Sexo Urbano
De Gloria Horta
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Sexo Urbano - Gloria Horta
1
Sumário
Prefácio ................................................................................................. 7
Anêmica cidadania ............................................................................. 11
Ele está pronto e você continua nua .................................................. 13
Quase não beija na boca .................................................................... 20
Recital no bandejão ............................................................................ 25
Um mendigo louco mora na sua esquina ........................................... 27
Camburão ........................................................................................... 28
Como se fosse um bebê, tira a sua roupa .......................................... 30
O segredo da invisibilidade................................................................. 32
Um corpo voa no ar como um morto digno ....................................... 34
Menino pobre sobre rasgado de feltro .............................................. 36
O homem de ontem à noite ............................................................... 39
Não está achando o buraco? .............................................................. 43
Ela guarda os seios e ajeita os cabelos ............................................... 47
2
Ela mora num conjugado .................................................................... 53
O joelho do Zico .................................................................................. 57
Alguém liga oferecendo pó ................................................................ 61
Com todo respeito .............................................................................. 62
Abaixo a ditadura! .............................................................................. 64
Livro dá barata .................................................................................... 65
Cocô .................................................................................................... 66
Greve dos lixeiros ............................................................................... 69
Paixão não existe ................................................................................ 71
Salários e preços congelados .............................................................. 74
A morte de um amigo ......................................................................... 74
A perversão sempre vai existir ........................................................... 77
Você fala seus poemas num bar de Búzios ........................................ 79
Uma instituição pública ...................................................................... 81
Vida de cachorro magro ..................................................................... 82
Seus cheques sem fundo .................................................................... 83
Madame, qualquer moedinha serve .................................................. 84
3
Manifestação contra o aumento das passagens de ônibus ............... 85
Experiência sexual múltipla ................................................................ 87
Sua amiga foi presa com maconha ..................................................... 88
Tiras, advogados e madames ............................................................. 91
Por que a gente chora com falta de mãe? ......................................... 92
Finge que goza .................................................................................... 95
Diretas já! ........................................................................................... 97
Ele começa pelas cuecas .................................................................. 100
Cada dia ele encaixota um pouco as coisas ...................................... 103
Um grito vindo da cidade ................................................................. 105
O telefone foi cortado ...................................................................... 107
Propriedade particular ..................................................................... 108
Os vizinhos dos fundos discutem alto .............................................. 110
Ladras pedem socorro ...................................................................... 112
O proprietário pede o apartamento ................................................. 115
Obrigada por morarmos com a vovó................................................ 116
Bruni Ipanema .................................................................................. 117
4
Falência ............................................................................................. 120
Camelôs e pivetes ............................................................................. 123
Duas toneladas de esterco no sítio do ministro. .............................. 125
Duas mil pessoas vaiam o tríplice presidente .................................. 130
Vinte mil latas de maconha boiam em águas brasileiras ................. 132
Papai Noel aguarda vocês ................................................................ 134
Ônibus em greve ............................................................................... 138
Compro ouro. Pago na hora ............................................................. 141
Grades agora cercam os prédios ...................................................... 143
Os aeroportos estão em greve ......................................................... 144
Ele está muito só .............................................................................. 145
Flamengo ganha o tetracampeonato ............................................... 148
Você começa a sangrar no natal ...................................................... 150
Homeless .......................................................................................... 152
Você salta na Rodoviária Novo Rio ................................................... 153
Pedreiro se apaixona por pedra radioativa ...................................... 155
No próximo Natal, dê este livro de presente ................................... 156
5
O ano chega ao fim ........................................................................... 160
Sobre seu SANGRIA .......................................................................... 162
Artur da Távola ............................................................................. 162
Doc Comparato ............................................................................. 163
Artur Xexéo ................................................................................... 164
Sobre BORBOLETA SUMARÍSSIMA ................................................... 166
Doc Comparato ............................................................................. 166
Elisa Lucinda ................................................................................. 167
Sobre FINITA COMO FLORES ............................................................ 174
Marcia Cardoso ............................................................................. 174
Leila Alvarenga Barbosa ............................................................... 177
Lilia Trajano .................................................................................. 179
6
"- Meu caro, você conhece meu terror de cavalos e
de carruagens. Agora mesmo, quando eu
atravessava a avenida, apressado, pulando daqui
prali na lama, através do caos movediço onde a
morte chega a galope de todos os lados de uma só
vez, meu halo, num movimento brusco,
escorregou de minha cabeça e caiu no lamaçal.
Não tive a coragem de pegá-lo de volta. Julguei
menos desagradável perder minhas insígnias do
que me fazer quebrar os ossos. E depois, eu me
disse, para alguma coisa serve a desgraça. Agora
eu posso passear incógnito, cometer baixezas, e
me entregar à libertinagem, como os simples
mortais. E eis-me aqui, como você vê, igualzinho a
você!"
Baudelaire, Petits Poèmes en Prose
7
Prefácio
É o fim. Era uma vez o mundo. A cidade esgotou
seu papel na história da humanidade. Criadora de
multidões, ela inventou a solidão grupal e o
estilhaçamento do indivíduo. Ela é o labirinto, a
vertigem e uma metáfora profana para o inferno.
Perdidos do rosto do real, só nos resta inventar
uma nova face. Estamos diante dos espelhos da
cidade como quem busca uma utopia.
Tudo é ninguém. E Sexo Urbano está no epicentro
desse esquartejamento. Desgovernados, sem
perspectivas, inauguramos uma certeza: vivemos
num mundo desumano.
Sexo Urbano é como se fosse o registro de uma
câmera implacável. Uma câmera que seguisse um
ser no seu dia-a-dia em sua rotina urbana. Uma
câmera que perseguisse seu desnorteado vaivém
entre engarrafamentos, mendigos, amores, risos,
8
crises, supermercados, praias, contas, filhos, pais,
mães, falências, cheques, fundos, inflação,
agendas e transas descontínuas.
Sexo Urbano é uma anunciação. Parece que o ser
humano chegou ao fundo se suas potencialidades.
Estamos em plena mutação. Num mundo sem
deus nem magia, num mundo que tem como
referencial a precariedade de todos os sinais, num
mundo entregue a seu próprio fim.
Sexo Urbano é uma antena tentando captar a dor,
a poesia e o humor de nossa média existência.
Ler Sexo Urbano é como caminhar entre ruínas de
moral, valores e costumes que agonizam. E se
desesperar por não poder ver - como num
espelho, como num filho - nossa futura face.
Seja bem-vindo ao inferno de ser igual a todo
mundo.
Robson Achiamé. 1988
9
10
Ilustração: Julian Stenzel Martins, aos 6 anos
11
Anêmica cidadania
Um barulhinho de nada, como se alguém
tivesse deixado cair uma sacola bem no meio da
rua, a multidão não se juntou pois em plena
Copacabana nunca está dispersa, parou e olhou
curiosa. Primeiro os objetos espalhados na
calçada, depois a mulher; uma mulher como você,
estirada no chão, perto do rosto uma poça de
sangue. Tão rápido que nem doeu, só a terrível
solidão dos que caem no meio da rua, nenhum
grito, nenhum sofrimento.
Desperta uma mistura de curiosidade e
compaixão. Surgem guardas e você ouve sirenes,
alívio. Medo de ter que tomar alguma providência
no multidão insana: ver se é alguém que você
conhece, chamar uma ambulância, não tocar no
corpo, ver se há vida, cobri-lo do sol do inferno,
recolher os objetos e recolocá-los na bolsa,
procurar documentos, um telefone amigo, um
filho, um que receba a notícia do atropelamento.
Você segue. O trânsito engarrafa, a multidão se
condensa, ávida de qualquer e aconteça e a tire do
burocrático torpor, da anêmica cidadania. Também
você atravessou a rua no momento exato, viva por
um fio.
12
O ônibus não vem cheio e você senta no
último banco. O rapaz mal-vestido a seu lado
espicha o pescoço pra ver os movimentos de uma
moça pegando o dinheiro na carteira. Vai assaltar.
Você se lembra da gringa que viu ser
assaltada na esquina casa. Viu tudo: os meninos
se espalhando, um perto da gringa, dois mais
atrás, um crioulão forte dando cobertura do outro
lado da calçada, a bolsa distraída, o tolo cordão
que talvez fosse de ouro, boba vaidade atraindo
violências.Você poderia ter feito qualquer coisa
teatral que impedisse o roubo, pedir informações à
gringa, aos próprios meninos.
- Onde fica a farmácia? Que horas são?
Como é o nome dessa rua?
Não perguntou, qualquer coisa que
dispersasse o time, que desarmasse o clima. È se
você... zás, cadê o cordão da gringa?
Vai assaltar. A moça estupidamente
inocente com uma bolsona meio aberta vai passar
na roleta. O assaltante espera o momento exato
de agir, você pode sentir seu nervoso, seus olhos
atentos, o ônibus para, ele faz menção de se
levantar, e mais rápida você também faz, com a
súbita idéia de se colocar suavemente entre os
dois, mas o ônibus anda, ele volta a sentar-se,
13
prevenido, e mecanicamente você também volta a
sentar-se, o coração aos pulos.
Estúpida. Imitou os gestos do assaltante.
Ele sabe que você sabe, agora. Antes que o
coração salte pela boca você se levanta e passa
pela roleta atrás da mulher de bolsa aberta,
salvas.
- Acabei de evitar que você fosse
assaltada.
Você não diz, ela toca o sinal e desce,
segue alheia a tudo que se passa. Mais dois pontos
e você esquece a mulher, a bolsa, o ladrão.
Sente um cheiro forte de transpiração,
vem de você mesma, passa as mãos no rosto
suado e limpa o suor na barra da saia. Um calor de
fritar ovos, por que você sempre senta no ônibus
do lado do sol?
Ele está pronto e você continua nua
Chega na loja dele, naturalmente, como
se não houvesse sumido há quase um mês. Ele te
espera ansioso na porta. Nem dois beijinhos, só os
olhos trazem afeto, é um homem maduro, louro,
bonito que quase não ri, está encabulado com o
seu olhar atento, passa as mãos no cabelo, cruza e
14
descruza os braços, é mais alto que todos os
outros, hoje não fez a barba, você sente que está
cansado.
-Tudo bem?
- Cansado.
- O dólar caiu.
-É?
- Vou ter que demitir dois funcionários.
Fico chateado com isso.
Você passa aponta dos dedos nos seus
cabelos louros, lisos, ralos. Já não é tão jovem. Ele
arregala os olhos e você o vê ansioso, esperando
que você diga algo fatal.
- Os negócios vão mal? - você pergunta.
- O país inteiro. Acho que vendo a loja.
- Pena.
- Vamos viajar com