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CONVERSAS JOVENS DIPLOMATAS
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E-book666 páginas

CONVERSAS JOVENS DIPLOMATAS

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Sobre este e-book

Conversas com jovens diplomatas é uma reunião das principais palestras que o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim fez aos alunos do Instituto Rio Branco. O ministro fala da política externa do governo Lula, suas conquistas e fracassos, com ênfase no relacionamento comercial, na abertura de novas frentes de negócios internacionais e nos tratados que o país assinou na ONU, na OEA e na OMC, entre outros. É um retrato inédito do relacionamento do Brasil com o mundo, escrito por um dos mais importantes personagens que ajudaram o Brasil a projetar sua imagem no exterior e se tornar peça-chave do tabuleiro internacional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de mar. de 2023
ISBN9788502142626
CONVERSAS JOVENS DIPLOMATAS

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    CONVERSAS JOVENS DIPLOMATAS - Celso Amorim

    Vocês se preparem, porque a política externa brasileira tomou novos rumos

    Integração da América do Sul e relações Brasil-África.

    20 de abril de 2005¹

    Começando pelo anedotário, recordo que o ministro Azeredo da Silveira, lá por meados dos anos 1970, fez alusão em uma cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco aos embaixadores do ano 2000. Isso parecia uma quimera. O ano 2000 parecia uma coisa muito longínqua. Mas chegou. Vários de meus alunos no Instituto — ou pelo menos alguns — já são embaixadores. Quando nós fazíamos nossos cálculos — o Samuel [Pinheiro Guimarães], aqui a meu lado, sempre foi melhor do que eu para fazer os cálculos —, as previsões indicavam que nenhum de nós chegaria a embaixador. E os jovens colegas que entraram naquela época, pelo menos alguns deles, também já chegaram a embaixador — efetivamente contrariando nossos cálculos. Isso é apenas para dar uma nota de otimismo a todos nesse momento ainda inicial da carreira.

    Pedi ao diretor do Instituto que fizéssemos, hoje, uma dupla comemoração: o Dia do Diplomata e os sessenta anos da criação do Instituto Rio Branco e que procurássemos fazer dessa comemoração algo não muito solene. É claro que em uma plateia tão grande não se pode falar nada que seja absolutamente secreto. Também pedi para não fazer uma palestra excessivamente estruturada em torno dos temas da política externa, para não repetir muito daquilo que vocês — suponho eu — leem ou ouvem de outros. Preferi fazer uma conversa mais livre, que não se parecesse com uma aula magna tradicional. Vou também dispensar-me de entrar na história, muito conhecida, do patrono da Casa, o barão do Rio Branco — figura obviamente fundamental para nossa diplomacia e para o próprio Instituto.

    A disposição do auditório cria, evidentemente, um certo distanciamento, que é um dos fardos que o cargo público muitas vezes nos impõe. Mas vamos tentar, aqui, torná-lo o menor possível. Queria conversar com vocês de maneira muito informal, sem partir de um quadro conceitual da política externa. Repito: porque já fiz outros discursos sobre isso. Quem tiver interesse pode referenciar o que vou dizer hoje a esse quadro conceitual, inclusive para buscar eventuais contradições — e depois assinalá-las para mim.

    Queria partir de dois ou três fatos recentes. Poderia começar por ontem, porque tivemos uma reunião muito importante: a primeira reunião dos ministros da Comunidade Sul-Americana de Nações. É claro que tivemos antes outras reuniões de ministros das Relações Exteriores da América do Sul, mas foram em outros contextos, quase circunstanciais. Por exemplo, quando fomos à Aladi protocolizar alguns acordos, estavam presentes vários ministros, mas nem todos eram necessariamente ministros do Exterior — alguns eram ministros domésticos ou de Comércio. Tivemos uma reunião em Marrakesh para preparar (vou voltar a isso mais tarde) a Cúpula dos Países Árabes com a América do Sul. Mas não tínhamos tido ainda, desde a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, uma reunião dos ministros do Exterior. E essa agora foi muito importante, porque foi uma reunião destinada a preparar justamente — não a Cúpula América do Sul-Países Árabes, porque essa já está preparada do ponto de vista político (naturalmente sempre faltam detalhes logísticos) —, mas a própria Cúpula dos Países da América do Sul, quando esperamos que sejam estipuladas as principais atividades dessa Comunidade e também seja definido um certo arcabouço institucional.

    É importante que vocês tenham presente que eu estou falando aqui com toda franqueza para colegas e amigos. Fazendo um retrospecto, as discussões que levaram à formação da Comunidade não foram fáceis. Não sei em que momento antes se falou concretamente em uma integração política da América do Sul, mas eu me recordo que o presidente Itamar Franco foi à Cúpula do Grupo do Rio em Santiago em 1993 e se referiu especificamente a uma área de livre-comércio sul-americana, a ALCSA. Eu próprio fui à Aladi, em fevereiro de 1994, para desenvolver um pouco essas ideias, que, na época, encontravam enorme resistência: alguns países sonhavam em aderir ao Nafta (não se falava de Alca ainda); outros tinham estruturas comerciais mais liberais que o Brasil; e outros países, ainda, nutriam desconfiança política em relação a nossos objetivos. Havia, digamos assim, um misto de reticência com resistência. O fato é que a ideia não prosperou imediatamente. Ninguém tampouco foi totalmente contra, de modo que a ALCSA deixou uma certa sementinha.

    Pouco depois desses eventos, todas as atenções se concentraram na Cúpula das Américas, que levou ao lançamento das negociações da Alca. Como maior mercado das Américas, os Estados Unidos têm uma força natural de imantação. A própria experiência do México — até então aparentemente bem-sucedida — também contribuiu para que as atenções fossem concentradas em outros processos negociadores, de modo que a integração da América do Sul ficou de lado.

    Uma das coisas que acontecem quando você se torna ministro é que você se torna incapaz de escrever sozinho um artigo. Então, provavelmente com a ajuda de alguém, escrevi um artigo — pelo menos o título eu dei! —, que se chamava Construção da América do Sul. A América do Sul, embora seja um conceito geográfico, que nós aprendemos no colégio — pelo menos na minha geração se aprendia assim —, não era propriamente um conceito político. O conceito político era América Latina (ou, mais tarde e de forma restrita ao âmbito multilateral, América Latina e Caribe).

    No fundo, a América Latina expressa uma visão política e cultural, mas, por motivos diversos, é uma realidade difícil de organizar de maneira efetiva. Primeiro, havia os países do Caribe, que eram recém-ingressados na região. Depois, havia a situação específica de Cuba, banida da OEA e sem relações com quase todos os países. Havia também o fato de os países, por estruturas diversas e situações geográficas específicas, manterem relações diferentes com a principal potência do hemisfério. Embora a América Latina e o Caribe tenham funcionado como um grupo (por exemplo, para efeitos eleitorais na ONU), a verdade é que não conseguiram constituir-se como um núcleo — não só um núcleo para uma coordenação política, mas menos ainda um espaço para integração econômica e social.

    Houve várias tentativas: o SELA, por exemplo, foi uma delas. Outra foi o próprio Grupo do Rio — grupo de concertação política, que começou restrito e foi se expandindo.² O Grupo do Rio sofreu de certa timidez por parte de países que não queriam dar a impressão de que estavam criando um novo agrupamento no hemisfério, do qual só não fariam parte Estados Unidos e Canadá.³

    O conceito de América do Sul foi recuperado, desta vez, do ponto de vista político. Antes, era América Latina — com essas limitações que acabei de mencionar — ou eram as Américas. Falava-se muito raramente em América do Sul. Quando se falava em Mercosul, falava-se no Cone Sul. O Mercosul se formou com base em negociações entre o Brasil e a Argentina, das quais participou ativamente o embaixador Samuel, durante o governo do presidente Sarney. Somente depois é que se transformou em Mercosul, com os quatro países. Não me lembro mais quem, afinal, sugeriu o nome. Trabalhava comigo, naquela época, nosso atual embaixador na Ucrânia, Renato Marques. Acho que, em uma das conversas que costumava ter com ele, surgiu o nome Mercosul. E a preocupação, desde o início, foi frisar que não era Mercado Comum do Cone Sul — ao contrário do que a mídia continuou repetindo muitas vezes. É Mercado Comum do Sul, porque isso deixava espaço para que, um dia, viesse a ser Mercado Comum da América do Sul.

    Enfim, o conceito de América do Sul praticamente não existia. Ao tentar recuperá-lo, encontramos dificuldades e resistências. Depois, as prioridades também mudaram. Mas também não se perderam de todo. Tanto é assim que, no governo do presidente Fernando Henrique, foram convocadas duas cúpulas da América do Sul.

    Quando o governo do presidente Lula começou, passamos a dar prioridade clara à América do Sul. Isso foi sendo, aos poucos, percebido pelos outros países como vantajoso. Inicialmente, havia desconfiança. Lembro que, na primeira viagem que fiz ao Chile neste governo, o nosso embaixador em Santiago, um homem muito inteligente e muito bom analista, o Gelson Fonseca, me disse olha, velhinho, não adianta muito falar em América do Sul. Aqui eles não querem saber disso; para eles, são ‘as Américas’, ou no máximo ‘América Latina’. E a relação deles com o México é também muito próxima. Aliás, nós também temos relação muito próxima com o México — isso é importante ressaltar.

    Essa era a atitude de um ano e meio atrás. Isso mudou muito, em função dos acordos e das discussões, que foram ganhando corpo: primeiro, na área comercial e, depois, também na área de infraestrutura, as realidades foram mudando. Muito mais lentamente do que desejaríamos, eu e, sobretudo, o presidente Lula. O presidente Lula, desde o início de sua vida política e profissional, viu as coisas acontecerem rapidamente. Nós também queremos rapidez, mas sabemos que temos que lidar com uma clientela nem sempre fácil.

    Enfim, os fatos evoluíram de maneira positiva, a tal ponto que o Mercosul logo fechou o primeiro acordo com os países andinos — isso sem contar a Bolívia, que já era associada ao Mercosul há mais tempo. A Bolívia, por sua posição geográfica, sempre esteve muito ligada ao Prata. O Peru foi um passo novo: foi o que desencadeou depois o acordo com os três outros países da Comunidade Andina. Na ocasião em que o Acordo-Quadro Mercosul-Peru foi fechado, o presidente Toledo se referiu pela primeira vez, para uma audiência pública, à Comunidade Sul-americana de Nações. Então, passamos, além de continuar trabalhando para fechar os acordos comerciais — o que não é simples —,a trabalhar pela integração política da América do Sul.

    Lembro-me de uma conversa que tive na Colômbia, que era um dos países que mais resistiram, por motivos até compreensíveis — porque tinha e tem uma relação muito próxima com os Estados Unidos, em parte devido às preferências dadas aos países andinos, em função da questão das drogas. Os colombianos tinham muito temor em fazer qualquer coisa que pudesse desagradar aos Estados Unidos. Nessa reunião, eu fiz ao meu colega, o ministro do Comércio, Jorge Humberto Botero, uma pergunta, que depois o presidente Lula também repetiu ao próprio presidente Uribe. Tínhamos dificuldade de compreender como o setor industrial colombiano tinha tanto medo do setor industrial brasileiro e não tinha medo dos Estados Unidos. Isso não era compreensível, não era lógico.

    Essa conversa com o ministro Botero, que demorou talvez uma hora, foi uma das mais interessantes que eu tive ao longo desses dois anos e pouco à frente do Ministério. Os fatos ficam registrados, mas as conversas nem sempre. E as conversas são a coisa mais interessante. Muitas vezes, as conversas diplomáticas são caracterizadas por uma rápida concordância ou por uma discordância, digamos, conceitualmente conflitante, que não permite que se avance. Na conversa com o ministro Botero, partimos de pontos de vista diferentes, mas com grande engajamento intelectual. Esse foi o momento (além da evolução das relações com o Peru) que realmente permitiu que tivéssemos uma negociação comercial séria entre a Comunidade Andina e o Mercosul — embrião para a formação dessa Comunidade Sul-americana de Nações.

    É claro que tem que se juntar a isso muitos outros fatores políticos: a presença do presidente Chávez, com grande interesse em se aproximar politicamente do Mercosul; também o próprio presidente Uribe, que tem interesse político e estratégico de manter uma relação próxima com o Brasil; e, obviamente, o grande interesse do presidente Lula em avançar a integração sul-americana.

    A reunião de ontem tinha como objetivo preparar a reunião presidencial e consolidar um documento que seria a base de uma Declaração. Houve reuniões com vice-ministros em Lima e negociou-se um texto. As dificuldades habituais nesse tipo de foro fizeram com que, ao final, se chegasse a um documento que parecia útil — como reiteração de propósitos —, mas muito limitado para ser a base da Declaração Presidencial.⁵ Há países que ainda continuam pensando que a Comunidade poderá ser instrumentalizada pelo Brasil para outros objetivos. Na diplomacia, às vezes temos que fazer um pouco de psicanálise. A integração da América do Sul não é um objetivo exclusivamente brasileiro. Ela pode ajudar o Brasil e pode ajudar outros países.

    Vou dar dois exemplos. Pela primeira vez, todos os países da América do Sul votaram da mesma maneira em relação à situação dos direitos humanos em Cuba. Tenho absoluta certeza de que, se não fosse a existência, ainda que virtual, da Comunidade Sul-americana, a Casa, isso não teria ocorrido. Se não tivesse havido esse lançamento da Casa, não haveria esse desejo comunitário de votarmos em bloco.

    Ontem mesmo, do meu gabinete, a ministra do Paraguai, Leila Rachid, ligou para o ministro do Chile para anunciar que vai apoiar o candidato chileno à Secretaria Geral da OEA, mudando a posição inicial, que estava baseada no interesse do Paraguai de ocupar o posto de número dois na OEA (seria difícil para um sul-americano ocupar a posição número um e outro sul-americano ocupar a de número dois). Foi um gesto generoso, até do ponto de vista pessoal, mas a existência do Mercosul também levou a essa mudança de posição e de mentalidade. São dois exemplos que demonstram avanços. Mas do lado desses avanços há resistências.

    Quando de manhã cedo, no sábado, liguei para o embaixador Samuel para tratar da minuta de Declaração Presidencial, eu disse que o texto não era suficiente. Então, tivemos que transformar a reunião, que era para aprovar uma Declaração, em uma coisa diferente, o que, aliás, foi muito útil. Transformamos a reunião em um brainstorming (descobri que em espanhol se chama "tormenta de ideas"!) sobre o que queremos para a Comunidade Sul-americana. Já tinha havido várias reuniões de vice-ministros sobre esse tema — os próprios presidentes já haviam debatido um pouco —, mas os ministros nunca. Havia, portanto, um vácuo.

    Acabou sendo uma reunião extremamente útil. Às vezes, as coisas mais importantes não aparecem logo nos jornais. Dizer que houve um brainstorming certamente não é notícia: notícias são declarações sobre as divergências. Então, fizemos a reunião; aproveitamos, naturalmente, o documento; juntamos com os documentos dos vice-ministros, para fazer outra reunião ministerial. Até lá vamos preparar uma Declaração.

    O que achei interessante na reunião de ontem foi justamente o fato de você se defrontar, muitas vezes, com situações que tem de modificar no próprio curso dos eventos. Se tivéssemos nos concentrado na discussão daquele documento que havia sido preparado, poderíamos tê-lo melhorado — ou piorado — um pouco, mas seria, certamente, algo que as pessoas olhariam e diriam: Isso aqui é um parto da montanha. Eram nove ministros e três vice-ministros produzindo um documento com áreas prioritárias, que, a rigor, já haviam sido definidas antes — apenas se selecionaram cinco de oito, ou seis de oito ou nove. Mas acabou havendo uma discussão extremamente interessante, extremamente positiva. Os países revelaram seu grau de compromisso com a Comunidade. E isso foi ficando claro. Foi ficando claro também que não é desejo do Brasil impor nada, que cada um dará sua contribuição. Vários, aliás, já deram. Outros países até foram além de nós em matéria de propostas.

    Quero falar ainda sobre um outro assunto. O secretário-geral, com quem tenho uma perfeita afinidade, me sugeriu falar exatamente sobre o que eu já tinha intenção inicial de falar: a mais recente viagem do presidente Lula à África. Bem, todos sabem que a África voltou a ser uma prioridade real — não apenas retórica — de nossa política externa.

    O presidente Lula diz sempre que já esteve em catorze países africanos. Eu mesmo não sei o número de países em que estive — já perdi a conta. Basta ver a imagem do presidente Lula na Ilha de Gorée para entender a importância que a África tem para a nossa própria formação. E há também outros interesses: o comércio com a África está longe de ser desprezível. Temos um comércio com a África de cerca de US$ 6 bilhões — uma cifra considerável.⁶ Importamos petróleo da Nigéria; temos muitas exportações; com muitos países temos superávits enormes. O comércio total é mais ou menos equilibrado.

    Enfim, o presidente Lula já esteve várias vezes na África. Todas as viagens foram importantes, cada uma a seu modo. O que vou dizer agora é muito subjetivo, porque, evidentemente, é um julgamento que talvez a história terá que fazer com mais calma, mas, de todas as viagens que ele fez à África até hoje, acho que essa foi a mais impactante.

    Na primeira, o presidente Lula foi para os países de língua portuguesa — o que, é claro, é muito importante, mas também é mais fácil, porque as afinidades soam mais óbvias, digamos assim. Mas, apesar disso, nenhum ministro brasileiro tinha estado, por exemplo, em São Tomé e Príncipe. Eu já estive lá quatro vezes. Vocês se preparem, porque a política externa brasileira tomou novos rumos.

    Naquela viagem estivemos na África do Sul e na Namíbia. A primeira viagem que o presidente Lula fez aos países árabes abarcou dois países que também são africanos, Egito e Líbia, mas, pelo menos na nossa concepção, que parece ser igual à concepção da mídia, nós vemos esses países árabes como algo à parte. Depois, estivemos em São Tomé novamente; o próprio presidente Lula esteve duas vezes em São Tomé, mas, nesse caso, em uma reunião de cunho multilateral, da CPLP. Depois, o presidente foi a Cabo Verde.

    Desta vez, talvez pelo fato de terem sido cinco países em cinco dias (e cinco países muito diferentes entre si), foi uma viagem muito concentrada e o impacto foi muito grande. As pessoas que viajaram pouco e conhecem pouco a África — digamos 99,99 por cento dos brasileiros em geral e uns 80 por cento dos nossos diplomatas — devem achar que a África é uma coisa só; no máximo, distinguem a África Subsaariana, a África do Sul e a África de língua portuguesa, pela característica do idioma. Mas não é assim! Essa observação inclusive foi feita pela ministra Matilde Ribeiro, que ficou muito impressionada com a diversidade de situações, de culturas e de níveis de desenvolvimento nos países africanos.

    Começamos pela República dos Camarões — um país pequeno, relativamente bem organizado, francófono, com uma minoria anglófona (além, é claro, das línguas locais). De lá, fomos à Nigéria — maior país da África em população, com 130 a 140 milhões de habitantes. Aliás, se eu tivesse que colocar um anúncio nos corredores do Itamaraty, seria assim: Procura-se um ministro de primeira classe, de preferência não do Quadro Especial, para ir à Nigéria como embaixador.

    Não tenho a menor dúvida de que, dentro de dez ou quinze anos, a nossa relação com a Nigéria vai ser tão importante como com qualquer país sul-americano. Temos um comércio de US$ 4 bilhões — é claro que nessa conta entra muito petróleo. Mesmo assim exportamos meio bilhão de dólares para a Nigéria — o que não é pouco. Uso o comércio como indicador. As relações políticas vão muito além dos indicadores de comércio. A Nigéria é um candidato importante ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Se houver uma reforma no Conselho de Segurança — que nós esperamos que ocorra —, a Nigéria será um dos países considerados. E costumamos enviar à Nigéria um ministro de segunda classe recém-promovido e sem chances de chegar no topo da carreira. Quando o embaixador chega lá, não tem ninguém que queira trabalhar com ele. Infelizmente é assim. Mas queremos mudar.

    Falo por mim mesmo. Se você é embaixador em Madri, ou em Roma, ou em Genebra, ou em Londres, ou em Nova York, ou em Bruxelas, e liga para o subsecretário (ou para o diretor do Departamento, talvez com mais efetividade até pela razão que eu vou expor) e pede alguma coisa, a reação costuma ser: Opa, esse cara pode vir a ser ministro de Estado ou secretário-geral. Eu posso trabalhar com ele. Acho melhor eu atender. Mas, se você ligar de Abuja, as chances de o telefone estar ocupado, de a secretária não atender, de o diretor do Departamento não estar são imensas — garanto a vocês. É um círculo vicioso. Há lugares de enorme importância para a política externa brasileira onde há imensa dificuldade de lotação, em todos os níveis. Nós estamos tentando mudar isso.

    Estamos tratando de enviar ao Congresso um projeto de lei sobre a ampliação dos quadros da carreira diplomática.⁸ Precisamos criar incentivos adicionais para que as pessoas comecem a ver com mais naturalidade a ideia de servir na África.⁹

    Mas abandono a minha digressão. O que houve de mais importante na Nigéria foi o encontro dos dois líderes. Na Nigéria, os presidentes costumam ficar em uma sala à parte. Só consegui entrar porque o presidente Lula me puxou para dentro — e não havia nenhum ministro deles. Depois, quando voltamos à sala maior, os demais ministros participaram de uma reunião breve e formal. Já na reunião presidencial houve uma discussão ampla, inclusive foi nessa reunião que surgiu a ideia das cúpulas África-América do Sul. Hoje, temos um contato próximo entre o líder do maior país da América do Sul — e da América Latina —, que é o presidente Lula, e o líder do maior país africano (em população), que é a Nigéria.

    E política se faz assim, inclusive negócios se fazem assim. Sem desprezar as feiras e os outros contatos, que também são importantes, o contato político é, obviamente, fundamental. Se amanhã, digamos, houver alguma questão que dependa de uma decisão política (e nós sabemos que há muitas questões que dependem de uma decisão política), o presidente Lula pode pegar o telefone e ligar para o presidente Obasanjo. Aliás, o presidente Obasanjo virá ao Brasil ainda este ano. Será o primeiro presidente africano a estar no Brasil na data da nossa Independência. Acho que é algo muito simbólico e muito importante.

    Agora, para além dos símbolos, o presidente brasileiro pode pegar o telefone e dizer: Olha, estamos aqui, temos igualdade de condições para competir. A Petrobras quer isso.... Se houver diferença, é óbvio que vai optar pelo que é melhor para o país dele. Mas, se houver paridade de condições, a proximidade política pode pesar. Como também pode pesar em outras questões internacionais (eu vou chegar a elas daqui a pouco).

    Da Nigéria fomos para Gana. Gana é um país bem organizado, relativamente pequeno. Tudo ocorreu dentro do previsto: houve reunião de presidentes, reunião de ministros, reunião de empresários. Nesta, houve discurso para o público. Houve também um momento muito importante do ponto de vista cultural e da busca das raízes do Brasil, que foi o encontro com a comunidade dos Tabons.¹⁰ Tudo isso em menos de 24 horas. Os presidentes estabeleceram um bom contato. Firmamos inclusive um acordo sobre linhas aéreas. Foi, enfim, um capítulo auspicioso da nossa política externa.¹¹

    De Gana, fomos para Guiné-Bissau, que é provavelmente o país mais pobre que eu conheço. Acho que nem o Haiti é tão pobre. O Haiti talvez tenha mais pobreza, mais miséria, mas também tem coisas ricas (bem, talvez não exatamente ricas), tem riqueza cultural. Você chega ao palácio presidencial e é um palácio presidencial. Tem, é claro, uma distribuição de renda péssima, mas tem uma elite, tem alguma coisa ali. Na Guiné-Bissau, na hipótese de ocorrer, digamos, uma revolução socialista radical como as que existiam no início do século XX, não haveria nada a ser distribuído. A sala do presidente da República é menor do que a sala do diretor do Instituto Rio Branco. Isso para não falar que, quando estivemos lá, não havia água corrente ou banheiro no gabinete do presidente. Enfim, o país enfrenta todas as dificuldades que se possa imaginar. Affonso de Ouro-Preto, aqui presente, que foi embaixador em Bissau na década de 1980, conhece a situação perfeitamente bem. Mas está pior, porque ocorreram duas guerras civis. É uma situação quase inconcebível. A visita do presidente Lula durou quatro ou cinco horas apenas, mas serviu para confirmar nossa disposição para cooperar em várias áreas.

    Estive em Guiné-Bissau em 1977. Naquela ocasião, como chefe de Divisão Cultural, já tinha o hábito de ir a esses lugares, provavelmente inspirado pelo ministro Silveira, um grande ministro, que tinha uma visão estratégica da posição do Brasil no mundo: a de que o Brasil não pode renunciar à sua grandeza. Mas, infelizmente, a mídia está cheia de gente — e, às vezes, até entre nós — que quer que o Brasil seja pequeno. O presidente Lula não pensa dessa forma. Ele pensa no Brasil como um país importante, um país que tem capacidade de produzir coisas boas, sem o desejo de dominar ninguém. Enfim, a primeira vez que fui a Guiné-Bissau foi em 1977. Fiz um memorando — naquela época, fazia-se memorando — sugerindo que se abrisse um Centro de Estudos Brasileiros em Guiné-Bissau. Não se tratava de mais um Centro de Estudos Brasileiros, tratava-se de participar da criação de um país.

    Agora estamos fazendo outras coisas em Guiné-Bissau. Estamos fazendo um centro de formação profissional do Senai. Se a situação política se estabilizar, esse centro fará parte da vida de Guiné-Bissau. São coisas de grande importância, que custam relativamente pouco, que podemos fazer com o apoio de outros órgãos públicos.

    Além da cooperação, algo realmente importante em Guiné-Bissau foi a conversa que o presidente Lula teve com os líderes políticos, inclusive com os da oposição. Ele teve um encontro com os membros do Parlamento. Não era uma sessão plenária, porque o Parlamento estava em recesso, mas estiveram presentes cerca de trinta parlamentares. E ele falou de coração muito aberto, exortando os líderes dos vários partidos a procurarem encontrar um diálogo, porque não é possível que um país tão pobre, com tanta dificuldade, não só crie mais problemas por meio dos conflitos internos, mas se isole da comunidade internacional. Obviamente, quanto mais conflitos internos e mais golpes de Estado, mais razão (ou pretexto) para que a União Europeia ou o Banco Mundial suspendam a ajuda. Então, em Guiné-Bissau, tivemos quatro ou cinco horas muito produtivas.

    E de lá fomos ao Senegal. Tínhamos ido a dois países anglófonos, um francófono, um lusófono e, finalmente, a outro francófono. Senegal também é um país diferente. A visita foi muito bem organizada. Tivemos uma recepção muito calorosa e colorida. Houve o episódio da Ilha de Gorée, que, talvez, tenha sido o ponto simbólico de toda viagem. Tenho quarenta anos de vida diplomática. Já vi muita coisa. Mas nunca tinha visto um jornalista chorar — a não ser, é claro, por motivos próprios, pessoais.

    Depois do discurso dos três ministros, digamos assim afro-brasileiros (embora todos nós de alguma forma o sejamos); depois do discurso do presidente Lula, que eu percebi que comovia o presidente do Senegal; depois do discurso do presidente do Senegal; ao final, estava todo mundo com lágrimas nos olhos. Segundo algumas confidências, alguns choraram mesmo, compulsivamente. Todos os demais estavam com lágrimas nos olhos, os jornalistas, o intérprete, o próprio presidente, nós todos. Tudo isso foi muito emocionante. E não há nada de piegas nisso. Foi uma coisa muito real e muito profunda. E eu acho que sentimentos também fazem parte da política. Não podemos abolir isso. É claro que não podemos jamais nos afastar da razão, porque ela nos orienta, mas o sentimento também indica, aponta; não pode ser totalmente posto de lado pela razão.

    A visita ao Senegal correu muito bem do ponto de vista empresarial. Tivemos uma discussão importantíssima sobre Guiné-Bissau. O Senegal tem onze milhões de habitantes, enquanto a Guiné-Bissau tem um milhão e pouco. E o Senegal é um país que tem um problema — não é um problema de fronteira, mas um problema na fronteira — porque uma das etnias do Senegal também se prolonga por Guiné-Bissau.

    O Brasil é, cada vez mais, um interlocutor para a discussão de temas africanos. Isso não quer dizer que, no passado, nós não tenhamos feito nada. Os vice-ministros certas vezes o fizeram, certamente meus antecessores também fizeram. Sobretudo na ONU, nos foros internacionais. O Brasil, por estar no Conselho de Segurança, sempre teve uma margem de ação. Estivemos em Angola e Moçambique.¹² Mas, dessa vez, senti algo diferente. Primeiro, senti uma demanda, por todos os lugares em que estivemos. O secretário-geral da Cedeao — a Comunidade dos Estados da África Ocidental — também nos demandou maior presença política do Brasil para ajudar a resolver a crise em Guiné-Bissau. Em Gana e no Senegal, nosso envolvimento na Guiné-Bissau teve uma receptividade grande, o que tem muito a ver, naturalmente, com o presidente Lula, mas também com o Brasil. Na República dos Camarões e na Nigéria, discutimos com franqueza sobre as questões fronteiriças entre os dois países.

    Talvez não houvesse a mesma receptividade se se tratasse do presidente de um país europeu ou de outro país desenvolvido. A pedido do próprio presidente Lula, eu liguei, nos últimos dez dias, duas vezes ao secretário-geral da ONU para falar sobre Guiné-Bissau. Recebi ontem o telefonema da ministra de Moçambique sobre o mesmo tema. Então, deixamos de ser um estranho que apenas age porque é, incidentalmente, presidente da CPLP, ou porque é membro não permanente do Conselho de Segurança. Essa mobilização foi proposital, porque temos uma efetiva capacidade de agir na região — e também temos o desejo.

    Eu me lembro de haver lido, certa vez, um artigo de uma pessoa por quem tenho estima intelectual — embora tenhamos diferenças — sobre o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Havia toda essa discussão sobre o poder, sobre o que é uma potência média, o que é uma grande potência. Muitas vezes, essas coisas são vistas de maneira meio estanque. Havia uma referência à situação do Brasil. Fiz um comentário sobre o fato de que essa questão de poder tem várias dimensões. (Naturalmente, não vou dar uma aula aqui de ciência política. Em outro dia, quando o diretor do Rio Branco me convidar, poderei vir aqui dar uma aula.) Entre as dimensões do poder, está o desejo de exercer o poder. Se não houver esse desejo — não é dominar; é você falar, ter influência, contribuir para a solução de questões —, todas as condições objetivas podem estar dadas, mas não valerão de muito. Essa é também uma das características da atual política externa do presidente Lula: há um desejo de exercer poder. Poder é uma palavra muito pesada, dá a impressão de que você vai desembarcar com tropas ou impor sanções econômicas. Não é isso. Estou falando de exercer sua influência positivamente. Em geral, temos feito isso. Foi assim com relação à Venezuela e à Bolívia. E podemos vir a fazer o mesmo em relação a Guiné-Bissau.

    Era isso que eu queria dizer, em função desses dois episódios, partindo do particular para o geral, dois episódios recentes que, de maneira diversa, ilustram como estamos agindo em política externa e como ela é feita no dia a dia.

    [1] Cerimônia de comemoração dos sessenta anos do Instituto Rio Branco. Palestra para as Turmas 2003-2005 e 2004-2006 do IRBr.

    [2] O Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política da América Latina e do Caribe — ou Grupo do Rio — surgiu em 1986, da união do Grupo de Contadora (composto de Colômbia, México, Panamá e Venezuela) com o Grupo de Apoio (composto de Argentina, Brasil, Peru e Uruguai), ambos criados para ajudar no equacionamento de crises políticas na América Central. Outros membros foram progressivamente incorporados ao Grupo do Rio, que hoje abarca a quase totalidade dos países da América Latina e do Caribe. A mais recente adesão foi de Cuba, em 2008.

    [3] Somente em dezembro de 2008 viria a realizar-se uma reunião — neste caso uma cúpula — dos países da América Latina e do Caribe, convocada pelo presidente Lula e realizada em Sauípe.

    [4] A propósito desse evento, a Assessoria de Imprensa do gabinete (MRE) emitiu, em 18 de outubro de 2004, nota afirmando terem sido assinados documentos de protocolização do Acordo de livre-comércio entre o Mercosul e o Peru (ACE-58) e do Acordo de livre-comércio entre o Mercosul, a Colômbia, o Equador e a Venezuela, países-membros da Comunidade Andina (ACE-59). Formalizou-se, assim, o processo de protocolização dos mencionados acordos junto à Aladi, com vistas à sua inclusão no ordenamento jurídico dos países signatários. Ambos podem ser consultados em: www.aladi.org.

    [5] Esta viria a ser a Declaração sobre a Convergência dos Processos de Integração da América do Sul, adotada em Brasília a 30 de setembro de 2005. Ela pode ser encontrada em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2005/09/30/documentos-adotados-por-ocasiao-da-i-reuniao-de.

    [6] Poucos anos depois, em 2008, o comércio entre o Brasil e a África chegaria a US$ 25 bilhões.

    [7] Hoje, temos uma ministra de primeira classe chefiando a nossa embaixada em Abuja, a embaixadora Ana Candida Perez.

    [8] A ampliação de 400 vagas para novos diplomatas foi estabelecida pela medida provisória n. 269, de 15 de dezembro de 2005, depois transformada em lei.

    [9] Nos últimos anos, a lotação dos chamados postos C e D tem sido incentivada por meio de medidas como a promoção dos diplomatas que aceitam servir nesses postos e a sua posterior remoção para postos A.

    [10] Uma parcela dos escravos brasileiros libertos ao longo do século XIX pôde retornar à costa ocidental da África, estabelecendo comunidades no Benin, na Nigéria, no Togo e em Gana. A comunidade em Gana é conhecida como Tabom, porque, não conhecendo os idiomas locais, seus membros respondiam a todas as perguntas com a expressão tá bom.

    [11] Como resultado da relação inaugurada com essa visita, a Embrapa viria a abrir um escritório em Acra. Financiamentos foram concedidos para obras civis e para a produção de etanol.

    [12] O Brasil participou de quatro operações de manutenção da paz em Angola entre 1989 e 1999 (Unavem I, Unavem II, Unavem III e Monua), tendo chegado, em dado momento, a contribuir com pouco mais de mil militares (além de policiais, equipes médicas e observadores eleitorais). Em Moçambique, contribuímos com pouco mais de duzentos militares, afora policiais e observadores eleitorais, para uma operação de manutenção da paz (ONUMOZ) entre 1993 e 1994. Um general de divisão brasileiro exerceu o comando dessa missão de paz entre fevereiro de 1993 e fevereiro de 1994.

    2

    As Forças Armadas brasileiras não atirarão sobre o povo

    Engajamento brasileiro no Haiti.

    20 de fevereiro de 2006¹

    Quando o embaixador Fernando Reis me falou em voltar ao Instituto Rio Branco para conversar com a nova turma, eu havia pensado em fazer algo mais amplo, mais abrangente. Havia pensado em me deter um pouco sobre as últimas negociações da Rodada Doha da OMC, por ter sido uma experiência recente. Mas o tempo hoje é mais escasso do que eu imaginava quando marquei essa conversa.

    Vou me deter mais em outro assunto, mais atual. Tive ocasião de conversar com algumas turmas do Rio Branco, quando procurei dar a ideia da política externa em se fazendo, na medida em que ela está avançando.

    É claro que a Reunião Ministerial da OMC de dezembro passado em Hong Kong continua sendo um assunto atual. Mas está em uma fase em que seus resultados ainda estão sendo decantados. Achei preferível conversar com vocês sobre o Haiti, porque é algo que está em todos os jornais e porque está em processo de realização. É, assim, especialmente atual.

    Aliás, me referindo ao Haiti, eu li ontem um bom artigo do senador Suplicy, publicado no Jornal do Brasil.² Era muito simples. Não era um artigo profundo, de história, mas acho que valeria a pena ler, até para entender um pouco as motivações e as reações em relação a nossa presença no Haiti.

    Queria dar a perspectiva de quem está mais diretamente envolvido. Gostaria de transmitir a vocês minha visão de como se deu nossa presença no Haiti, o que ela já obteve e o que pode ajudar a obter. Já mencionei o artigo do senador Suplicy, de modo que não preciso me estender aqui sobre a trágica sucessão de governos autocráticos e à própria história do Haiti.

    Mas a verdade é que, tendo sido o primeiro país da América Latina e do Caribe a ficar independente — o segundo das Américas, só depois dos Estados Unidos — e o primeiro a abolir a escravatura (até pela natureza de sua própria população), o Haiti viveu uma sucessão de situações altamente dramáticas, culminando nos governos de Papa Doc e de Baby Doc — ditaduras que chegariam a ser até caricatas, se não fossem mais conhecidas por seu lado sangrento. Mesmo depois da queda de Baby Doc, a situação nunca se normalizou. Houve uma série de intervenções militares. Houve governos eleitos com muita expectativa, o que nos faz ver com cautela o futuro. Não podemos desprezar o que há de positivo, mas também não podemos nos deixar levar pelo otimismo ingênuo.

    Tivemos situações complexas. O próprio presidente Aristide, em sua segunda volta ao poder, realizou um governo que não conseguiu unir a sociedade haitiana. Esse será um dos desafios que precisará continuar a se enfrentar. A crise do governo Aristide culminou com sua saída. É difícil precisar as circunstâncias. Muitos alegam que o país estava à beira de um banho de sangue. Seja como for, Aristide saiu. Nos momentos críticos que antecederam a sua partida, tivemos muitos contatos com vários dos envolvidos — Caricom, Estados Unidos, França. Não havia clareza sobre qual a direção dos acontecimentos. Houve momentos em que se pensou em uma solução alternativa: uma emenda constitucional que desse mais poder ao primeiro-ministro. Era essa a solução que a Caricom estava procurando, mas que acabou não se realizando. O envolvimento do Brasil, até então, era relativamente menor.

    Durante o governo Itamar Franco, do qual fui ministro, nós nos abstivemos na votação de uma Resolução do Conselho de Segurança que autorizou a força de intervenção no Haiti — justamente a operação que levou Aristide de volta ao poder.³ Era uma situação diferente. Preferimos nos abster, porque, naquele momento, nos pareceu um precedente perigoso para outras situações que havia no próprio Caribe — inclusive em Cuba. Naquela época, a tensão entre os Estados Unidos e Cuba ainda estava muito aguda, de modo que preferimos nos abster.

    A situação agora era um pouco diferente, porque nos vimos diante de uma iminente queda do presidente Aristide e do risco de conflitos gravíssimos. Nos contatos que tivemos, dissemos que não participaríamos de nenhuma força de intervenção — portanto, de nenhuma força que fosse atuar no sentido de modificar o quadro político do Haiti, ainda que ela viesse a ser autorizada pela ONU. Mas dissemos que, eventualmente, em uma operação de paz das Nações Unidas, estabelecida pelo Conselho de Segurança, o Brasil poderia participar.

    Isso ocorreu em um momento em que o Brasil já vinha seguindo uma política mais proativa no continente.⁴ Havíamos tido uma ação diplomática importante, por exemplo, na crise da Venezuela. O Brasil foi fundamental para a criação do Grupo de Amigos do secretário-geral da OEA para temas relacionados à Venezuela, que contribuiu decisivamente para a realização do Referendo Revocatório previsto na Constituição com a presença de observadores internacionais. Isso evitou um agravamento ainda maior da crise por que passava aquele país.

    Enfim, por essas razões e porque fomos procurados de maneira muito insistente e por vários atores, nos dispusemos a participar de uma eventual operação de paz: desde que a força fosse aprovada e estabelecida pelo Conselho de Segurança. E assim as coisas se passaram. Houve uma primeira Resolução que autorizou uma força de intervenção, que tomou conta do Haiti logo após a saída de Aristide, da qual o Brasil não participou. Pouco depois foi votada outra Resolução, que estabeleceu a Minustah — a missão de paz no Haiti.

    Aproveito aqui para fazer um pequeno esclarecimento sobre as forças das Nações Unidas. Normalmente, elas operam em dois tipos de situações básicas, embora haja, como em tudo que é vivo — e a política é uma coisa muito viva —, zonas cinzentas. São basicamente duas situações: uma é a do Capítulo VI da Carta das Nações Unidas. Nesse caso, trata-se de manter a paz: não há um conflito aberto, mas é útil que haja uma força de interposição, por exemplo, para garantir que as partes que antes estavam em conflito (ou que poderiam ter estado em conflito) não se defrontem diretamente. Esse é o caso, por exemplo, da participação que o Brasil teve nas operações em Angola e Moçambique. Eram situações em que havia — respeitados ou não — acordos de paz. Tratava-se, principalmente, de garantir que não ressurgisse uma fagulha inesperada. E há as ações do Capítulo VII, que permite às Nações Unidas intervir para restabelecer a segurança, a ordem ou a paz em determinada região ou determinado país.

    Uma resolução baseada no Capítulo VII foi a que permitiu, por exemplo, algumas das ações na Iugoslávia. Não vou alongar demais essa digressão, mas queria mencionar que, no caso do Haiti, é uma mescla: há uma Resolução do Capítulo VI com elementos do Capítulo VII. Isso permitiria que a missão a ser comandada pelo Brasil fosse mais robusta, como se costuma dizer, e que pudesse empregar a força quando necessário. Essa talvez tenha sido a principal diferença entre a operação no Haiti e as anteriores em que o Brasil esteve envolvido.

    A questão relativa à conveniência de o Brasil integrar a Minustah motivou muitos debates no Congresso Nacional, inclusive com algumas percepções equivocadas. Menciono duas dessas percepções. Uma era do tipo: por que o Brasil vai intervir?. Equiparava-se o caso do Haiti ao caso do Iraque.⁶ Evidentemente, não há semelhança alguma — nem política, nem jurídica — entre os dois casos. Repito: no caso do Haiti, o Brasil integrou uma força das Nações Unidas. No do Iraque, o uso da força não foi sequer autorizado pelas Nações Unidas. Tratou-se de uma ação unilateral dos Estados Unidos e seus aliados. Então, a presença norte-americana recebeu uma certa legitimação, mas isso só ocorreu depois de consumada a invasão.

    Independentemente daquela outra comparação que fiz entre os Capítulos VI e VII da Carta, do ponto de vista da autorização pelas Nações Unidas, pode haver, vamos dizer assim, três situações. Existem as forças não autorizadas pelas Nações Unidas, que são ações unilaterais, sem amparo na Carta (a não ser que se trate de legítima defesa, mas esse é um caso à parte); as forças que são autorizadas pelas Nações Unidas, como foi o caso da Iugoslávia e da primeira força de intervenção no Haiti logo nas primeiras semanas, da qual o Brasil não participou; e as forças das Nações Unidas, os capacetes azuis propriamente ditos, que são forças da ONU. Na realidade, o general brasileiro que está lá não comanda as forças brasileiras: comanda as forças das Nações Unidas. E aqui há uma grande diferença entre o que ocorreu no Iraque e o que está acontecendo no Haiti.

    A outra percepção equivocada, até compreensível por motivos históricos, era a equiparação entre o que estava acontecendo no Haiti com o que havia ocorrido na República Dominicana, há quarenta anos. Tanto eu como o Fernando éramos jovens diplomatas naquele momento, em 1965, e acompanhamos de perto o drama da República Dominicana. Novamente, a diferença é total. Naquele caso, também não houve autorização das Nações Unidas. Houve uma votação no âmbito da OEA, realizada em Washington, mas a OEA não tinha capacidade jurídica de autorizar o uso da força armada. O Brasil participou da chamada Força Interamericana de Paz, ajudando a coonestar uma ação unilateral dos Estados Unidos. É muito diferente, portanto, do caso do Haiti, em que a força foi criada pelo Conselho de Segurança da ONU. Essas duas diferenças são essenciais.

    Como se sabe, no Congresso houve outras discussões, como: Se não conseguimos resolver o problema da Rocinha, como vamos resolver o problema do Haiti?, e outras questões do gênero. Essa inquietação, vinda dos representantes do povo, tem certa validade, mas, evidentemente, se trata de ações diferentes. Nossas Forças Armadas não se dedicam a um policiamento interno e o tipo de ação que estava sendo realizada no Haiti tinha algumas características policiais, mas, principalmente, características militares.

    Você sempre poderá fazer esse tipo de pergunta em relação a qualquer ação internacional: Por que afinal a gente paga a ONU, em vez de arrumar dinheiro para uma intempérie qualquer que tenha ocorrido em nosso país?. Porque a vida é assim. Você tem que trabalhar com um nível de solidariedade, ao mesmo tempo que trabalha voltado para a sua própria casa. Assim é na vida das pessoas, assim deve ser também na vida dos países.

    O Brasil vinha tendo uma projeção internacional grande e aquela era uma oportunidade. Nós percebemos, creio eu, desde o início, que havia uma chance para uma ação de natureza diferente. Até então, na prática, as ações no Haiti haviam sido quase sempre comandadas por uma grande potência, normalmente os Estados Unidos. A França, evidentemente, esteve muito envolvida, embora de forma mais remota; o Canadá, até certo ponto também. Mas nunca um país da América Latina ou, mais especificamente, um país da América do Sul havia estado à frente. A própria dificuldade que os Estados Unidos tinham, naquele momento, de se envolver militarmente na situação criava também oportunidade para que o Brasil e outros países da América do Sul participassem da força de paz. É importante dizer que vários países da América do Sul participam da força de paz — entre eles, Peru, Chile, Uruguai, Argentina — além da Guatemala. Então, era uma oportunidade de a América do Sul e a América Latina, de forma mais ampla, terem um papel de liderança na operação.

    Isso, ao meu ver, teve duas consequências importantes. Uma era que tínhamos autoridade moral para cobrar da comunidade internacional que a presença no Haiti não fosse apenas para o restabelecimento da ordem, mas que visasse a duas outras dimensões: a primeira delas era o diálogo político interno. Dissemos, quando se criou o Governo Provisório, que não éramos a força policial ou a guarda pretoriana do Governo Provisório. Estávamos no Haiti para ajudar a restabelecer a paz — e isso envolvia, entre outras coisas, o diálogo político. A presença latino-americana e caribenha e o nosso conhecimento da realidade — não porque tivéssemos vivência lá, mas pela semelhança com várias outras situações da América Latina, inclusive de natureza cultural — nos ajudariam a promover esse diálogo.

    A segunda consequência era a possibilidade de exigirmos ações para promover o desenvolvimento e a reconstrução do Haiti. Nós sempre defendemos que a ação no Haiti tinha três pilares: um deles era obviamente a paz, a ordem e a segurança; outro era o diálogo político — e não apenas a preservação daquele primeiro governo, cujos componentes eram quase todos provenientes da chamada burguesia haitiana, a burguesia de Pétionville; o terceiro era a reconstrução e o desenvolvimento do Haiti.

    Não posso dizer que o Brasil foi o único país que trabalhou por isso. Houve tentativas no passado de ajudar o Haiti, mas estamos vendo, à medida que as coisas se desenvolvem, que esta convicção é correta: que poderíamos concorrer para um tipo de ação que contribuísse para a mitigação do sofrimento, para a redução da miséria e para a promoção do desenvolvimento no Haiti.

    Vou mencionar rapidamente essa dimensão do diálogo político. Seria muito interessante também chamar aqui o embaixador Gonçalo Mourão, que esteve lá muito tempo, para dar um depoimento pessoal. Ele até escreveu um belíssimo livro de poesia sobre Gonaïves, depois de assistir a uma enchente e ver a beleza do povo e da paisagem, junto à tragédia e à miséria.

    Em vários momentos, nós atuamos no sentido de fazer com que as forças políticas no Haiti conversassem umas com as outras. No início, o primeiro-ministro Gérard Latortue chegou a se queixar do Brasil. Alguns políticos haitianos queriam que o Brasil fosse embora; preferiam os americanos. Muitos achavam que os americanos dariam meia dúzia de tiros na população e restabeleceriam a ordem como esses políticos a entendiam. A nossa maneira de agir sempre foi diferente, sempre foi fomentar esse diálogo. E fomos conseguindo isso.

    A saída de Aristide, pelas circunstâncias em que se deu, gerou muitas reações. Mantivemos diálogo intenso com países que reagiram negativamente à saída de Aristide, como a África do Sul. Houve, também, reação negativa por parte da Caricom, que reúne basicamente o Caribe de língua inglesa, além do Suriname e do Haiti. E o Haiti havia sido suspenso da Caricom. Nós sempre achamos que a Caricom deveria ter um papel importante. Primeiro, em função dos vínculos culturais e étnicos. E porque um país não pode existir em um vácuo, tem que existir inserido em sua região. E o que notávamos, no início, era que as autoridades haitianas deixavam implícito, quando não explítico, o seguinte pensamento: Se eu tenho o apoio dos Estados Unidos, se a ONU, de alguma maneira, vai me apoiar, para que eu preciso ter esse contato com a Caricom?. Era uma atitude exageradamente altaneira, que dificultava o diálogo.

    Da parte da Caricom, havia aqueles que, baseados em experiências anteriores, temiam um precedente que pudesse ser usado contra algum daqueles pequenos países. Em um passado não muito longínquo, havia o exemplo de Granada.⁷ Achamos que era importante dialogar com a Caricom. Aliás, eu diria que um benefício lateral da presença brasileira no Haiti foi a intensificação das nossas relações com a Caricom, cujo desdobramento mais importante foi a ida do presidente Lula a uma reunião no Suriname, em que ele esteve com todos os líderes caribenhos.

    Eu mesmo fui a Barbados para participar de uma reunião convocada justamente para que o Brasil pudesse conversar com alguns integrantes da Caricom. Havia alguns ministros e muitos outros altos funcionários, inclusive um representante da Secretaria da Caricom. Mantive contato também com o secretariado da Caricom na Guiana, estive na Jamaica e em Trinidad e Tobago — neste caso tratando, também, de assuntos bilaterais. Mas o Haiti foi o catalisador para nossa relação com a Caricom. Na última Assembleia Geral da ONU, fizemos uma reunião, na Missão do Brasil, com todos os países da Caricom — coisa que, tanto quanto eu saiba, nunca tinha ocorrido antes. Pode ter ocorrido alguma vez, por algum objetivo puramente eleitoral, uma candidatura. Isso é até comum na ONU: fazer almoços ou encontros com grupos regionais. Mas para tratar de temas políticos, não creio. Eu chamo a atenção para isso porque, além do Haiti, nós tratamos de outros temas, como a campanha contra a fome, a reforma das Nações Unidas... Criou-se um diálogo que praticamente não existia.

    Mas o objetivo principal era ajudar a encaminhar bem a situação do Haiti. E fomos aos poucos demonstrando que nossa presença lá não era de maneira alguma para legitimar uma situação que se havia criado com a saída de Aristide, mas justamente para fazer com que o país voltasse a ter um governo, tanto quanto possível, democrático.

    No plano da cooperação, também agimos de maneira muito intensa. O Brasil teve um papel de relevo em trazer o Banco Mundial e o BID de volta ao Haiti. Essas instituições tinham os representantes em Porto Príncipe, mas estavam em uma posição de expectativa. E conseguimos: fizemos convênios com o Banco

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