O Crime Da Rua Sarnystalinov
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O Crime Da Rua Sarnystalinov - Marcos Antonio Da Silva Lima
o
Crime
da Rua
Sarnystalinov
MARCOS ANTONIO DA SILVA LIMA
o
Crime
da Rua
Sarnystalinov
3ª edição
2017
Clube de Autores
Esta é uma obra fictícia baseada em fatos reais que
escrevi no Brasil. O desejo de publicá-la antes só não foi maior
que meu empenho em honrar compromissos assumidos –
motivo pelo qual não pude divulgá-la -, sobretudo porque a
Esperança é minha companheira, sempre. Àqueles que me
conhecem de longa data, sejam parentes ou amigos – e mesmo
aos novos que me honram em permitir que eu exercite a difícil
tarefa de tentar me divorciar de vez da velha solidão -, peço
desculpas por andar sumido (o tema que proponho é
autoexplicativo). Se tivesse que resumir em poucas linhas minha
breve existência até aqui, o faria desta forma: Força de Vontade
é meu apelido; Espírito de Luta é meu sobrenome.
Marcos Antonio da Silva Lima,
em trânsito,
(Primavera de 2014)
À memória de Isidro Fernandes Lima e
Maria José Pereira da Silva, meus
pais;
Para meu irmão Isidro Fernandes
Lima Junior e sua filha Sabrina da
Silva Lima Oliveira.
O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
Capítulo 1
"Quem perde dinheiro, perde muito;
quem perde parentes e amigos, perde mais;
quem perde a coragem, perde tudo" .
(autor desconhecido)
ESTRANHA VONTADE DE VIAJAR
– Depois de cometer todas essas atrocidades, Stalin teria sofrido
um AVC, segundo as versões oficiais, e morrido sob os olhares
irrequietos de Malenkov, Bulganin, Béria e Khrushchev, pondo
fim a uma era que envergonha os comunistas – disse o professor
Raskólhnikov II (que prefere ser chamado de Raskól II), quando
fora interrompido pelo som da sirene, respondendo a uma última
pergunta de um aluno bagunceiro que nunca havia tido interesse
pelos estudos nos três meses desde a chegada desse educador
substituto. Os demais estudantes já se encontravam com
mochilas fechadas e se acotovelavam, arrastando as carteiras
para ver quem chegava primeiro à porta, em parte porque se
anunciava uma chuvinha, mas mais por praxe mesmo.
– Aproveitem as férias! - ainda gritou o mestre, tendo como
resposta dois Obrigado!
com desejos iguais para si. Não
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O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
demorou dez segundos para o professor se encontrar sozinho
naquela classe de uma escola pública da periferia. Apagou o
quadro e arrumou seus materiais. O caminho que faria daquela
sala de aula, no bloco dos anos finais do Ensino Fundamental,
até a sala dos professores, demorava uns cinco minutos de
caminhada. Nesse percurso não pôde deixar de pensar no que
faria dali em diante, mesmo tendo decidido cuidar disso só
depois que chegasse em casa.
Mas é que sentia que aquele ambiente escolar pelo qual
vinha lutando tanto pra conquistar, o desafio de despertar
mentes especiais, os excluídos e vítimas dos desgovernos
neoliberais, parecia distanciar-se dele cada vez mais. Não por
sua decisão, pelo contrário: tudo levava a crer que queriam sua
distância de algumas salas de aulas, para ser mais preciso, de
uma escola em especial, não esta em que acabara de encerrar o
expediente, mas uma onde substituiu uma colega de trabalho.
Sim. Com certeza foi dali que partiram aqueles ataques
covardes. Mas ninguém chuta um cão morto, confortava-se o
professor no instante em que descia as escadas e cumprimentava
uma zeladora com votos de boas férias e um Até breve!
. Esse
pensamento dele se referia às frases "Quem você pensa que é,
seu professorzinho substituto de merda?,
Vamos te dar uma
passagem só de ida pra tua Sibéria dos escravos. Nunca deveria
ter saído de lá e vindo pra civilização europeia. Vai estudar e
aprender a dar aulas, seu meio professorzinho sem competência
pra passar em concurso!", escritas anonimamente num blog
onde também era administrador.
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O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
As desconfianças de que esses ataques xenófobos
partiram dos colegas
invejosos da escola de adultos e jovens
excluídos, onde lecionou recentemente, devem-se aos trabalhos
que ali Raskól II tentou implantar. Assim que lá chegou pra
substituir uma professora que adoecera e entrara de licença por
três meses, percebeu que os alunos não eram habituados a ter
aulas coletivamente: eles eram atendidos individualmente, da
maneira antiga, modelo este que a Secretaria de Educação já
determinara a extinção. Raskól II não só colocou em prática o
que pedia os administradores de seu cargo, como também
passou a levar, pela primeira vez, os alunos de 15 a 70 anos ao
laboratório de informática (cujos computadores pareciam está lá
somente para os mais civilizados
ou para aqueles que não
furtariam pequenas peças dos micros), a utilizar vídeos nas aulas
expositivas, dar mais valor às questões subjetivas nas avaliações
dos educandos, etc.
O boato era de que seu contrato com a Secretaria da
Educação seria encerrado mesmo, embora soubesse de casos de
prorrogação de trabalho a pedido de pessoas influentes no
governo. Ele poderia discutir sua perseguição cibernética com
os amigos do partido, ao lado dos quais havia se dedicado anos a
fio. Eles leem meu blog, sei perfeitamente disso. Se não me
ligaram, nem colocaram um só comentário lá ou escreveram
um mísero e-mail para dar uma força pelos malditos ataques,
então é porque não se importam mais comigo, se é que um dia
assim o fizeram, apressava-se em concluir a reflexão já a poucos
passos da sala dos mestres, no mesmo instante em que
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O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
observava os últimos alunos saindo pelo portão com seus gritos
e brincadeiras típicos da adolescência.
Acho que meu erro com esse pessoal foi ter sido sincero
nas críticas que escrevi no blog, principalmente referentes ao
partido e à educação pública feita pra não funcionar. Talvez
não me abandonariam se eu não as publicizasse. Não sei. Sinto-
me traído. Pra falar a verdade, não sei o que faço tentando dar
aulas na rede pública, tão sucateada em detrimento da
mercantilização do ensino e aposta na manutenção da falta de
conhecimento da maioria da população para que continuem
elegendo corruptos do naipe de Sarnystalinov. Não sei por que
insisto nisso. Por que tanto romantismo, achando que vou
salvar o mundo, se a máquina é monstruosa? A mudança tem
que ser lá em cima: uma grande reforma educacional
priorizando o ensino básico; desgraçados são esses
empresários que não deixam o presidente fazer a grande
mudança logo!, ainda insistira nas motivações do desemprego
iminente e revelando seu pessimismo pela profissão de
educador.
Após esvaziar o armário e despedir-se de dois colegas
(um que ainda se encontrava na sala dos mestres e outro que
passava de encontro a si num corredor da escola), pôs a mochila
nas costas e montou na sua bicicleta. Nas primeiras ruas do
início de seu trajeto até sua casa, ainda pôde buzinar para alguns
alunos que iam a pé para a parada de ônibus ou para suas
residências próximas dali. Gostava de fazê-lo também para que
aquelas crianças não se esquecessem da condição humilde do
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O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
professor siberiano (era raro, nesses tempos de agora, um desses
ir pra escola de bicicleta, a grande maioria tinha carro). Talvez
fosse a última vez que faria aquele gesto por ali. Olhou para a
velha magrela que pedalava, de tinta azul desbotada,
companheira há treze anos. Com quem ficarás? Não arrisco
vender-te por preço baixíssimo que querem dar. Mais antes
doar-te para quem de fato precise de ti, continuava a refletir um
exausto Raskólhnikov II, em meio ao barulho do trânsito,
fechadas de motoristas nada educados e ao vento trazendo uma
fria garoa que lhe cortava a orelha (desprotegida da velha touca
esquecida em casa – a previsão meteorológica não se
confirmara), num dia atípico do outono no leste europeu de
2011.
Depois de chegar à kitnet que alugava, ele tomou uma
ducha quentinha, esquentou e almoçou a comida que deixara
pronta na geladeira (frango ao molho, arroz integral, salada de
hortaliças e legumes). Torrou no forno alguns amendoins e foi
para o quarto. Sentou-se na frente do seu Pentium IV que um dia
arriscou chamá-lo de máquina - o sonho de ter um notebook
ainda não podia ser concretizado. Nunca cochilava após as
refeições porque quase sempre dormia bem à noite - raramente
saía nesse horário. Naquele instante, contudo, talvez devido ao
frio inesperado e às insônias recentes, pensou em ir pra cama.
Mas resolveu pegar um cobertor pra se cobrir e sentou-se na
cadeira à frente do computador, ligando-o em seguida.
Pôs pra tocar uma seleção de músicas preferidas
(começando, bem baixinho, com a que mais gostava, "Heaven
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O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
and Hell", de Vangelis) e abriu o Ubuntu na página do Blog
Poseidon e seu Tridente Poderoso, que também administrava.
Pegou o mouse e passou a fuçar o blog, ao mesmo tempo que,
como no ritual que principiou a fazer com a bike, conversava
com seus outros objetos do lar: é que todos lhe tinham custado
mais que simples valor monetário: era como se fossem a
extensão do seu próprio corpo, tamanho o apego e zelo que tinha
por eles, sobretudo se pensarmos que durante muito tempo esses
objetos foram apenas uma imagem de desejo naquela mente,
pois seu salário não dava para adquiri-los, exceção feita nos
últimos cinco dos vinte anos desde que chegou em Dalask
apenas com a mala e a mochila.
A explicação para tais preocupações era devido à
estranha vontade de viajar, de mudar, que retornara à sua mente.
Parecia que o tempo que ficou em Dalask foi um interlúdio nas
viagens que Raskól II fez por quase toda a Rússia. Quando
alcançou a maioridade, com os pais mortos, resto da família
abandonando-o à própria sorte, miséria reinante na República de
Sarnyranhão, este jovem saiu sem destino explorando seu país à
procura de lugar pra morar. Durante quase quatro anos não fez
outra coisa senão viajar de cidade em cidade, coisa que na época
ele não sabia bem qual o significado, mas que aquilo serviria pra
algo em sua vida. Não passava mais do que três meses num
lugar (a média era uma vila a cada três dias). Sempre vinha uma
vontade estranha, louca, de conhecer outros destinos. Até que,
de tanto os poucos parentes que aparentavam se preocupar com
aquilo começarem a criticá-lo, dizendo que ele não sabia o que
queria, resolveu fixar-se em Dalask, uma média cidade do
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O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
extremo noroeste russo, terceira região metropolitana da
República de Diasnará.
Já havia passado nessas terras no primeiro ano das
andanças sem destino. Naquela ocasião, lembrava-se
perfeitamente, dormiu no único albergue da cidade por três
noites - esse era o limite permitido - até ser mandado para uma
vilinha ali próximo, num trabalho duro que consistia em quebrar
pedras, dentre outras funções. Durou uma semana nessa tarefa.
Voltou para Dalask e conseguiu mais três pernoites na referida
instituição acolhedora de mendigos, até que deram-lhe passagem
de ônibus para migrar para outra República vizinha dali. Mas,
voltando ao caso de sua fixação nas terras dalaskenses, aquele
então jovem andarilho fora atraído para lá devido a três fatores
primordiais: à relativa proximidade de Dalask com as mais
famosas e culturalmente ricas capitais europeias, ao clima não
tão rigoroso comparando com o inverno siberiano e, sobretudo,
ao fato de não haver por ali históricos relevantes dos mais
graves problemas sociais típicos de grandes centros urbanos,
conforme anotara num diário suas estatísticas pesquisadas.
Sem escolher tipos de tarefas, desde que fosse um meio
de ganhar dinheiro honestamente, possuindo apenas o ensino
fundamental como grau de instrução, o siberiano agora
sentindo-se radicado em Dalask foi conquistando essa cidade
com sua força de vontade impressionante. Influíra-se mais no
meio religioso e político da cidade. Em apenas cinco anos ali, de
um mero servente de pedreiro, chegou ao cargo de assessor
parlamentar na câmara de vereadores. No décimo segundo ano
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O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
de sua estadia no meio dos dalaskenses, graduou-se na única
universidade pública da cidade, universidade esta, por várias
vezes, considerada uma das mais conceituadas de toda aquela
república do extremo noroeste russo.
Sem êxito na política (viu que era melhor fazer seu
trabalho extraoficialmente apenas nos bastidores, nas bases, pois
fora traído por alguns componentes do seu grupo) e, adiando
lecionar em escolas públicas porque queria conhecer melhor as
pessoas que compunham seu circulo amistoso, decidiu viver de
produção de textos durante oito anos – tal tarefa consistia em
fazer trabalhos principalmente para os movimentos sociais
(embora não descartasse pedidos do setor de serviços), como,
por exemplo, produção de resenhas e textos de conclusão de
cursos para os formandos universitários, artigos para diretorias
de sindicatos, centros acadêmicos, partidos políticos e
instituições religiosas; ganhava por produção - até sentir a queda
dos pedidos e decidir que era hora de usar o diploma e
candidatar-se a professor substituto no ensino público. Assim foi
levando a vida.
É evidente que já se sentia fixo na terra dos sonhos
-
expressão utilizada por ele naqueles primeiros anos, e somente
neles, é bom que se diga - e até escreveu sobre essa temática no
blog. Mas algo estava mudando em sua vida, ou melhor, vários
acontecimentos o empurravam para o retorno das aventuras.
Há seis meses, pela primeira vez em todos esses anos,
Raskól II começou a pensar em abandonar Dalask. Jamais tinha
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O Crime da Rua Sarnystalinov, por Marcos Antonio da Silva Lima
imaginado isso com tanta veemência como agora, ao contrário
das outras vezes - quase sempre quando passava situações de
desemprego ou escassez de dinheiro - quando confortava-se
dizendo que iria mostrar para os parentes distantes e alguns
amigos que sua empreitada para estas bandas não seria em vão;
que ir embora de Dalask seria um reconhecimento de que o
inimigo (a elite racista) teria vencido. Agora chegou inclusive a
arrolar no seu diário o que chamou de principais motivos desse
desencanto das terras ricas russas: o não chamamento do
concurso para professor parecia ser o crucial, a incerteza de
emprego naquilo para o qual se formara; mas também as
decepções no grande jogo da convivência humana, quer nas
amizades que ali cultivou, quer nos amores e desamores que lá
viveu. Todavia,