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Uma nova visão
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E-book383 páginas9 horas

Uma nova visão

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Sobre este e-book

Uma nova visão traz uma coleção de ensaios escritos por David Powlison ao longo de vinte anos. A maioria escrita para o Journal of Biblical Counseling.

Os artigos são diversos: exposição bíblica, ensaio, editorial, sermão. Você, leitor, encontrará numerosos temas interligados que aparecem e reaparecem. Em tudo, fica evidente a graciosa revelação de Deus em Jesus Cristo na Escritura. As necessidades e os problemas reais de gente de verdade – pecado e miséria, a necessidade do Pai de misericórdia – estão sempre em evidência. O contexto social e cultural da atualidade – as psicologias e psicoterapias modernas, teologias alternativas e curas alternativas da alma – estão sempre em pauta.

Este livro é extremamente pessoal. Ele está dividido em duas seções. Primeira, a Escritura: a voz de Deus falada na vida real, a fim de revelar o olhar e os intentos do Cristo que nos busca. Nela, Powlison busca permitir que a luz de Cristo brilhe. A primeira seção procura abarcar, analisar e esclarecer a Escritura. Segunda, entender as pessoas em meio às suas verdadeiras lutas de vida: a procura da verdade sábia. O autor procura interpretar (e reinterpretar) a vida verdadeira pelos olhos de Deus. A segunda parte procura abraçar, analisar e esclarecer os problemas do cotidiano.

Uma nova visão de nós mesmos e dos outros, a partir do que aprendemos na Bíblia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de mar. de 2023
ISBN9786559891931
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    Uma nova visão - David Powlison

    Parte I

    A Escritura abre olhos cegos

    Suponho que todos nós que lemos a Escritura estamos marcados de modo especial por certos livros. Para mim, são três que me oferecem o mais profundo deleite: Efésios, Salmos e Lucas. Efésios habita no alto e santo lugar, e também com os humildes e contritos de coração. Aparecem na mesma página, até mesmo na mesma sentença, as mais altas glórias de Deus e as formas práticas penosas de como a vida deve ser vivida. Os Salmos encerram a fé sobre asas: viva, humana, ora abruptas, ora sensíveis, carentes ou alegres, reconhecidas no ato de comunicar com Deus. Lucas apresenta Jesus com ternura e poder: amigo dos necessitados, o que desconcerta os detentores do poder. Os textos da Parte I são exemplos dos livros citados.

    Tratamos o livro de Efésios em três diferentes níveis. O capítulo 1: Aconselhe Efésios traz a pergunta: Como começamos a entender essa surpreendente carta?. Ele trata da natureza dinâmica da Escritura. Em termos técnicos, é sobre hermenêutica – como interpretamos com justiça aquilo que Deus nos deu.

    O capítulo 2 se lança no livro de Efésios, em busca da resposta de uma grande questão: Quem é Deus?. Em termos técnicos, faz teologia sistemática, tomando um tópico de cada vez e lançando perguntas sobre ele.

    O capítulo 3 se debruça, de modo detalhado, da passagem sobre o casamento, a família e as relações no trabalho. Em termos técnicos, Papéis e relacionamentos piedosos: Efésios 5.21-6.9 faz exegese e ética, considera um texto específico dentro de um contexto específico. Por tratar de atitudes e comportamentos práticos, o capítulo 3 capítulo organiza e dá instruções éticas.

    Dois capítulos sobre os Salmos tratam de dois aspectos do mal que nos perturbam por toda a vida: pecado e sofrimento. O capítulo 4, Paz, sossegai: salmo 131, abre nosso entendimento desse salmo que, breve e calmo, mira diretamente o orgulho inquieto de nosso coração que a tudo tenta agarrar, trabalhando para nos aquietar.

    O capítulo 5 traz o salmo 10 a pessoas que foram usadas, mal usadas e abusadas por outros. Por que eu? encerra a angústia de quem é carente ou foi vitimado, e oferece clareza de pensamento e fé inteligente de que os sofredores necessitam para enfrentar o mal.

    Finalmente, o capítulo 6, Não se preocupe, é um sermão sobre um sermão pregado por Jesus (Lc 12.22-34). Jesus ressalta as razões pelas quais não precisamos nos preocupar ­– justamente as áreas em que mais facilmente nos angustiamos. Por que um sermão em um livro de aconselhamento? O ministério público (as falas planejadas, com roteiro) habita as mesmas verdades que o ministério interpessoal (de conversação improvisada).

    Capítulo 1

    Aconselhe Efésios

    Iniciantes em aconselhamento bíblico muitas vezes sentem uma forte inquietação que se reflete em perguntas como: "Por onde devo começar? Estou consciente de minha incapacidade e incompetência, mas quero ajudar as pessoas. Quero refletir e falar de Jesus Cristo. Mas sei que a Bíblia é vasta e profunda. Os detalhes sobre como Deus opera talvez não estejam claros. Ao mesmo tempo, os problemas e fardos que as pessoas carregam são complexos e assustadores. Tenho meus pecados e lutas para lidar também. Meu entendimento e minha capacidade são limitados e emocionais. Nunca poderei ajudar pessoas a crescer em sabedoria, se preciso dominar a Bíblia por inteiro e entender as particularidades da condição humana, inclusive as minhas. Por onde devo começar?. Conselheiros experientes ­– a não ser que tenham se tornado insensíveis e se baseiem totalmente na repetição" ­– também sentem a lâmina pontiaguda de perguntas ­semelhantes, não quanto ao modo de começar, mas sobre como continuar. Quando saímos para a luz de Deus e a treva da humanidade, pisamos no insondável. Quem é suficiente para fazer essa tarefa? Como dominar algo que excede nossa compreensão e capacidade?

    Você não errará aprofundando-se na carta de Paulo aos Efésios. Domine-a. Seja por ela dominado. Trabalhe Efésios em seu pensamento, sua vida, suas orações, suas conversas. A Bíblia é vasta e profunda, e a vida humana é variada e complexa, mas na hora do aperto você poderia fazer todo seu aconselhamento a partir de Efésios. Está tudo ali: o grande quadro que organiza milhares de detalhes. Efésios não é apenas um conselho, é aconselhamento; fala e caminha através de método e também de conteúdo. O próprio Paulo é um homem transformado. Ele vive e ensina seguindo um plano de ação pastoral baseado em sabedoria. Efésios nos ensina a viver. Isso é sinônimo de aconselhamento bíblico, para desenvolver um ministério face a face.

    Este capítulo não é um comentário de Efésios. Ele é diferente, foi escrito para pessoas envolvidas nos detalhes do face a face do ministério, como pastores de almas. O próprio livro de Efésios foi escrito por um pastor de almas. Paulo era exegeta e teólogo; primeiro, ele era um homem em Cristo e, então, pastor de todo o rebanho de Deus (em outras palavras, um pregador), e para cada um do povo de Deus (em outras palavras, um conselheiro). Certa vez alguém descreveu Jonathan Edwards da seguinte maneira: Sua teologia era toda aplicada e sua aplicação era toda teológica. É essa espécie de teologia e aplicação que o livro de Efésios encarna. É o que procuramos fazer neste capítulo, escrever teologia prática a partir de Efésios.

    Comecemos tratando de uma pergunta preliminar que é essencial: Como interpretamos Efésios? Com o que estamos lidando? Não tenho nem espaço, nem sabedoria para oferecer uma hermenêutica filosófica abrangente ou uma metodologia exegética sobre o quê influi no aconselhamento. Contudo, abordaremos três pontos que nos orientarão na busca de um pensamento acurado sobre esse livro de Paulo.

    Efésios é teologia prática

    Efésios não somente trata da teologia prática, ela é teologia prática. A distinção entre verdade bíblica e aplicação prática é artificial. Na Bíblia, a verdade sempre chega agindo. Paulo ensina, aplicando a verdade bíblica a si mesmo e aos outros. Efésios não é um tratado, nem é manual ou comentário. É uma carta. Efésios é a aplicação de como viver a vida diante de nossos olhos. A verdade de Deus vem até nós por meio da vida de um autor que vive em Cristo e por meio do conteúdo da carta. Essa verdade incorpora a fé e a fidelidade que os leitores desejam. Teologia prática e prática pastoral falam e agem pessoalmente: é uma mensagem minha para vocês.

    Efésios é uma carta. Efésios não trata de diversos assuntos teológicos ou éticos. Não é uma coleção de aforismos nem um tratado sobre Deus e os seres humanos em geral. Não é uma história. Paulo escreve na primeira e na segunda pessoas. Você o escuta falando diretamente a você como se dissesse: "Deus nos predestinou para a adoção. Eu dou graças por vocês. Vocês estavam mortos nos seus pecados. Nós recebemos uma herança. Orem por mim. Efésios expressa um ­encontro ­entre Deus, Paulo e seus ouvintes. A teologia prática ocorre na primeira e na segunda pessoas: eu, tu, nós. Fala sobre algo ou alguém quando serve melhor falar com" alguém. Em Efésios, o ministério, a vida e os relacionamentos estão acontecendo, de modo que as palavras de Paulo vêm embaladas pela oração, adoração, autorrevelação e tratamento direto.

    Deixe que isso o agarre. As palavras de Paulo vêm como oração, adoração, autorrevelação e endereçadas a você. É muito diferente da maioria dos livros. Infelizmente, é diferente da maioria dos sermões, ensinamentos e sessões de aconselhamento. É diferente da distância e suposta objetividade da maior parte das reflexões teológicas acadêmicas ou da maioria dos escritos sobre aconselhamento. Quando Paulo fala sobre a glória da graça de Deus em Cristo, ele exulta audivelmente essa graça (Ef 1.1-14). Quando ensina sobre o poder de Deus em Cristo e nossas necessidades mais profundas, ele permite que saibamos como ora por nós (1.15-23). Quando oferece suas doutrinas sobre o pecado e a salvação, ele se dirige diretamente a nós: Vocês estavam mortos. Nós estávamos mortos. Pela graça fomos salvos. Somos feitura dele (Ef 2.1-22). Quando Paulo expõe a teologia dizendo que todas as nações são bem-vindas em Cristo, ele conta a própria história e faz mais uma oração: Ouçam a respeito da dispensação da graça de Deus a mim confiada para vós outros (…) Por esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai (…) vos conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior (Ef 3.1-21). Quando Paulo passa a escrever detalhadamente sobre ética, relacionamentos e a dinâmica da mudança, ele fala diretamente a nós: Rogo-vos (…) que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados… (Ef 4.1-6.18). Ele termina com um pedido de oração, algumas informações pessoais e uma calorosa despedida (6.19-24). Efésios é prático, relacional e pastoral. A fé viva acontece na primeira e segunda pessoas. Como a fé em Cristo é adquirida e também ensinada, Paulo retira as amarras pessoais e torna contagioso aquilo que diz. Efésios é teologia prática. É fé viva. É ministério em ação. Tudo isso tem um profundo significado no modo como compreendemos e usamos Efésios hoje.

    A maior parte dos escritos mais profundos sobre o livro de Efésios é acadêmica. Por isso, corre o perigo de representar erroneamente Efésios, deixando de voltar-se plenamente para uma vida e ministério práticos. Um bom trabalho acadêmico pode servir bem ao ministério, se reconhecermos o que é a Bíblia e o que ela intenta realizar. Deixar de reconhecer isso leva o estudo acadêmico a despencar pelo penhasco – ou pelo erro, ou pela irrelevância –, tornando o ministério mal direcionado e impotente. Efésios, como na vida e no ministério, não opera segundo grande parte da educação teológica. Efésios é teologia prática e prática pastoral visando produzir o mesmo. Não é exegese nem teologia sistemática, nem História redentiva.[1]

    Efésios não é teologia exegética

    Efésios não é escrita em forma de estudo bíblico ou comentário. Ainda que Paulo cite, parafraseie e aluda a muitas passagens do Antigo Testamento (além de realidades do Novo Testamento), ele dirige seu estudo contextual e seu entendimento a um propósito diferente e atual. Os Dez Mandamentos, Salmos, Isaías e Provérbios aparecem na forma aqui e agora, falados e aplicados de maneira nova. A mensagem de Efésios é sempre velha, surgida de estudo bíblico e coerente com outros textos da Escritura. Mas sua mensagem é sempre nova, reconstruída para o ministério de agora. Paulo usa as Escrituras mais antigas; ele não faz apenas exposição, porque não está governado por interesses exegéticos. Ele constrói uma mensagem, governado por interesses de ministério a pessoas de verdade. Da mesma forma, quando tivermos estudado o livro de Efésios, nosso trabalho terá apenas começado, não será completo. Nós também temos de ser dirigidos por interesses de ministério a pessoas de verdade ou jamais entenderemos Efésios nem saberemos utilizá-lo para o bem de outros.

    A exegese vasculha auditório, autor e mensagem originais. Temos de fazer exegese, mas mais do que exegese. Temos de ir além do original.

    Efésios não é teologia sistemática

    Efésios é uma fonte primária de respostas a perguntas centrais sobre os princípios da verdade bíblica. Por exemplo, não existe ensino mais claro a respeito da alta soberania de Deus: seu propósito, poder, graça e glória em Cristo são tão exaltados que, quem tem ouvidos para ouvir o que o Espírito escreve às igrejas, deverá tornar-se um calvinista com o coração em chamas. Aqui também encontramos um entendimento único quanto à união em Jesus Cristo, à natureza da Igreja, o processo de santificação, nossos relacionamentos sociais e batalhas espirituais. O propósito explícito de Paulo, contudo, não é sistemático. Pelo contrário, é pastoral e pessoal. Seu ensino de que estamos em Cristo caminha junto com adoração, oração e exortação. Por quê? Devemos também adorar, orar, exortar ­– e escutar Paulo ­– para que nós e outros conheçamos o Cristo que habita em nosso coração pela fé, e conheçamos o amor desse Cristo que excede todo entendimento. A teologia sistemática organiza a Bíblia com uma lógica filosófica, mas temos de fazer mais do que catequizar as pessoas com nossos padrões doutrinários, se quisermos ministrar a elas.

    Efésios não é teologia bíblica

    Efésios não é uma recitação da história da obra redentora de Deus ao longo da História. Sim, a História está toda lá: os propósitos eternos de Deus a serem realizados em Cristo; seu amor que predestina; a criação pelo Criador de todas as coisas; a queda no pecado que tudo absorve, e sua justa ira; a libertação pelo sangue do Amado; a ressurreição de Cristo e de nós em Cristo; sua coroação sobre o trono de todo poder; a presente habitação do Espírito Santo na Igreja e no coração; a expansão da promessa para incluir todos os povos nas promessas que originalmente eram somente para os judeus; a espera do dia de sua volta, quando o reino será revelado em toda sua glória, perfeição e ira. Essa história está espalhada em pequenos pedaços por toda a Epístola de Efésios. Embora esses pedaços sejam capazes de ser rearranjados em uma narrativa histórica de redenção, Paulo tem outros propósitos. Observe bem, Paulo não escreveu uma narrativa; não escreveu uma peça de teologia bíblica Ele não se contenta em contar uma história quando intercede por você, insta com você, canta altos louvores, promessas e mandamentos. A teologia bíblica organiza o todo da Bíblia com uma narrativa histórica e lógica, mas nós temos de fazer mais do que contar a história, se quisermos ministrar às pessoas.

    Efésios faz jus ao labor da teologia exegética, sistemática e bíblica;[2] disciplinas auxiliares são essenciais para o entendimento da Bíblia em si mesma. Mas nunca esqueça: Efésios faz teologia prática, falando do Senhor para a vida das pessoas. Só atingimos o alvo que Paulo queria quando nós também fizermos teologia prática, falando a verdade em amor, a fim de crescermos juntos em Cristo, nosso Cabeça. Temos de fechar o círculo. O andar de Paulo, bem como sua mensagem renovada, deve dirigir nosso próprio andar e nossa mensagem renovada. Devemos aplicar sua nova mensagem aos ouvintes atuais para que ela possa ser realmente compreendida. A teologia prática é um fim. Efésios não é apenas um livro que contém letras, pautas e diagramas de coreografia; Efésios canta e dança; foi escrito para nos transformar e nos fazer instrumentos de transformação na vida de nossos irmãos e irmãs. Sim, usemos as ferramentas do estudo bíblico e da reflexão teológica. Mas jamais devemos permitir que as disciplinas de apoio se degenerem, tornando-se fins em si mesmas. Examinemos a sabedoria prática que é a finalidade principal de Efésios, para que nós também vivamos e realizemos o ministério do modo como Paulo faz.

    Efésios é uma porta para o restante das Escrituras

    Uma segunda chave para o entendimento e a boa utilização de Efésios é ver as fortes conexões com o restante da Bíblia e observar o modo particular como Paulo emprega as demais Escrituras. Efésios comunica um senso de inteireza de toda Escritura. É carregado de citações e alusões específicas, empregando outros textos bíblicos para propósitos atuais. A Escritura sangra com a Escritura e a nova mensagem de Deus é construída da velha mensagem divina. A nova mensagem é coerente com as mensagens gerais mais antigas, porém, inovadora.

    Qual é a diretriz hermenêutica pela qual Paulo se apropria do restante da Escritura? É impressionante o método paulino, talvez até desconcertante sob a óptica de estudos bíblicos corriqueiros. Com certeza, Paulo não é fantasioso nem arbitrário. Não joga depressa nem superficialmente com a Escritura, como se tudo valesse. Não torce a Escritura de maneira fantasiosa com textos-prova, alegorias mirabolantes, numerologia, associação de palavras ou espiritualização arbitrária dos textos. Ele jamais faz coisas descontroladas como tomar Números 13.33 como significando que os espias da terra sofriam de baixa autoestima porque se viam como gafanhotos. Sua lógica não diz: Neemias primeiro inspecionou os danos no muro de Jerusalém, portanto, os conselheiros deverão examinar primeiro as feridas das pessoas a quem aconselham. Também é notável que Paulo não tenha utilizado o restante das Escrituras de modo histórico-gramatical. Na verdade, ele nunca faz exegese e exposição do significado original das muitas passagens que cita ou a que faz alusão. Ele chega perto do texto-prova quando toma um texto antigo e o emprega de maneira diferente da original: por exemplo, seu uso de irai-vos e não pequeis (Sl 4.4; Ef 4.26). Paulo se aproxima da alegoria e espiritualização quando estende e reconfigura o significado e a aplicação de textos antigos, como, por exemplo, o Senhor vitorioso subiu às alturas (Sl 68.18; Ef 4.8-11), e o marido deixará (…) e se unirá à esposa (Gn 2.24; Ef 5.31ss). Em cada caso, palavras e temas do Antigo Testamento se tornam maiores do que eram, mostrando dimensões novas e espetaculares de significado. Paulo é extremamente criativo! A interpretação histórico-gramatical dos originais não conduz ao que Paulo diz e faz.

    Temos de ponderar sobre isso com cuidado. Quais os princípios que controlam o uso que Paulo faz de Escrituras mais antigas? Uma resposta completa vai além do alcance deste capítulo, mas o cerne da questão pode ser resumido em dois princípios. Primeiro, Jesus Cristo cumpre de modo superior o Antigo Testamento. Segundo, existe uma coerência temática em vez de contradição ou réplica exata entre o significado original e o novo uso. Paulo é criativo, mas não é fantasioso, contraditório ou desconexo. Cristo cria tanto a diferença quanto a coerência; o novo propósito do ministério expressa ambas, a diferença e a coerência. Imagine que em 1905 Deus tivesse prometido a bisavós que um dia daria aos descendentes um Ford modelo T, um sistema de radiocomunicação que usasse o código Morse e um bimotor. Quando ele decidiu entregar, em 2003, um Viper Dodge, um telefone celular ligado via satélite e um jato supersônico F-117A Stealth ­– a promessa foi cumprida ­– e muito além da imaginação! Hoje você viaja, ­trabalha em sua empresa e luta de modo a demonstrar reconhecimento pelos avanços de 1905 ­– que ainda constituem meios de transporte, comunicação e guerra ­–, mas os detalhes mudaram. De igual modo, as profecias, os cânticos, os mandamentos e as histórias do Antigo Testamento continuam carregados do poder e da glória do Espírito Santo, por meio de quem Jesus Cristo habita com seu povo; eles são feitos para as necessidades de um povo diferente que vive em tempo diferente, enfrentando problemas que podem ser conhecidos, porém, diferentes.

    Ao abrir as portas para todas as Escrituras, Efésios altera as Escrituras anteriores. Quando Cristo se torna a oferta sacrificial (Ef 5.2) e nós nos tornamos templo de Deus (2.21), somos convidados a ler Levítico e 1 Reis de outro modo ­– não como alegorias fantásticas, mas como metáforas de sangue e pedra de dimensão cristológica. Quando a ira ameaça a unidade do povo de Cristo no meio de seu processo de santificação (4.26), somos convidados a ler o salmo 4 sob uma nova óptica, com implicações totalmente diversas. Há muitas diferenças entre os escritos de Paulo e os originais citados. É como se o original fosse uma estrela solitária vista a olho nu. Paulo observa a estrela através de um telescópio poderoso, para ver Cristo e a necessidade contemporânea, e contempla Andrômeda, com bilhões e bilhões de estrelas – um disco de radiante beleza com cem mil anos-luz de largura, um vasto espetáculo de glória que antes não se podia imaginar. O escopo de aplicação e a profundidade implícita se multiplicam quando Paulo relê o Antigo Testamento e os evangelhos pela glória de Cristo que reina mediante sua tarefa de escrever uma carta magna em termos práticos para a igreja. Efésios abre as portas a outras partes da Bíblia e coloca diante de nós as coisas que abre com outras palavras. Consideremos alguns exemplos.

    Quando Paulo diz: enchei-vos do Espírito, falando entre vós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais, dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo (Ef 5.18-20), ele estabelece uma ligação direta a todos os 150 salmos. Suas palavras também fazem com que os 150 salmos signifiquem algo maior do que significavam no começo. Em primeiro lugar, as meditações, gritos, clamores e canções de Davi são recarregados à luz do Senhor Jesus Cristo e Deus e Pai. Em segundo lugar, os salmos são aqui apresentados não apenas como assunto para memorização da Bíblia ou recitação litúrgica. Os salmos oferecem um paradigma para uma fé viva e comunicativa em Cristo.

    Estar cheio do Espírito é ter uma linguagem viva para Deus, tanto na conversa diária com outras pessoas como na conversa interior, dentro do coração. O pensamento, a cognição e as interações sociais são feitos para ser como os salmos e informados pelos salmos. Isso inclui a capacidade de citar um salmo de maneira apropriada e relevante, mas é muito mais que isso. Paulo nos chama a um estilo de vida de feliz dependência de Cristo, de viver em fé como em Salmos.

    Um vídeo com nossa comunicação externa e nossos pensamentos deveria parecer um salmo continuamente atualizado e personalizado. A realidade de um relacionamento vivo com Cristo infunde um modo de processar fatos específicos de nossa vida diária. Falamos e pensamos recriações e aplicações recém-produzidas das Escrituras segundo as exigências do momento, em cada detalhe, atualizadas por Jesus Cristo. Exemplos da vida cheia do Espírito em palavras como as dos salmos e com informações em forma de salmo aparecem em Isabel, Maria e Zacarias (Lc 1); nos ensinamentos e orações de Jesus (Lc 6; 11); nos discursos de Pedro (At 2; 4); nas orações dos crentes (At 4); nos louvores, orações e exortações de toda a carta de Paulo aos Efésios; em ocasiões em que falamos a Palavra de Deus com ousadia, clareza e fé; quando bendizemos ao Senhor com tudo o que há em nós. Paulo nos aponta para os Salmos com uma aplicação nova e radical: viva como em salmos, tendo em vista o Senhor Jesus Cristo.

    Paulo, além de apontar para o Saltério como um todo, cita especificamente três salmos. Cada um dá ao Antigo Testamento uma nova aplicação e um foco enriquecido por Cristo. Quando Deus sujeita todas as coisas debaixo dos pés (Sl 8.6; Ef 1.22), originalmente uma passagem sobre a glória da humanidade criada, vem à mente a glória redentora do único Filho do Homem, em quem somos também ressuscitados e entronizados na nova humanidade. O salmo 8 é reconhecido, não é contestado. O código Morse, transmitido por rádio, entretanto, tornou-se telefone celular ligado por satélite.

    Em Efésios 4.8-11, Paulo amplia e até mesmo altera o salmo 68.18. Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens. O original proclamava a subida vitoriosa do Senhor no monte Sinai, em um futuro não definido, quando todas as nações se prostrariam. O futuro foi agora definido em Cristo, e tudo muda. Um salmo sobre subida agora está recheado com a descida anterior do Senhor (encarnação, sofrimento, morte). O lugar onde ascendeu não é o monte Sinai, é o trono do universo. A procissão vitoriosa é reconstruída para contar que o Senhor concedeu dons, pessoas dotadas, para dirigir sua Igreja, alterando o original que tinha o Senhor recebendo presentes de homenagem.

    Quando Paulo escreve: Irai-vos e não pequeis (Sl 4.4; Ef 4.26), ele muda novamente a direção da aplicação ao tratar de um contexto bem diferente. O original aparecia como parte de uma meditação extensa sobre aquietar o coração em paz e confiança, para não pecar quando alguém se encontra perturbado pelos inimigos de Deus. A nova declaração desenvolve a necessidade de tratar rapidamente da ira, especialmente no contexto dos pecados remanescentes que irritam e provocam os que estão em Cristo. Trata especialmente da dimensão diabólica, de como a ira não resolvida entra no jogo do acusador dos irmãos para desuni-los. Nosso tratamento da ira é colocado no contexto mais amplo de aprender Cristo (Ef 4.2), uma chave da transformação de nossa vida. O salmo 4.4 foi adaptado para uma visão mais ampla. A citação radia novos significados ­– não contradições.

    Efésios abre a porta ao livro de Provérbios. Quando Paulo fala sobre andar em sabedoria e não em loucura (Ef 5.15-18a), ele cria uma ligação viva com todo o livro de Provérbios (e a tradição mais ampla de sabedoria) que detalha o tema. Ele chega ao ponto mais alto com uma citação direta da tradução grega de Provérbios 23.31, que é uma paráfrase solta e uma amplificação do hebraico original. A citação não serve de exegese da descrição vívida que Salomão faz da embriaguez em Provérbios 23 e também oferece um exemplo de prazeres néscios em contraste com o prazer concreto de estar cheio do Espírito Santo e conhecer o Senhor. Algumas frases adiante, o temor de Cristo (5.21) faz uma alusão cristocêntrica ao primeiro princípio de toda a literatura da sabedoria: o temor do Senhor.

    A cristificação radical do Antigo Testamento feita por Paulo chega ao ápice quando ele faz a citação deixará (…) e se unirá (Gn 2.24 e Ef 5.31-33). Os princípios do casamento ­– e Paulo ainda está falando de casamento ­– impõem uma conclusão radical sobre Cristo e a Igreja. O casamento, na verdade, torna-se uma aplicação secundária de um texto que fala explicitamente de casamento! O amor de Cristo por sua esposa e a submissão da Igreja a seu marido são uma fonte a jorrar a verdade sobre o casamento. Gênesis 2.24 continua verdadeiro, mas com uma importância relativamente menor quando comparada com o que Paulo enxerga agora: a Galáxia de Andrômeda. O uso de metáforas ­– que poderíamos chamar de alegorização, ­se essa palavra retivesse conotações positivas –, entretanto, não é arbitrário. É coerente, do ponto de vista temático, com a exegese de Gênesis 2.

    Até mesmo os Dez Mandamentos são reconstruídos e enriquecidos em Cristo e para propósitos atuais. Paulo, por exemplo, cita diretamente o quinto mandamento (Êx 20.12; Ef 6.2-3), conclamando os filhos a se sujeitarem aos pais. Aqui, ele chega mais perto de replicar o texto original, mas ainda oferece uma aplicação nova que é mais que uma simples citação, de três maneiras pelo menos. Primeiro, ele não começa citando as Escrituras e sim, suas próprias palavras, recheadas de Cristo: Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor (v. 1). A passagem da Bíblia é trazida como texto de apoio e não como ponto principal. Segundo, no meio da citação, ele comenta que é o primeiro mandamento com promessa, antes de terminar a citação. Terceiro, ainda que as palavras sejam idênticas, para que te vá bem, e sejas de longa vida sobre a terra, Efésios, com certeza, contém um significado diferente do de longa vida sobre a terra, em Êxodo. Israel tornou-se todas as nações, o Senhor se revelou como Senhor Jesus Cristo, a promessa de um pedaço de terra foi engolida pela promessa de Cristo.[3]

    A fonte de uma citação em Efésios continua um mistério: Pelo que diz: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e ­Cristo te iluminará (5.14). Anteriormente, quando Paulo escreveu Por isso, diz… (4.8) ele estava dizendo "a Bíblia diz, e qualquer um poderia procurar o salmo 68.18. Mas aqui não sabemos quem ou o que diz daquilo que segue. Podemos supor que seja a citação de um hino cristão bastante conhecido no século 1o, como se ele tivesse citado Maravilhosa graça ou Aflição e paz".

    Essa analogia nos serve bem. Esses hinos falam verdades que podem ser citadas no ministério: salmos novos, cristificados. Como os autores dos hinos meditaram na Palavra de Deus e essa Palavra mapeou suas histórias pessoais (fato que os dois hinos refletem vividamente), assim também Efésios 5.14 era bíblico antes mesmo de se tornar parte da Bíblia.

    Podemos imaginar um irmão ou uma irmã que tenha recebido um chamado da parte de Deus para despertar e sair do escuro torpor do pecado e viver agora com um forte senso da luz de Cristo. A linguagem surge naturalmente de uma combinação de Isaías 26.19; 51.17; 52.1 e 60.1, mas a linguagem de Isaías foi cristificada com um propósito diferente. Isaías jamais disse o que algum crente do primeiro afirmou ao aplicar as palavras desse profeta, as quais Paulo citou para todos os tempos. Assim, uma paráfrase e uma adaptação contemporânea do Antigo Testamento, reconstruída à luz de Cristo, tornaram-se parte da Escritura com a qual hoje trabalhamos e vivemos.

    A maneira como Paulo usa as Escrituras o deixa nervoso? Isso só acontecerá se você esperar que ele faça teologia exegética e não teologia prática. Para nós, que firmamos nossa fé e prática sobre a autoridade, suficiência e clareza da revelação de Deus, a utilização que Paulo faz das Escrituras

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