Revoltas, conflitos e os novos caminhos da geopolítica: as interconexões entre o Oriente Médio e a América Latina
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Revoltas, conflitos e os novos caminhos da geopolítica - EDUC – Editora da PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
EDITORA DA PUC-SP
Direção
José Luiz Goldfarb (até 28/2/2021)
Thiago Pacheco Ferreira (a partir de 1º/3/2021)
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Ana Mercês Bahia Bock
Claudia Maria Costin
José Luiz Goldfarb
José Rodolpho Perazzolo
Marcelo Perine
Maria Carmelita Yazbek
Maria Lucia Santaella Braga
Matthias Grenzer
Oswaldo Henrique Duek Marques
© 2021 Reginaldo Nasser. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Revoltas, conflitos e os novos caminhos da geopolítica : as interconexões entre o Oriente Médio e a América Latina / Reginaldo Nasser (org.). - São Paulo : EDUC: PIPEq, 2021.
Bibliografia
1. Recurso on-line: ePub
ISBN 978-65-87387-39-0
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
Disponível no formato impresso: Revoltas, conflitos e os novos caminhos da geopolítica : as interconexões entre o Oriente Médio e a América Latina / Reginaldo Nasser (org.). - São Paulo : EDUC: PIPEq, 2021. ISBN 978-65-87387-49-9
1. Geopolítica. 2. Geopolítica - América Latina. 3. Geopolítica - Oriente Médio. 4. Política internacional. 5. Estados Unidos - Relações exteriores - Séc. XXI. I. Nasser, Reginaldo. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Plano de Incentivo à Pesquisa
CDD 327
327.1011
327.11
327.73
Bibliotecária: Carmen Prates Valls – CRB 8A./556
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
José Luiz Goldfarb (até 28/2/2021)
Thiago Pacheco Ferreira (a partir de 1°/3/2021)
Produção Editorial
Sonia Montone
Preparação e Revisão
Paulo Alexandre Rocha Teixeira
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Waldir Alves
Imagem: Pixabay
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do e-book
Waldir Alves
Revisão técnica do e-book
Gabriel Moraes
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
FrontispícioApresentação
Os últimos anos testemunharam uma onda de revoltas e contestações populares, seguidas por ações antidemocráticas e/ou contrarrevolucionárias nas regiões da América Latina e do Oriente Médio. Tal processo tem sido marcado por diversas formas de violência praticadas por atores estatais e não estatais, com intervenções armadas diretas ou indiretas, afetando significativamente o processo de construção da democracia e da paz em ambas as regiões.
As relações internacionais desses espaços e as suas transformações políticas, econômicas e sociais foram e continuam sendo profundamente impactadas por processos transnacionais de expansão e reprodução do capitalismo global, assim como por movimentos de resistência transnacionais, constituindo, portanto, um cenário nodal para compreensão dos conflitos na política mundial.
O objetivo principal deste livro é examinar as relações entre movimentos sociais, conflitos e as transformações do contexto geopolítico na América Latina e no Oriente Médio, incorporando as abordagens clássicas da política internacional, com destaque para o papel dos EUA enquanto Grande Potência. Para isso, conta com as contribuições de pesquisadores e pesquisadoras de instituições nacionais e internacionais de reconhecida autoridade nos temas abordados.
Os seis primeiros capítulos tratam da América Latina, abordando temas que têm conectado as agendas nacionais e internacionais.
O capítulo de abertura do livro trata de um tema sempre presente na história da América Latina, o extrativismo e o uso da violência, mas que tem adquirido mais visibilidade ultimamente. Tomaz Paoliello e Raphaela Carramillo avaliam a atuação das Empresas Militares e de Segurança Privada em contextos extrativistas com violações de direitos humanos e criminalização de ativistas ambientais, através de parcerias entre a polícia pública e empresas privadas.
No capítulo 2, Felipe Milanez e Isabella Lamas abordam o caso dos conflitos socioambientais na região sudeste do Pará, mostrando como o compartilhamento de experiências latino-americanas gera possibilidades de reflexão conjuntas sobre uma Ecologia Política no Sul global.
No capítulo seguinte, Rafael R. Ioris examina os principais desafios que deverão pautar o relacionamento entre a América Latina e os Estados Unidos durante o governo Biden. Mas, para fazer essa projeção, o autor faz ponderações sobre mudanças e continuidades a partir da análise dos anos Trump.
Um dos temas mais controversos na Política Internacional, as sanções econômicas dos Estados Unidos contra Cuba, é tratado pelo professor cubano Raul Rodriguez, que avalia quais foram as repercussões sociais dessa política na ilha durante o governo Trump.
Bárbara Blum, Isadora Mendes e Terra Budini propõem uma leitura das mobilizações estudantis no Chile a partir da perspectiva transnacional, assumindo que os movimentos sociais devem ser vistos não apenas no espaço social delimitado por fronteiras nacionais, mas também na sobreposição de espaços sociais internacionais.
No último capítulo dessa parte, que trata da América Latina, Lara Selis e Natália Félix dão destaque ao papel histórico desempenhado pela ação feminista na reconstrução da política latino-americana por meio de uma outra linguagem democrática, alargando consideravelmente nossos horizontes na luta pelos direitos humanos.
Os seis capítulos seguintes tratam da região do Grande Oriente Médio, que inclui o Afeganistão e o Irã.
Maria Gabriela Vieira e Paulo Pereira contribuem com um tema ainda pouco debatido nas relações internacionais, mas que cada vez mais deverá chamar a atenção do mundo: a produção e o comércio de ópio no Afeganistão. Os autores propõem compreender as disputas políticas em torno desse tema e suas consequências para a pacificação do país.
Sergio Moya propõe-se a analisar um aspecto de segurança internacional envolvendo o Irã que é frequentemente obscurecido pela denominada Questão Nuclear. O autor explica como o Irã tem desenvolvido capacidades tecnológicas independentes para a produção de armas e tecnologia, credenciando-o como poder regional.
Gustavo Oliveira e Reginaldo Nasser abordam as interações entre Estados Unidos e Rússia no Oriente Médio durante a presidência de Donald Trump. Ao fazê-lo, mostram a complexidade das relações entre as duas grandes potências que, apesar da existência de áreas de convergência, mantiveram um significativo caráter de rivalidade e de disputa na região.
A questão palestina está presente no livro a partir de uma análise sobre os 20 anos da segunda Intifada. Arturo Hartmann, Bruno Huberman e Isabela Agostinelli analisam as razões da eclosão do levante, as contradições de visões da política doméstica palestina ante a colonização e as estratégias de Israel para a manutenção de controle sobre esses territórios.
Ignacio Álvarez-Ossorio centra sua análise na forma pela qual as disputas e a rivalidade crescente entre Irã e Arábia Saudita contribuem para uma ampla reconfiguração de todo o espaço geopolítico do Grande Oriente Médio.
No último capítulo do livro, Reginaldo Nasser e Rodrigo Amaral apresentam suas considerações sobre a forma pela qual o governo Trump conduziu as ações no Iraque, colocando como prioridade os interesses econômicos em detrimento de questões relacionadas à democracia e, até mesmo, dos interesses estratégicos militares.
Reginaldo Nasser
Professor livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC-SP, Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), coordenador do Geci (Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais) e pesquisador do Ineu (Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA).
SUMÁRIO
Capítulo 1
Conflitos locais, violência e segurança privada em operações de mineração na América Latina
Tomaz Paoliello
Raphaela Carramillo
Capítulo 2
Ecologias políticas na América Latina: fronteiras e lutas na Amazônia em perspectiva global
Felipe Milanez
Isabella Lamas
Capítulo 3
Mais do mesmo ou reversão de curso? Perspectivas para a América Latina no Governo Biden
Rafael R. Ioris
Capítulo 4
Las sanciones económicas de Estados Unidos contra Cuba durante el Gobierno de Trump: sus repercusiones en la sociedad cubana
Raúl Rodríguez Rodríguez
Capítulo 5
Movimentos sociais e espaços transnacionais na América Latina: uma leitura das mobilizações estudantis no Chile
Bárbara Cyrillo Blum
Isadora Mendes de Paula Souza
Terra Friedrich Budini
Capítulo 6
Por uma outra linguagem democrática: ação feminista na América Latina e a reconstrução do político
Lara Martim Rodrigues Selis
Natália Maria Félix de Souza
Capítulo 7
A regulação do ópio afegão: um caminho para a paz?
Paulo Pereira
Maria Gabriela Vieira
Capítulo 8
La República Islámica de Irán y sus capacidades militares: desarrollos recientes en la industria de la defensa
Sergio I. Moya Mena
Capítulo 9
20 anos da Segunda Intifada em Palestina/Israel: conflito, segregação e resistência
Arturo Hartmann
Bruno Huberman
Isabela Agostinelli dos Santos
Capítulo 10
La guerra fría entre Irán y Arabia Saudí y la reconfiguración de Oriente Médio
Ignacio Álvarez-Ossorio
Capítulo 11
O governo Trump e a Rússia no Oriente Médio
Gustavo Oliveira Teles de Menezes
Reginaldo Mattar Nasser
Capítulo 12
A presença dos EUA no Iraque durante o governo Trump. Uma diplomacia de negócios?
Reginaldo Mattar Nasser
Rodrigo Augusto Duarte Amaral
Capítulo 1
Conflitos locais, violência e segurança privada em operações de mineração na América Latina
Tomaz Paoliello
¹
Raphaela Carramillo
²
Introdução
Durante as últimas duas décadas, a América Latina testemunhou um grande crescimento das atividades extrativistas regionais, aumentando sua participação global na indústria de 12% nos anos 1990, para 33% no começo dos anos 2000 (Bebbington et al., 2008). No mesmo período, cerca de doze dos vinte e cinco maiores projetos de mineração do mundo foram atraídos para a região, fazendo com que ela se tornasse receptora de 23% do mercado mundial de extração mineral (Gordon e Webber, 2008). No ápice da chegada desses projetos na América Latina, a exploração dos recursos minerais aumentou em 400% no comparativo entre as décadas de 1990 e 2000. Segundo dados do Banco Mundial de 2011, as economias mais beneficiadas com essas atividades foram Chile, Peru e Bolívia (Veltmeyer, 2013).
Grande parte dessa movimentação esteve relacionada com medidas de flexibilização legislativa promovida pelos próprios governos, atraindo olhares dos investidores internacionais. As legislações nacionais favoreceram a entrada de capital estrangeiro com a flexibilização de impostos, em particular a redução de royalties fornecidos às grandes corporações. Esse contexto também foi facilitado pelas legislações operantes regionalmente, que consideraram os direitos minerais como de propriedade do Estado, o que lhe garantiu a possibilidade de delegar a exploração de áreas de proteção nacional e terras indígenas para empresas, desencadeando conflitos relacionados à desapropriação das comunidades em prol do estabelecimento de megaprojetos na América Latina (Helwege, 2015).
Com o estímulo estatal em conceder os direitos de extração para empresas transnacionais, as operações extrativistas passaram a reproduzir diversas violências nos espaços afetados. Além da presença importante de atividades criminais dentro, ou nas cercanias das propriedades concedidas, os conflitos envolvendo grandes mineradoras e populações tradicionais também aumentaram, lançando luz sobre um processo que conecta casos individuais nos países latino-americanos. Especialmente quando se trata da extração mineral, muitos são os conflitos em torno do controle territorial, desde o acesso a recursos hídricos, insatisfação com a distribuição de renda, defesa dos direitos humanos, até a criminalização de protestos sociais que aumentam a violência e insegurança.
Conforme cresceram os cenários de violências e conflitos nas operações de mineração na América Latina, surge também um terreno fértil para o desenvolvimento dos mercados de proteção
, com o aumento da demanda de diversos setores econômicos por prestadores de segurança adicionalmente às forças de policiamento público. Atualmente, as transnacionais extrativistas são consideradas os maiores clientes das Empresas Militares e de Segurança Privada (EMSP). Apesar da atuação dessas empresas estar vinculada majoritariamente com contextos de conflito armado, apenas 20% das EMSP são contratadas pelos estados (Perret, 2012). Os principais consumidores de seus serviços são as indústrias, seguido pelo setor de transportes, entretenimento, comércio e bancos (Unlirec, 2016). O fenômeno começou a se popularizar de maneira mais frequente com o boom da mineração no Sul Global. A segurança passou a ser delegada às EMSP contratadas para realizar a vigilância patrimonial com patrulhas e postos de controle – segurança ostensiva – ou consultorias e vigilância para mitigação de riscos (Umlas, 2011). Muito além da violência ostensiva, as mineradoras e empresas de segurança privada buscam gerenciar a segurança com base em uma lógica que engloba sistemas de vigilância e constantes tentativas de aproximação com as comunidades impactadas, a fim de fazer com que seus membros enxerguem suas operações enquanto um benefício conectado ao próprio bem-estar (Honke, 2013).
Particularmente, a noção de gerenciamento de riscos
permitiu a esses atores operar sobre um conjunto amplo e heterogêneo de ameaças dentro de uma mesma chave. A lógica da identificação e mitigação de riscos à atividade econômica permite rotular indivíduos que cometem pequenos delitos, grupos criminais organizados, guerrilhas e grupos insurgentes, movimentos sociais e organizações de moradores locais como potenciais perigos (Krahmann, 2011). Nesses cenários, as empresas de segurança privada, a polícia e as forças armadas, entre outros atores provedores de segurança, tentam mitigar os riscos às operações extrativistas, afetando diretamente a vida das comunidades no entorno, tornando-se eles próprios reprodutores de violências.
O emprego das empresas de segurança, somado a participações pontuais de setores estatais, tornam nebulosa a linha que separa a atuação de componentes públicos e privados em contextos extrativistas, marcados por violência, tanto por forças públicas quanto privadas. Com isso, nota-se um fluxo intenso de policiais e militares empregados pelas EMSP, assim como a condução conjunta de operações nesses espaços, construindo uma vigilância baseada na repressão, detenções arbitrárias, desaparecimentos e assassinatos de defensores e ambientalistas (Justiça Global, 2016). Como forma de impor a permanência dos projetos extrativistas regionalmente, as mineradoras articulam estratégias de controle social, a fim de evitar burocracias que envolvem exigências ambientais e os princípios de consulta prévia e informada às comunidades afetadas, gerando uma onda de criminalização contra aqueles que se mostram contrários à continuidade de suas atividades exploratórias.
Especialmente na região dos Andes, a atuação das EMSP se tornou uma prática comum vinculada às operações de mineração (Jaskoski, 2015). No entanto, outras indústrias como o agronegócio, hidrocarbonetos, petróleo, madeira e óleo de palma também estimulam o crescimento da segurança privada vinculada às multinacionais extrativistas na América Latina. Tradicionalmente, a repressão dos movimentos de resistência indígena, campesinos e quilombolas por parte dessas empresas envolve a atuação conjunta das mineradoras e dos governos, que somam esforços para desmobilizar a resistência por meio da identificação dos setores afetados, como ameaças (Becerril, 2018), que impedem a manutenção das atividades consideradas essenciais para concretização do interesse público
.³
Este capítulo discute a expansão da segurança privada nas operações de mineração na América Latina, destacando o aspecto ambíguo de sua atuação como provedores de segurança, assim como de promotores de um conjunto de inseguranças a ativistas e populações locais. O processo de expansão das operações de mineração controladas por empresas transnacionais, presentes em outras partes do mundo, foi responsável por reproduzir na região diversas lógicas já visíveis e estudadas, por exemplo, no continente africano. Uma dessas lógicas é precisamente a reprodução do emprego de EMSP nos espaços afetados pelas operações extrativistas, incluindo as propriedades concedidas e seu entorno. Essa dinâmica conecta localidades latino-americanas no que Abrahamsen e Williams (2009, p. 3) classificam como global security assemblages, contextos em que uma gama de diferentes agentes de segurança globais e locais, públicos e privados e normatividades interagem, cooperam e competem para produzir novas instituições, práticas e formas de governança de segurança
.
A conexão da realidade específica das operações de mineração latino-americanas com dinâmicas globais é ainda pouco explorada de uma perspectiva da segurança. Por outro lado, é também pouco explorada a especificidade regional diante do conhecimento já produzido a respeito do tema, exercício que permite compreender como os contextos latino-americanos impactaram nas práticas já conhecidas, assim como permitiram a inauguração de novas tendências. Especificamente, este capítulo indica que a presença de provedores de segurança em regiões de mineração, cumpre propósitos complementares: a proteção da propriedade privada, fundamental para a expansão do capitalismo globalizado, e o enfrentamento de forças sociais locais, que reagem aos impactos das novas economias extrativistas. Adicionalmente, a identificação da presença reiterada de ameaças conhecidas e desconhecidas impulsiona o crescimento da segurança privada como um importante setor econômico, que, por si próprio, constitui um setor que negocia o risco como commodity. A expansão da segurança privada reconfigura a
relação entre a segurança e o estado soberano, as estruturas de poder e autoridade política e as operações do capital global. Nesse sentido, a governança da segurança está cada vez mais além do Estado e está entrelaçada com uma rearticulação mais ampla das relações público-privado e global-local. (Abrahamsen e Williams, 2009, p. 3)
Para ilustrar o fenômeno de expansão das global security assemblages na América Latina, este capítulo descreve a atuação da empresa de segurança Forza, subsidiária da transnacional Securitas, na mina de ouro de Yanacocha, na região de Cajamarca no Peru. O caso demonstra como empresas transnacionais de exploração extrativista buscam se conectar a autoridades locais, assim como produzir novas autoridades híbridas por meio da contratação de segurança privada, também provida por grupos transnacionais, conformando assemblages globais de segurança. Por meio dessas composições, os interesses de elites locais e globais se conectam em detrimento de populações locais e movimentos sociais que buscam se opor ou conter o avanço das novas economias, reproduzindo relações desiguais de poder local e global cristalizadas em novas práticas de controle social.
Global security assemblages e as operações de mineração na América Latina
O debate a respeito da relação entre grandes mineradoras e EMSP na América Latina ainda é recente, embora a atuação desses atores em conjunto não seja considerada um fenômeno novo. As pesquisas sobre o tema dedicaram-se principalmente à África, a partir dos anos 1980, como consequência de três grandes levas de reformas dos códigos de mineração. De maneira geral, o propósito desse processo era alterar as estruturas fiscais e regulatórias, facilitando a entrada do setor privado em países africanos (Campbell, 2006). Envoltos por um discurso que colocava atividades extrativistas como essenciais para concretizar o desenvolvimento nacional e, em sequência, a convicção de que a segurança desses espaços não poderia ser realizada pelo Estado, as violações de direitos humanos associadas com a mineração no continente promoveram constantes debates a respeito da redefinição do papel do Estado ou de seu enfraquecimento por conta de conflitos armados e outras questões políticas (Abrahamsen e Williams, 2017).
Apesar da existência de leis que regulam o crescimento do setor na América Latina, a supervisão das EMSP ainda é deficitária devido à falta de transparência sobre a utilização de armas, recrutamento de funcionários, o baixo orçamento de prestação de contas e a difusão de órgãos responsáveis pelo monitoramento do setor, fazendo com que, muitas vezes, as empresas operem à margem do controle do Estado (González e Valencia, 2019). Estima-se que existam mais de 16 mil empresas de segurança privada na região, empregando cerca de 2,4 milhões de pessoas. No Brasil, a proporção de funcionários de empresas de segurança privada em relação a funcionários das forças policiais é de quatro para um, enquanto na Guatemala é de cinco para um e em Honduras chega a ser de sete para um (Kinosian e Bosworth, 2018).
Os agentes privados na América Latina são considerados os mais fortemente armados do mundo fora das zonas de conflito, embora considere-se que sejam mal treinados no manuseio de armas de fogo e fracamente fiscalizados por antecedentes criminais (González e Valencia, 2019). A América Latina também é conhecida por ser a região mais perigosa do mundo para atuação de defensores ambientais (Kinosian e Bosworth, 2018), sendo responsável por 60% do total global dos assassinatos, embora abrigue pouco menos de 10% da população mundial (Watts e Vidal, 2017). Grande parte desses assassinatos é cometido por contratadas terceirizadas, que protagonizam, de maneira frequente, atos de violência em conflitos de terra contra comunidades locais.
É possível inferir que o aumento da recepção de megaprojetos ocorreu paralelamente ao crescimento da segurança privada para a maioria dos países da região, algo que também estimulou o aumento dos índices de violência e repressão em contextos extrativistas, marcados por desapropriações e violência, mas também pela omissão do poder público, que delega, voluntariamente ou não, a governança desses espaços para empresas privadas. O incentivo em atrair esses projetos estimula indiretamente o crescimento do mercado da segurança privada, já que as empresas transnacionais alegam terceirizar o serviço por falta de confiança nas forças públicas, ou pelo entendimento de que, somados aos policiais e militares do Estado, a segurança se tornará mais eficaz (Abrahamsen, 2006).
Muito além da separação entre as esferas público e privada, em diversos países da América Latina, a supervisão de empresas de segurança privada por policiais e militares aposentados é autorizada, assim como o emprego dos membros ativos do serviço público no setor privado (Bartilow, 2019). Esse processo consolida as relações entre esferas pública e privada enquanto um fenômeno híbrido, protegido por um arcabouço jurídico que permite a integração das polícias nacionais com o setor empresarial, tornando o Estado um instrumento fundamental para consolidação e expansão da indústria privada. Essa associação coloca o Estado como uma das partes de um processo multifacetado, que transforma a provisão da segurança, dando origem a novas práticas e formas de autoridade. Ele não se enfraquece nem se sobrepõe aos demais atores, mas se constrói com base nas dinâmicas que ocorrem em âmbito local, transformando as funções estatais em uma nova articulação entre o público e o privado e dos âmbitos global e local (Abrahamsen e Williams, 2009).
Abrahamsen e Williams (2009) consideram esse fenômeno como parte das global security assemblages, uma dinâmica que conecta a atuação de agentes estatais e não estatais por meio de uma relação multiescalar, ou seja, da expansão do mercado da segurança privada para além de empresas locais e nacionais, envolvendo também conglomerados transnacionais. Esse processo tende a conectar localidades por intermédio da difusão de práticas e tecnologias, além da reprodução das lógicas de produção de autoridades. Transformações jurídicas e regulatórias passam a produzir novos espaços de responsabilidade para além do escopo nacional/estatal. Dessa forma, atores governamentais produzem condições para que conglomerados de segurança privada passem a governar parcialmente espaços específicos, particularmente as chamadas propriedades privadas de massa
⁴. Esse tipo de definição de propriedade, em geral caracterizada por sua manifestação urbana, como distritos comerciais, bairros residenciais e shoppings, também define com precisão o tipo de espacialidade característica das operações extrativistas, sejam de mineração ou do agronegócio. Nesse tipo de formação, é comum que agentes privados exerçam grande autoridade, emulando ou eventualmente assumindo completamente o poder de polícia (Scarpello, 2016, p. 3).
De acordo com os relatos sobre a atuação de EMSP na América Latina, as empresas de segurança têm exercido um papel relevante na interação com populações locais afetadas pelas atividades de mineração, assim como movimentos sociais que atuam com temas relacionados à atividade econômica. Em diversos casos, os mesmos agentes de segurança privada são também responsáveis por produzir violências que catalisam movimentos de resistência. Um dos casos de maior repercussão, ocorrido no Peru, será utilizado como ilustração dessa dinâmica, descrito em detalhe na próxima parte deste capítulo. Mesmo diante da enorme importância econômica da mineração no país, há também uma presença importante de movimentos de resistência e de afetados por esse tipo de atividade.⁵ Atualmente, a mineração representa cerca de 65% da receita de exportação do Peru e os conflitos relacionados a ela são os mais mortais, além de representarem a maioria. Estima-se que dos 214 conflitos sociais do país, cerca de 76 estavam relacionados com a mineração em janeiro de 2017 (Defensoría Del Pueblo, 2017), ou seja, grande parte desses conflitos surgem com os efeitos da extração de minérios sobre as comunidades campesinas.
Sabe-se que, em 2012, na Amazônia peruana, existiam cerca de 5.812 concessões de mineração que afetavam aproximadamente 50% das comunidades campesinas do país (Quesada, 2012). Além disso, o Peru é o país que apresenta a maior escassez de água na América Latina, com 70% de sua população vivendo em regiões onde se encontram menos de 2% dos recursos hídricos (Bebbington, Williams, 2008). No entanto, o país possui um dos subsolos mais ricos do mundo, e é atualmente o segundo maior produtor mundial de prata, cobre e zinco e o primeiro produtor de ouro da América Latina (Quesada, 2012). No começo dos anos 1990, o país tornou-se receptor de um dos maiores projetos de extração de ouro da região, a mina de Yanacocha, de posse da mineradora estadunidense Newmont. A partir de 1992, a mineradora firmou um contrato com a empresa de segurança Forza, nacional do país, a fim torná-la exclusiva no fornecimento de segurança privada das operações de Yanacocha, processo permitido pela legislação vigente do país (Kamphuis, 2010).
O investimento da Securitas na segurança privada do Peru: Uma estratégia de desmobilização e espionagem contra ativistas ambientais
No começo dos anos 2000, uma série de acordos entre o governo peruano, transnacionais mineradoras e empresas privadas foram firmados durante e após o regime de Fujimori, assim como um pacote de medidas que reduzia o orçamento de segurança, fazendo com que os guardas privados superassem os públicos a partir de 2008 (Kamphuis, 2012), enquanto o orçamento militar caía de 14,4% em 1986 para 8% em 2006 (Jaskoski, 2015). O país vivenciava um contexto marcado pela crise financeira, desmobilização do exército e pela promessa de acabar com as guerrilhas insurgentes vinculadas ao partido Sendero Luminoso⁶. Neste contexto, a redução dos gastos militares, somada à flexibilização das legislações para o comércio internacional, atingiu especialmente a mineração, que foi classificada como atividade de interesse nacional, atuando com isenção de impostos e royalties no país. Adicionalmente, Fujimori sancionou a Lei de Promoção do Investimento no Setor