a trilhar um caminho cada vez mais sórdido, flertando com uma espécie de microcosmo sombrio, ou seja, assuntos do cotidiano distantes do saber científico, típicos dos tempos individualistas pós-modernistas, deixando-se seduzir pela tentação best-seller da autoajuda, pelas palestras motivacionais sonolentas do marketing , da publicidade, bem como dos gestores, administradores e economistas, além é claro da turma do coaching que acredita auxiliar o cliente a atingir um objetivo pessoal ou profissional, por meio de direcionamentos capazes de conduzir à revelação de aptidões dos que procuram este serviço, a fim de descobrirem que carreira seguir na vida, qual vestibular prestar, em qual Universidade ingressar, como prosperar em uma empresa, entre outras possibilidades.

    A individualidade é uma marca indelével do pós-modernismo, a ideia de vida em comunidade com a sua promessa de segurança e amparo (esfacelada pelo projeto de vida do indivíduo contemporâneo e suas escolhas que independem do contexto da tradição) cedeu lugar à uma existência com mais dilemas e sofrimentos psicológicos, daí o surgimento do repertório da autoajuda, profissionais treinados para motivar e o coaching apto a praticamente condicionar pessoas a encontrar suas futuras profissões como se estas fossem apenas resultados de um teste aplicado com hora marcada.

    Na modernidade sólida, época em que os jovens suportavam a ansiedade de escolher por conta própria suas futuras carreiras, sem sofrerem sequelas por isso, o coaching talvez não poderia contar com uma clientela tão vasta, dado que o ser humano não se mostrava tão frágil e perdido ao ponto de precisar de testes, autoajuda e papo motivacional para decidir tudo na vida, inclusive no momento crucial de pensar sua profissão e como se manter em seu emprego.

    Por falar em clientela, agora é possível notar que muitos terapeutas e outros profissionais próximos a esta área utilizam a expressão cliente para se referirem aos seus pacientes. Inclusive a Gestalt, linha terapêutica bastante respeitada até mesmo fora da psicologia, cuja base teórica é a fenomenologia, também faz uso deste termo. Diante disso o que dizer?

    O problema que vejo no uso da palavra tem relação com o contexto do marketing segundo o qual o cliente sempre tem razão. Em psicologia se aplicarmos essa máxima, o processo terapêutico se esfacela. Se o cliente sempre tem razão o terapeuta nunca poderá dizer a ele certas verdades que, às vezes, precisam ser ditas para confrontá-lo. O processo terapêutico também é dialético, ambivalente, e por isso, lança mão do confronto. Desagrada, frustra e decepciona. Nenhum paciente está em terapia para ser o cliente que sempre deve ser agradado porque tem razão.

    Penso que o Rivotril já fez mais pela humanidade do que os livros de autoajuda. Certa vez elaborei para os meus alunos uma lista dos livros que acredito que não vale à pena constar como referências bibliográficas em um trabalho acadêmico. Tudo bem se eles quiserem lê-los em um momento de tédio, mas no fundo o melhor a fazer é atear fogo em todos eles. O problema da autoajuda é oferecer fórmulas e receitas para tudo. A vida não funciona assim. Não há garantia quanto a absolutamente nada.

    Não sabemos se vamos acordar amanhã, desempenhar nosso trabalho, conquistar a simpatia de alguém, pagar as contas, dobrar a esquina sem ser atropelado. Costumo até dizer que depois dos 40 anos abrir os olhos pela manhã já vale uma grande comemoração, embora eu ache, no fundo, uma comemoração dessas ridícula. A autoajuda não ajuda em nada, não possui base científica, é repetitiva, enfadonha, mentirosa, mal-intencionada e ainda causa uma náusea que só pode ser curada com uma boa dose de Jean-Paul Sartre.

    Sobre as palestras motivacionais não tenho muito a dizer, só me lembram uma experiência infeliz que tive ainda jovem nos tempos de Graduação em Filosofia quando praticamente fui obrigada a assistir uma aula inaugural, justamente sobre algo parecido. Mesmo com meus 17 anos já era um bicho-grilo, incorrigível. A noite já não começou muito bem naquela ocasião, pois o palestrante se equivocou na pronúncia do nome de um dos autores. Depois de alguns minutos o tédio já havia tomado conta da plateia, o que é bem irônico para uma palestra motivacional.

    Quando o professor que falava foi questionado quanto a se alguém desejava se manifestar, eu me levantei e peguei o microfone: diante do auditório lotado (todos estavam ali obrigados, lembrem-se) falei em bom som: eu devo ser burra, pois não entendi nada e essa palestra não convence nem o próprio palestrante. Surpresos? Fui aplaudida de pé por todos! Eis o assunto da semana no Campus em 1998. Convenhamos: se for para a psicologia ser uma prostituta que se relaciona promiscuamente com a autoajuda, o coaching, o marketing e o lixo motivacional que seja, pelo menos, uma prostituta bela, charmosa e sedutora!

    Quando ser diferente se transforma em crime e castigo: a Psiquiatria ontem e hoje

    Desde os primórdios da História da Psiquiatria é possível resgatar estudos que nos colocam em contato com verdadeiros crimes cometidos contra a Humanidade em nome da cura das enfermidades mentais. As obras História da Loucura e Vigiar e Punir de Michel Foucault trazem relatos assombrosos de Hospitais Psiquiátricos que mais se confundiam com prisões, nos quais eram feitas experiências de toda natureza com os internos, sem a mínima ponderação ética, atentando inclusive contra a integridade física dos pacientes, ao levarem muitos deles a sofrer toda variedade de torturas.

    Foucault pretendeu problematizar a ideia de que a psiquiatria sempre esteve muito mais ligada à manutenção e ampliação da loucura do que, verdadeiramente vinculada a uma proposta honesta de cura, visto que criar e alimentar um altar para a insanidade é que, no fim das contas, parece ajudar a manter o posto do médico alienista.

    A jornalista brasileira Daniela Arbex escreveu, Holocausto Brasileiro, fruto de uma pesquisa campo que vale muito à pena conhecer sobre um hospital psiquiátrico que funcionou durante quase todo o século XX em Barbacena, no interior de Minas Gerais, no qual morreram mais de 60 mil internos que, em sua maioria esmagadora, não eram acometidos por nenhuma doença mental. A lógica das internações era semelhante à dos transportes dos judeus durante a ocupação nazista quando colocados nos vagões dos trens e enviados aos campos de concentração.

    Os pacientes de Barbacena ou, melhor dizendo, do Hospital Colônia, lotavam os chamados Trens de Doidos como eram conhecidos pela população e forçados, na maioria dos casos, pelos próprios familiares a serem internados pelo resto de suas vidas. Grande parte eram homossexuais, mulheres grávidas abandonadas, moradores de rua, inimigos políticos da ditadura, deficientes, idosos, todos aqueles que por alguma razão a sociedade desejava descartar, excluir, fazer desaparecer diante de seus olhos. O que Bauman chama de dejetos do progresso, aqueles seres humanos que não são compatíveis com a ideia do sucesso moderno, os fracassados, que não deram certo na vida, pelo fato de possuírem alguma deformidade, transtorno mental ou, simplesmente, porque são miseráveis ou estão fora dos padrões preestabelecidos.

    A psiquiatria que não se humaniza se mostra a serviço de uma modernidade perversa que se interessa apenas em esconder nas clínicas e hospitais pessoas que incomodam por não seguirem o modelo inatingível de perfeição de uma sociedade que no fundo é mais doente que qualquer lunático. A grande maioria das pessoas que tratam transtornos mentais não necessitam de internação hospitalar, podem perfeitamente receber atendimento ambulatorial e acompanhamento psicoterápico com resultados imensamente satisfatórios.

    No Hospital Colônia, cuja História virou livro-registro da jornalista Daniela Arbex e rendeu conteúdo para muitos documentários, praticamente todos os pacientes recebiam as mesmas medicações, eram tratados com eletrochoque, lobotomia, morriam de frio, fome, bebiam água do esgoto e sofriam toda sorte de torturas, não se sabia mais se os internos estavam em um hospital no Brasil ou em um Campo de Extermínio em plena Segunda Guerra Mundial em algum lugar da Europa.

    Nosso país passou por uma experiência de Genocídio com mais de 60 mil mortos entre os muros de uma clínica psiquiátrica e quase ninguém se deu conta disso, até os dias de hoje. Porque este fato aconteceu com pessoas que a sociedade quer ignorar, que não deseja ver e que no fundo não existem, pois foram depositadas em um lugar no qual reina o esquecimento.

    Depois de um século de abusos e desumanização é possível falar de fato em reforma psiquiátrica? Mesmo após 2001, com a Lei Paulo Delgado e os esforços para a extinção dos Manicômios no país, o tratamento das doenças mentais segue arbitrário e sem os devidos critérios do ponto de vista dos direitos humanos. O que ainda acontece entre os muros dos Hospitais Psiquiátricos brasileiros? E os atendimentos ambulatoriais? Como estão sendo feitos os diagnósticos? As pessoas de baixa renda têm acesso a este tipo de atendimento pelo SUS? Como é feito? E o atendimento pelos planos de saúde?

    A maioria dos psiquiatras quando atendem pelos planos ou no serviço público, mal encaram os pacientes, costumo dizer que é a famosa consulta que não esquenta a cadeira. É possível realizar um diagnóstico tão sério quanto de uma doença mental com toda essa urgência? Nestes termos Bipolaridade não pode ser facilmente confundida com Transtorno de Personalidade Borderline, por exemplo? Diagnósticos psiquiátricos equivocados por aí se acumulam aos milhares. O paciente e seus familiares pagam o altíssimo preço no cotidiano devido à pressa médica e a ambição por angariar uma vasta lista de pacientes.

    Um diagnóstico feito às avessas pode levar um paciente a ser internado em uma clínica de repouso sem a menor necessidade. Isto não é trágico? E se um antidepressivo for prescrito, por exemplo, a um bipolar? Uma pessoa com este diagnóstico dentro de alguns dias ao melhorar do quadro depressivo entrará em franca mania e se mostrará agitada, agressiva, ao ponto de agredir pessoas ou destruir diversas coisas.

    O que poderá levá-la à internação compulsória. O que jamais aconteceria sem a prescrição desta medicação antidepressiva inadequada. Esta é a prova clara de que prescrições e diagnósticos equivocados acarretam prejuízos sem precedentes para pacientes e familiares. Esses graves transtornos levam inúmeros indivíduos a não só interromperem, mas deixar de buscar tratamento adequado por anos, o que os levam a experienciar um profundo sofrimento e, inclusive, a se colocarem em risco de vida.

    Por isso, sempre afirmo que, a maioria de nós, às vezes, necessita de quase uma vida inteira para encontrar o médico capaz de nos diagnosticar com a verdadeira competência e o mínimo de dignidade quando o assunto é saúde mental, afinal, mesmo após a reforma psiquiátrica não se reformou a mentalidade médica de muitos profissionais que não enxergam um ser humano legítimo em grande sofrimento psíquico, diante de si, e que precisa de uma escuta demorada, atenta, para que o diagnóstico seja realizado não apenas com precisão, mas com respeito.

    Muitos médicos chegam a um nível de indiferença em suas carreiras que não conseguem mais discernir os objetos de suas mesas dos pacientes sentados nas cadeiras à sua frente. Uma profissão que, na minha concepção, deveria ser talvez a mais humana, por tratar pessoas em condição vulneráveis, acaba em tantas circunstâncias cedendo espaço à arrogância, a frieza e ao pedantismo. Só nos resta, então, lamentar?

    Talvez não. Há uma luz no fim do túnel? Pelo menos conheço uma profissional simplesmente impecável, uma jovem médica psiquiatra que reúne, a meu ver, todas as qualidades que este tipo de profissional precisa ter: a escuta atenta, sem pressa, mostrando-se interessada em cada detalhe exposto pelo paciente na entrevista, a orientação necessária para a realização do tratamento, a explicitação dos benefícios da medicação, bem como de seus eventuais efeitos colaterais.

    Além disso, como profissional de excelência, nossa médica transmite segurança e acolhimento, no sentido de que você se sente de fato cuidado, acompanhado, sabe que pode contar com ela e não deixará o consultório para encarar o mundo lá fora sozinho com todos os fantasmas que moram na sua cabeça. Nossa doutora pertence a uma nova geração médica que vê e pratica a psiquiatria de outra maneira: estar na companhia dela em uma consulta já é, por si só, terapêutico e à medida em que a relação com o paciente se estabelece cria-se uma cumplicidade extraordinária que acredito ser fundamental para o tratamento, tanto quanto a medicação. Mas, infelizmente, a maioria esmagadora das pessoas em nosso país ainda não têm acesso a um serviço de saúde mental com toda essa qualidade. E isso é assombroso, mais ainda do que se ter uma doença mental...

    A vida franciscana, o budismo e o estoicismo: o desapego na Era do Culto ao Capital

    O mundo moderno é um grande aliciador, oferece prazeres de toda ordem, por meio dos quais todos os gostos e públicos podem ser atendidos. Se você for um viciado em explorar sensações poderá, sem grandes esforços, se perder nos labirintos do cardápio hedonista da modernidade: sexo fácil, drogas diversas, fast food, bebida disponível em qualquer esquina, shopping centers com todos os seus apelos consumistas, jogos, tranquilizantes, plásticas para amenizar os incômodos da passagem do tempo e redes sociais para criar um avatar de si mesmo com uma vida perfeita.

    Os anestésicos são tantos que não se pode mais encarar a realidade sem ter, no mínimo, um ataque de pânico. Talvez nem se possa mais cogitar falar em realidade nesta Ilha da Fantasia em que vivemos desde quando ingressamos em um período da História da Humanidade, no qual as tradições cederam lugar ao reinado absoluto do indivíduo com suas vontades prontamente atendidas.

    Não se quer dizer com isso que devemos retroceder aos tempos em que os casamentos eram, por exemplo, negociados pelas famílias ou à época da escravidão. É óbvio que nosso progresso jurídico, civil e científico é mais que louvável, o que queremos enfatizar aqui é que o filho desse progresso, o indivíduo, não cresceu e amadureceu com todas essas mudanças, sendo até hoje um jovenzinho egocêntrico que quer viver às custas do prazer imediato e da satisfação total de sua vontade.

    É essencial, portanto, pensar uma saída para essa tensão que conduziu ao escape de um extremo (a tradição com seus rigores) ao outro (o indivíduo com o uso indiscriminado de sua liberdade), o que nos força atualmente a viver, sem exagero, uma Era dos Extremos, na qual tudo o que é dito ou feito se transforma em um debate enfurecido, digno de ringue de boxeadores.

    Especialmente quando o terreno das discussões são as redes sociais, nas quais tudo o que se fala parece estar revestido por um escudo protetor, o que transmite certa segurança e anonimato aos ofensores ferozes prontos para atacar quem ousar atravessar seu caminho com ideologias opostas.

    Hoje temos os grupos que ainda defendem os valores tradicionais, inclusive, afirmando que apenas um determinado paradigma familiar deve ser aceito, como se o cosmos tivesse sido criado à imagem e semelhança deles e, do outro lado estão, grupos defensores de um estilo de vida desprendido de tudo o que é mais remotamente tradicional, os criadores de uma espécie de culto ao indivíduo sem laços.

    Honestamente não sei o que é pior. Há uma diferença homérica entre ser alguém sem laços e desapegar-se. Confesso que tenho uma queda pela última opção, embora ainda esteja exercitando a possibilidade de conseguir atingir algo próximo disso.

    O desapego autêntico exige grande renúncia e não é só para quem quer postar no Instagram que esteve nas últimas férias na Índia tirando fotos às margens do Ganges depois de vir do Hotel de Luxo onde estava hospedado com direito a hidromassagem, café da manhã farto e incenso para afastar a inveja e o mau olhado.

    Na mesma Índia dos budistas turistas de luxo, nasceu Buda no século VI a. C como descendente da nobreza da época, um príncipe de nome Sidarta Gautama que, ao sair certa vez de seu palácio, e se dar conta do sofrimento e da miséria do mundo ao redor, decidiu uma noite abandonar tudo: riquezas, status, esposa e até o filho recém-nascido. Ele raspou a cabeça e deixou as vestes refinadas que usava, como demonstração de que não pertencia mais à casta nobre de seu pai. Refugiou-se na floresta e lá iniciou sua transformação espiritual.

    Caminhou até o Himalaia para meditar com os anciãos comendo muito pouco e até passando fome. Após esta experiência radical percebeu que o ascetismo não era o caminho da iluminação e optou por ensinar aos seus discípulos como viver o desapego, sem extremismos, contudo, procurando evitar o acúmulo de bens materiais que prendem o homem a um mundo de valores superficiais e transitórios.

    Segundo o budismo, o sofrimento humano é parte da realidade mundana, precisa ser encarado como algo que possui uma finalidade e pode ser fonte de grande aprendizado. Se não sofremos jamais saberemos o que é de fato a empatia, só nos reconhecemos no outro quando sentimos dor, sem padecimento não há caminho para a compaixão.

    São Francisco de Assis, religioso medieval, filho de um rico comerciante italiano, também deixou toda a sua herança de lado para se dedicar à causa dos necessitados e mais tarde viveu nas florestas na companhia dos animais. A saúde de Francisco começou a se debilitar em 1202 na única batalha em que lutou ao ser capturado permanecendo por um ano no cárcere.

    Lá contraiu algumas doenças que o acompanharam por toda a vida. Uma delas foi a malária que se tornou crônica. Possuía também uma úlcera que mais tarde se tornaria um tumor. Já com a idade um pouco mais avançada o santo desenvolveu uma enfermidade ocular que com o passar do tempo o levou à quase incapacidade de enxergar. Além de todos esses problemas de saúde ele desenvolveu, no fim de sua vida, feridas que se formaram nas mãos e nos pés que sangravam constantemente. Mesmo diante de tamanho sofrimento há relatos da época de que São Francisco de Assis cantava e louvava a Criação, quase que por todos os dias de sua vida, calcada na pobreza extrema e devotada aos excluídos: miseráveis, leprosos e doentes em geral.

    Poderia ter seguido a profissão do pai, seria um rico e próspero comerciante. Tentou também ser combatente, esteve em batalha. Mas, ao receber um chamado, que não se recebe mais que uma vez na vida, realizou a sua conversão. Abandonou o hedonismo, as vaidades, não quis a oferta para abrir a Caixa de Pandora, preferiu retirar o Véu de Maia. Francisco de Assis não é como o indivíduo moderno com sua ausência de laços, seu egoísmo. É o verdadeiro representante do desapego, deixou tudo para trás até restar apenas o que realmente importava: o outro e não mais: o ego.

    Antes de Francisco, na antiguidade grega, por volta do século III a. C, havia os estoicos, já mencionados neste livro. Sua grande contribuição para a época e que jamais se tornará obsoleta é a ataraxia como horizonte a ser observado por quem deseja alcançar a sabedoria que não estava distante do ideal franciscano do desapego das riquezas.

    A ataraxia em grego significa ausência de incômodos físicos e mentais, pelo menos a sua minimização. Sabemos que muitos de nossos problemas são fonte de nossas próprias escolhas, ou seja, os agarramos com nossas próprias mãos e os trazemos para dentro de casa, como se colocássemos o lixo para dentro ao invés de jogar para fora.

    Eis o ensinamento maior dos filósofos estoicos: evite ao máximo dores físicas e psicológicas que você mesmo possa lhe impingir. Eles eram categóricos quando o assunto tocava os desejos considerados fonte de grande sofrimento: as pulsões deveriam, portanto, ser a todo custo controladas pela razão. Eis o que aprendemos com os budistas, os estoicos e os franciscanos: em tempos compulsivos em que reina absoluta a busca desenfreada pelo prazer egoísta do indivíduo é mais que necessário falar em virtudes, tais como, compaixão, caridade, desapego e prudência.

    O Livro de Eclesiastes, a Vaidade Humana e o Ego de Jó

    O livro de Jó nunca foi sobre a virtude da paciência. É sobre a vaidade. A vaidade moral e os seus perigos. Os riscos que envolve ser o preferido de Deus e não compreender o valor disso.

    Tudo é vaidade e ilusão já dizia a antiga e, ao mesmo tempo, sempre atual sabedoria do Livro de Eclesiastes do Velho Testamento Bíblico. Estas palavras remetiam inclusive ao trabalho, que muitas pessoas consideram nobre e pode se converter em objeto da vaidade, caso seja transformado no centro da vida dos mortais ou represente um meio para a obtenção das riquezas. Contudo, a sabedoria bíblica exorta a este respeito Assim como saiu do ventre de sua mãe, nu retornará, indo-se como veio; e nada levará do seu trabalho. (Eclesiastes 5:15)

    Quando se fala em vaidade grande parte do público imagina tão somente o interesse voltado para a aparência física, a estética, por exemplo. Mas, se pararmos para refletir, ela está mesmo, de alguma forma, sempre relacionada à aparência, mas em sentido amplo. É a preocupação com aquilo que aparece diante dos outros. De acordo com a lógica da vaidade não é preciso ser religioso, basta ter a aparência de um religioso, virtuoso. Até a religiosidade se converte em orgulho, motivo para engrandecer-se, envaidecer-se frente aos pecadores, menos virtuosos ou iluminados. Aqueles que não estão perto de Deus e não

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