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Laços de confiança - O Brasil na América do Sul - 1ª edição 2022
Laços de confiança - O Brasil na América do Sul - 1ª edição 2022
Laços de confiança - O Brasil na América do Sul - 1ª edição 2022
E-book1.179 páginas14 horas

Laços de confiança - O Brasil na América do Sul - 1ª edição 2022

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Sobre este e-book

Em seu quarto livro publicado pela Benvirá, Celso Amorim relata suas experiências como chanceler no trato das relações do Brasil com seus vizinhos da América do Sul. O autor utilizou, como eixo da narrativa, anotações feitas à época dos acontecimentos, complementando-as com referências a documentos oficiais e informações de outras fontes. As notas e comentários refletem, de maneira franca e objetiva, as percepções do autor e as atitudes dos principais atores dessas relações, tais como Lula, Kirchner, Chávez, Uribe, Correa e Morales. Amorim focaliza aspectos sutis, frequentemente despercebidos, de relacionamentos tradicionais com países como Argentina, Uruguai e Paraguai. Percorre também, com uma ótica própria, fatos históricos como a criação da Unasul, a questão do Gasoduto com a Bolívia e o ataque da Colômbia às FARC no Equador. Laços de confiança constitui testemunho único de um importante personagem da dinâmica política sul-americana da primeira década do milênio. Reconstituir laços de confiança é um dos principais desafios de uma política externa que defenda os interesses nacionais sem abandonar a solidariedade e o respeito por nossos vizinhos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de mar. de 2023
ISBN9786558100638
Laços de confiança - O Brasil na América do Sul - 1ª edição 2022

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    Laços de confiança - O Brasil na América do Sul - 1ª edição 2022 - Celso Amorim

    Apresentação

    Segundo José Ortega y Gasset, o homem é o homem e sua circunstância. Com as devidas adaptações, o mesmo pode ser dito a respeito dos países. No caso de um país grande, como o Brasil, a circunstância é o mundo. Dentro desse quadro amplo, a América Latina e o Caribe, mais especialmente a América do Sul, constituem nossa circunstância imediata. No momento em que preparo esse livro, as relações do Brasil com seus vizinhos se encontram no nível mais baixo desde o início da Nova República. Quanto disso se deve a processos internos de cada um dos países e quanto provém de uma ação coordenada de fora é difícil dizer. A integração regional se havia intensificado de maneira notável na segunda metade dos anos 1980, em parte como decorrência da redemocratização dos países do chamado Cone Sul. Esse processo, que passou pela criação do Mercosul, no início dos anos 1990, e chegou a seu ápice na primeira década do novo milênio, com iniciativas como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), refluiu, dando lugar à fragmentação e à busca de relações privilegiadas com as grandes potências tradicionais. Não por acaso, esse refluxo coincidiu com a queda de governos progressistas e a chegada ao poder de líderes de direita (ou, em alguns casos, de extrema-direita).

    A realidade, porém, é dinâmica. A evolução política na Argentina e na Bolívia­, por exemplo, reacende as esperanças. Por ora, a principal tarefa dos defensores da integração sul-americana e de maior aproximação no conjunto da América Latina e Caribe parece ser a de contenção de danos. Mostrar que a realidade já foi outra e que é possível a construção de uma América Latina e Caribe fortes, unidos em sua diversidade, é um dos objetivos deste livro. Reconstituir laços de confiança1 é um dos principais desafios de uma política externa que defenda os interesses nacionais sem abandonar a solidariedade e o respeito por nossos vizinhos. Superar as brutais desigualdades e romper com a dependência externa é, e continuará a ser por muito tempo, uma tarefa de todos os que desejam uma América Latina mais justa e autônoma. A nova geopolítica mundial, com seus traços de multipolaridade e de rivalidade bipolar entre Estados­ Unidos e China, apenas reforça essa necessidade.

    Prefácio

    O meu livro Teerã, Ramalá e Doha trazia como subtítulo memórias da política externa ativa e altiva1. Tratei nele de três temas que, de algum modo, ilustravam uma nova atitude da diplomacia brasileira em relação à política mundial, tanto no campo político quanto no campo comercial. Várias questões que marcaram a política externa nesse período ficaram de fora, como a aproximação com países africanos, a criação de novos foros de diálogo, como o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBAS) e o BRICS2, e, sobretudo, nossos esforços em favor da integração da América do Sul. Topicamente, algumas questões foram objeto de comentários ou mesmo de narrativas específicas em meus livros anteriores3. A ausência de um tratamento mais extenso e profundo sobre a América do Sul seria difícil de explicar. A lacuna seria tanto mais grave quanto nosso relacionamento com os países em desenvolvimento da região foi motivo de especial atenção, mesmo quando estávamos envolvidos em negociações de natureza global. A integridade do Mercosul e a consolidação do processo que levaria à criação da CASA e, depois, da Unasul foram preocupações que estiveram muito presentes em nossas ações. Faltava estabelecer, especialmente, um nexo entre os nossos esforços de integração/associação e o relacionamento bilateral com os vizinhos.

    Nesse ponto, o(a) leitor(a) poderá indagar: por que América do Sul e não América Latina? A escolha da abrangência geográfica dos relacionamentos político-diplomáticos objeto desse livro não foi tarefa fácil. Historicamente, a referência ao nosso entorno teve como foco a América Latina, que incluía todos os países do continente americano abaixo do Rio Grande. Apesar da incorporação de países de fala inglesa e de uma nação que tem como idioma oficial o neerlandês ao conjunto de Estados independentes, a expressão América Latina continuou a ser de uso corrente, supostamente em função da herança cultural ibérica, que, com exceção do Haiti, seria comum à região.

    É verdade que, no ambiente das Nações Unidas, e em outros organismos internacionais, a expressão cederia lugar a uma designação mais completa, América Latina e Caribe. O GRULA, sigla utilizada para caracterizar o grupo de países em desenvolvimento do continente americano, seria substituído pelo GRULAC. O mesmo ocorreu na versão inglesa da Comissão Econômica da ONU para a região, que passou a ser conhecida pelo acrônimo ECLAC (em vez de ECLA), embora, teimosamente – ou por respeito à tradição –, os países de fala portuguesa e espanhola tenham preferido manter-se fiéis ao nome tradicional: CEPAL.

    No nosso caso, os constituintes de 1988 também preferiram a tradição à nova precisão linguística e geográfica, ao referir-se à comunidade latino-americana de nações entre os princípios norteadores do nosso relacionamento internacional. Além da tradição e da concisão, pesa na manutenção da designação original a visão de uma certa afinidade cultural entre os países colonizados pelas potências ibéricas, tolerando-se o exotismo francófono do Haiti. Sem a pretensão de aprofundar uma discussão desse aspecto, do meu ponto de vista, tendo servido como jovem diplomata na Organização dos Estados Americanos, e como embaixador em organismos multilaterais em Nova York e Genebra, sempre preferi, mesmo reconhecendo que a designação era algo pesada, referir-me a América Latina e Caribe. E fiquei feliz ao constatar que o foro criado em 2010 ganhou o C final e, em vez de CELA, foi denominado CELAC.

    Toda essa explicação parece desnecessária para esclarecer o título de um livro que, na verdade, se concentrará na América do Sul. É importante, entretanto, distinguir aquilo de que o livro não trata por opção daquilo que ele não aborda por características da própria realidade. O que quero dizer com isso? É que minha escolha não era entre América do Sul e América Latina, como poderia parecer a muitos, mas entre a primeira e América Latina e Caribe, designação que mais apropriadamente reflete a realidade geopolítica em que estamos inseridos.

    A pergunta persiste: por que, então, concentrar-me na parte meridional do continente e não no conjunto ao sul dos Estados Unidos? Quem tiver lido alguns dos meus outros livros perceberá que, sem renegar o objetivo da integração de toda a América Latina e Caribe, do ponto de vista prático, considero que nossos esforços devem passar pela união dos que geograficamente estão mais próximos uns dos outros e (revisitando o famoso dito de Porfírio Diaz) mais longe dos Estados Unidos. Só assim, lograríamos, ainda que em prazo dilatado, algum equilíbrio no continente, evitando-se a consagração da hegemonia da potência norte-americana.

    Quando, em 1993, o presidente Itamar Franco propôs a criação de uma Área de Livre Comércio Sul-americana (ALCSA), ele estava atento às limitações impostas pela realidade, que logo saltariam aos olhos de todos com a criação do NAFTA. Assim, no governo Lula, dedicamo-nos desde o início à criação de uma Comunidade Sul-americana de Nações, que, mais tarde, devidamente rebatizada­, ganharia vida jurídica com o tratado constitutivo da Unasul. Apesar da importância que atribuímos às relações com México, América Central e todo o Caribe (em particular, Cuba e Haiti), não nos parecia factível pensar em um organismo tão amplo. A própria CELAC (inicialmente CALC) só seria criada como foro – e não como instituição – depois que a Unasul já estava consolidada.

    Assim, seja em função de uma cooperação mais intensa, seja em função de problemas que a proximidade engendra, a verdade é que, de um modo geral, criou-se uma intimidade entre os líderes sul-americanos que, com algumas exceções, não chegou a existir, no mesmo nível, com os países ao norte do canal do Panamá. Era aqui, na América do Sul, que se tornava fundamental criar e desenvolver os laços de confiança, essenciais a qualquer processo de integração, respeitada a pluralidade de opções políticas entre seus componentes.

    Reconheço que essa explicação não está livre de reparos. Eu mesmo hesitei muito antes de me decidir pelo foco mais restrito na América do Sul. Fosse o autor do livro de nacionalidade que não a brasileira, possivelmente teria ele feito outra opção. A existência de dez países com os quais temos fronteiras, além de uma razoável proximidade física com as duas outras nações sul-americanas com as quais nosso território não linda diretamente, certamente influiu na minha escolha, não só enquanto autor, mas, o que é mais importante, como agente político da diplomacia brasileira. Considerações mais terra a terra, de natureza editorial, acabaram por ser determinantes. E ficou mesmo América do Sul, com a adição apenas da Caricom, cujo relacionamento conosco está muito ligado à aproximação com a Guiana e o Suriname.

    Uma anotação feita em 3 de dezembro de 2006 ilustra bem a intensidade da agenda sul-americana:

    3/12/2006 Na próxima semana, teremos intensa atividade dedicada à América do Sul. Na terça-feira, dia 5, o presidente deverá realizar reunião de vários órgãos em torno de Bolívia, Paraguai e Uruguai. No dia seguinte, a chanceler do Panamá virá conversar sobre Conselho de Segurança, para onde aquele país acaba de ser eleito, e chegarão aqui ministros venezuelanos para preparar a visita de Chávez (na suposição, mais que provável, de que vença as eleições de hoje) no dia 7. Os temas ligados à energia deverão dominar a agenda, embora talvez seja útil alguma incursão sobre questões sul-americanas, às vésperas da Cúpula de Cochabamba­4. No dia 8, oferecerei café da manhã ao candidato vitorioso no Equador, Rafael Correa. O presidente também o receberá para uma "photo-op" e lhe dará carona para a Bolívia. A expectativa é evitar ações radicais contra a Petrobras­, embora algum ajuste deva inevitavelmente ocorrer. Pouco depois de Cochabamba, visitarei a Argentina (11 e 12) antes do Conselho do Mercosul (14 e 15). Pendente ainda, por desencontro de datas, a visita que o presidente faria ao Uruguai, em parte para compensar a ausência na Cúpula Ibero-americana, rea-lizada dias antes, em Montevidéu.

    Como nos livros anteriores, não tenho a pretensão de fazer uma análise isenta. Fui participante dos processos aqui descritos e é desse ângulo que deles trato. Para isso, vali-me de anotações escritas, em geral, no calor dos acontecimentos. Embora a maior parte desses registros se refira a experiências durante o governo Lula, em várias ocasiões fui buscar antecedentes em minha primeira gestão como ministro das Relações Exteriores, no período Itamar Franco, ou em fatos que vivenciei como representante do Brasil junto às Nações Unidas, e junto aos organismos internacionais em Genebra ou, ainda, quando fui embaixador em Londres.

    Diferentemente dos textos sobre a Declaração de Teerã ou a Rodada de Doha, os acontecimentos aqui narrados e as análises e comentários a propósito deles não formam uma narrativa contínua. As anotações, que constituem, por assim dizer, o esqueleto do livro, são esparsas, com lacunas que tiveram que ser preenchidas com esforço de memória e alguma pesquisa. Para possibilitar uma leitura seletiva, país por país, tive que abrir mão de uma cronologia rígida. Ao optar por esse formato, estava plenamente consciente dos problemas que isso causaria em termos de repetições e da dificuldade de desentranhar, entre os capítulos, assuntos que envolviam mais de um país.

    Também devo advertir o(a) leitor(a) para não enfrentar esse texto volumoso com expectativas que não se cumprirão. Não se trata aqui de uma obra acadêmica, muito embora tenha me esforçado para verificar fatos e informações, que aparecem de forma incompleta nas anotações. Aspectos técnicos, como a formação do preço do gás boliviano ou a natureza mais ou menos pesada do petróleo venezuelano, sem falar de desdobramentos históricos que não pude acompanhar, não fazem parte dessa obra. No máximo, ela pode oferecer pistas para que estudiosos mais aplicados aprofundem suas pesquisas. É minha esperança que, mesmo sem constituírem uma história contínua ou uma análise exaustiva, as descrições e percepções aqui contidas permitam ao leitor formar uma ideia viva das motivações e raciocínios por trás das iniciativas e posições que assumimos.

    Por fim, outra observação metodológica. Embora eu tenha me baseado nas anotações que fiz ao longo desses anos, não posso com propriedade chamar este livro de diários. Uma anotação datada de 2004 ilustra esse ponto:

    28/10/2004 Este ‘diário’ nunca será exaustivo. Se, algum dia, quiser efetivamente escrever memórias, terei que recorrer a artigos de jornal, expedientes do Itamaraty e informações para o presidente, tais e tantos são os eventos que hoje envolvem a política externa.

    Foi exatamente o que fiz.

    Rio de Janeiro, abril de 2021.

    ARGENTINA

    Melhor do que com qualquer outro país, nosso relacionamento com a Argentina­ ilustra o ponto, assinalado no prefácio desta obra, de que a América Latina e, em particular, a América do Sul, é uma presença constante em nossas iniciativas e posicionamentos em temas da política internacional. Inversamente, e talvez por essa razão, é o que menos se presta a uma narrativa no sentido estrito da palavra. Se fosse buscar uma analogia literária ou cinematográfica, diria que, no último quarto de século, as relações Brasil-Argentina estariam mais para cenas da vida cotidiana do que para uma aventura, um drama, que dirá um thriller­. Seria preciso, talvez, voltar ao período Sarney-Alfonsín1 para, com as qualificações inerentes a qualquer processo político-diplomático, encontrar uma história com começo, meio e fim. Foi então que se deram as grandes iniciativas que resultariam no Mercosul e, talvez mais importante, na cooperação e construção de confiança em uma área sensível como a nuclear, com a ABACC2.

    Da Ciência e Tecnologia à Defesa, do Comércio às Consultas políticas, o diá-logo entre Brasília e Buenos Aires só fez crescer, mesmo quando as opiniões não coincidiam sobre um ou outro aspecto. Como lidar com as diferenças e, ao mesmo tempo, buscar uma verdadeira integração constituiu o desafio que se apresentou recorrentemente aos governos e, em especial, às chancelarias. Fosse em relação à ALCA3 ou à OMC4 no plano comercial, fosse no que tocava ao tema, sempre delicado, da ampliação do Conselho de Segurança da ONU, uma das principais missões dos ministros do exterior de ambos os países era a de evitar que divergências pontuais contaminassem um relacionamento crescentemente intenso e mutuamente proveitoso. Brasil e Argentina foram e são parceiros na criação e no aprofundamento do Mercosul, na construção da Unasul e em iniciativas como a CELAC5. Ao mesmo tempo, o comércio e os investimentos cresceram de forma exponencial, a despeito das travas e dos impulsos protecionistas de um lado e de outro.6 Somente em um período mais recente esse crescimento deu sinais de alguma fadiga. Enquanto escrevo estas linhas, sigo convencido de que a tendência é e continuará a ser de aprofundamento das relações. Sem uma integração Brasil-Argentina, não haveria Mercosul ou Unasul, nem se poderia falar de uma zona de paz e cooperação no Atlântico Sul, ou de um Conselho de Defesa Sul-Americano. Tenho plena consciência de que algumas barreiras mentais necessitam ser superadas. Mas essa constatação não diminui a certeza de um futuro compartilhado. Para voltar à metáfora cinematográfica: os episódios que são objeto das observações e comentários contidos neste capítulo são como cenas de um casamento, turbulentas, por vezes, mas sem o amargor do drama bergmaniano.

    Minhas primeiras anotações constam de uma pasta intitulada Cadernos de Londres, escritas em Genebra e na capital britânica, entre maio de 1999 e dezembro de 2002. Trata-se de um período que se inicia com minha chegada a Genebra, onde fui, pela segunda vez, o representante permanente do Brasil junto a organismos internacionais aí situados, e termina com minha partida de Londres, onde chefiei a embaixada do Brasil durante o ano de 2002.

    Os comentários e observações que constam desses cadernos foram, em geral, suscitados por algum evento da época. Muitos deles constituem reminiscências dos períodos em que fui ministro do governo Itamar Franco ou embaixador nas Nações Unidas durante o primeiro mandato e início do segundo do governo Fernando Henrique Cardoso.7 Alguns se referem a fatos e impressões de um passado mais remoto, como, por exemplo, as origens do Mercosul, cujos primeiros passos acompanhei a certa distância, no governo Sarney, entre 1985 e 1989, como assessor internacional do ministro da Ciência e Tecnologia e, já mais de perto, como diretor do Departamento Econômico do Ministério das Relações Exteriores, no governo de Fernando Collor de Mello.

    Certos temas são recorrentes nessas anotações e refletem minhas experiências como ministro de Itamar e representante permanente junto às Nações Unidas, no governo FHC. A reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas é um deles. Estavam ainda muito vivas na minha memória as discussões sobre essa difícil e interminável questão, de que participei intensamente, no grupo de trabalho criado pela Assembleia Geral pouco antes da minha chegada a Nova York, no início de 1995.8 Como o(a) leitor(a) verá, a relação com a Argentina e nossas diferenças de opinião com Buenos Aires são um aspecto central – mesmo que não dominante – dessas lembranças. Inevitavelmente, as anotações aqui reproduzidas se expandem para além do relacionamento bilateral. Impressões sobre as nuances ou mesmo discrepâncias entre a missão na ONU, que eu chefiava, e Brasília são parte importante desses relatos (ou, melhor diria, fragmentos). Referências a episódios ocorridos durante o período de convivência no CSNU (1999) ilustram as divergências e/ou matizes na posição dos dois países sobre esse importante tema da diplomacia global.

    A outra grande questão que permeia as notas diz respeito ao Mercosul e, especialmente, à discussão em torno da Tarifa Externa Comum (TEC). O debate sobre a união aduaneira do Mercosul, da qual a TEC era a base, foi muito intenso no período do governo Itamar Franco. Àquela época, visões distintas em relação à natureza do bloco marcaram meu diálogo com o ministro das Relações Exteriores Guido di Tella e com seu colega Domingo Cavallo9. Como se verá nas anotações, a diferença de concepções não se dava somente entre os países, mas também no plano interno. No caso do Brasil, elas transparecem sobretudo nas observações a propósito da atuação do nosso representante permanente junto à ALADI, o embaixador Paulo Nogueira Batista, meu amigo pessoal e ex-chefe. Novamente, digressões mais amplas sobre o próprio Mercosul e a ALCA, que então se esboçava, contextualizam os comentários mais específicos sobre nosso relacionamento bilateral com a Argentina.

    Começo aqui a transcrição das anotações dos Cadernos de Londres.

    Evitar embaraços à Argentina

    10/5/1999 Ainda memórias da ONU. Nem tudo foram glórias no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). O pior momento […] foi o voto sobre o projeto de resolução da Rússia sobre a cessação dos bombardeios na Iugoslávia­.10 O projeto surgiu em meio aos painéis do Iraque11, na fase já deliberativa sobre o relatório do painel do desarmamento. Sem me aprofundar muito, aprovei o telegrama proposto pelo Patriota12, que sugeria abstenção. O correto, a rigor, seria votar a favor da proposta, mas eu sabia que isso jamais passaria em Brasília. A abstenção garantiria um perfil diferenciado e, ao mesmo tempo, não poderíamos ser acusados de complacência com os métodos do líder iugoslavo Slobodan Milosevic­ (uma preocupação real e justificada). O telegrama saiu à noitinha. Na manhã seguinte, quando estava reunido com Gisela13, em minha casa, discutindo o que seria uma versão revisada do relatório sobre desarmamento, chamou-me o Ivan Cannabrava14. Confirmava a abstenção, apenas pedindo que não fizéssemos comentários (sobretudo referência à declaração do G-Rio, a qual o Brasil obviamente havia subscrito!) que pudessem criar embaraços à Argentina!15

    30/6/1999 Anoto alguns fatos recentes, que evocaram situações vividas anteriormente. Ainda quanto ao Iraque. Védrine16 escreveu há pouco ao Lampreia17 pedindo que o Brasil evitasse copatrocinar a resolução anglo-holandesa.18 Citou a liderança lúcida e corajosa do embaixador Celso Amorim e expressou o desejo de que continuássemos a nos pautar pela mesma linha.19 Isso terá ocorrido há pouco mais de uma semana, mas não teve efeito. O Brasil alinhou-se à Argentina­ e à Eslovênia no apoio ao projeto britânico-batavo […].

    25/8/1999 Evidentemente, o assunto [da ampliação do CSNU] é complexo, requer paciência e determinação […]. Sempre estive convencido de que o Brasil tem credenciais legítimas para ser membro permanente do Conselho de Segurança e esta é uma percepção partilhada por muitos. Nunca achei que o relacionamento com a Argentina seja um empecilho, desde que se mantenha fluidez de contatos sobre os temas em discussão no Conselho. Na verdade, o que mais me preocupa hoje é a tendência acentuada de Brasília a inclinar-se diante de pressões dos Estados Unidos, o que pode comprometer a imagem do país como pretendente a um assento permanente. Estruturalmente, porém, estou convencido de que o Brasil tenderá a posições de independência e pacifistas, em que pesem as inflexões momentâneas.

    Mãos livres para negociar

    6/9/1999 Sábado, Ana e eu fomos almoçar, a convite do Olavo e Daisy Setúbal20, num restaurante (três estrelas no Guia Michelin) à beira do Lago de Annecy. Os Ricupero21 também foram convidados. O arranjo à mesa, tanto para os drinques quanto para o almoço propriamente, foi de molde a dividir a conversa ao meio: homens para um lado, mulheres para o outro. Raras vezes a linha foi quebrada, o que me lembro ter ocorrido apenas (afora comentários sobre os sofisticados pratos que se sucederam) quando a Ana perguntou ao Setúbal o que ele achava do Mercosul, pergunta, aliás, muito genérica, que ele tratou de responder da mesma forma. A maior parte da conversa, do lado masculino, girou em torno da economia brasileira, com algumas incursões na política e no comércio internacional, sem afastar-se daquele eixo central. […] Quando se falou de Mercosul, Ricupero deu a entender que o nosso anfitrião no almoço fora o pai do projeto, em sua fase inicial de aproximação Brasil/Argentina, em 1985. Não discordo que as origens do Mercosul remontem efetivamente aos governos Sarney e Alfonsín. Como assessor especial do ministro Renato Archer22 testemunhei o desenvolvimento deste processo. Participei de uma reunião em Foz do Iguaçu, dias antes da inauguração da Ponte Tancredo Neves, em dezembro de 1985. Eu era o chefe da delegação brasileira num encontro sobre biotecnologia e tive conversas muito interessantes, inclusive sobre aproximação na área nuclear com a minha contraparte argentina, embaixador Junovski, subsecretário de Cooperação do San Martín23. Eram então os primeiros passos. Um enorme crédito cabe ao meu amigo Samuel Pinheiro Guimarães24 – inicialmente como chefe da Divisão de Integração (DECLA­, creio), depois como chefe do Departamento Econômico (DEC) do Itamaraty. (A propósito, fiquei contente de verificar outro dia o reconhecimento feito pela Gazeta­ Mercantil). Devo registrar também que, em 1991, como sucessor do Samuel na chefia do DEC, eu próprio viria a rubricar, ao final das negociações substantivas, a minuta do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul. Também assinaria, em 1994, abaixo do presidente Itamar Franco, o Protocolo de Ouro Preto, que estabeleceu a união aduaneira.25 Ao ouvir o comentário do meu colega e ex-ministro, não pude deixar de recordar, mas obviamente não mencionei, que, anos antes, como meu antecessor à frente da missão em Genebra, quando estava muito envolvido com negociações multilaterais, Ricupero se manifestara de forma algo cética (ou essa foi minha impressão) sobre a integração sub-regional. É verdade que, em anos subsequentes, ou, mais precisamente, em 1994, quando eu era chanceler e o Ricupero ministro da Fazenda, ele teve uma participação importante nas negociações que levariam à aceitação pelo Brasil do Mercosul como união aduaneira. Qualquer que tenha sido a intenção do meu amigo Rubens­, o Setúbal não pareceu dar muita atenção ao confete que lhe foi jogado. Talvez, no fundo, como bom banqueiro com os olhos voltados para os grandes centros financeiros, tenha algum desprezo pelo Mercosul!

    Quanto ao Mercosul, há vários episódios sobre os quais seria interessante escrever, especialmente as manobras do ministro da Economia e ex-chanceler argentino Domingo Cavallo. Em um primeiro momento, o objetivo era ficar de mãos livres para negociar com os Estados Unidos. Em seguida, tentou escantear Uruguai­ e Paraguai. Em ambos os casos, ocorridos durante a minha gestão no Itamaraty, o Brasil foi firme na defesa, afinal bem-sucedida, da integridade do projeto do Mercosul.

    Atrelar a economia argentina à brasileira

    8/10/1999 Conversando com o José Alfredo Graça Lima26, que está em Genebra para uma reunião da OMC, relembrei alguns momentos das negociações sobre o Mercosul. Estive muito envolvido neste processo, primeiro como diretor do Departamento Econômico (governo Collor) e depois como ministro, no governo Itamar­ Franco. Sempre achei que a aproximação Brasil-Argentina era politicamente importante. Quando assumi o Departamento Econômico, as bases políticas da aproximação Brasil-Argentina já estavam bem assentadas. Mas os desafios eram novos. Tanto Menem quanto Collor haviam embarcado em programas de liberalização acelerada, que podiam tornar os acordos entre os dois países praticamente irrelevantes. Independentemente do mérito destes processos (sobre os quais tinha dúvidas), a única forma prática de preservar o patrimônio dos acordos Brasil-Argentina era aprofundá-los, de tal modo que não perdessem sua relevância e especificidade, dentro do quadro mais amplo de abertura dos mercados. Assim, vi-me logo envolvido na negociação de uma área de livre--comércio Brasil-Argentina, com processo de desgravação tarifária automática.

    O voluntarismo característico de Menem e Collor fez com que o calendário para liberalização do comércio bilateral, inicialmente previsto para dez anos e sem uma metodologia clara, fosse reduzido para quatro, de modo que o processo de desgravação tarifária se completasse antes do término do mandato de ambos os presidentes. No caso de Collor, a história frustrou essa intenção, mas o compromisso dos dois países se manteve. Mais importante que a decisão de encurtar prazos foi a mudança de método das negociações. Passou-se das discussões setor por setor, lentas e penosas, para uma abordagem geral, que, de certa forma, dificultava a invocação de sensibilidades específicas. Essas negociações tinham, do lado argentino, um político jovem, que depois viria a ser governador de Córdoba, Juan Schiaretti. Havia morado no Brasil e trabalhara na nossa indústria automobilística. Fazia parte do grupo do então chanceler Domingo Cavallo e estava convencido da importância de atrelar a economia argentina à brasileira.27 O contato era muito informal e amistoso: Schiaretti gostava de utilizar expressões brasileiras, algumas um pouco fora de moda, como meu chapa. Em poucos meses chegamos à conclusão sobre métodos e prazos, além das exceções (que também deveriam ser reduzidas de forma progressiva e linear), o que possibilitou que, em sua primeira viagem à Argentina, Collor assinasse com Menem o documento que traçava as diretrizes básicas da área de livre-comércio. Posteriormente, o resultado de todas essas negociações, mais as concessões preexistentes, foi incorporado a um acordo, sob a égide da ALADI28. Os argentinos, utilizando o jargão brasileiro, passaram a referir-se a este acordo (que veio a ser o Acordo de Complementação Econômica ou ACE-14) como o acordão (que pronunciavam acordáo).

    As negociações bilaterais entre Brasil e Argentina foram atropeladas, não sei se intencionalmente ou não, pela Iniciativa para as Américas, lançada pelo presidente George H. W. Bush. Curiosamente, em processo que descrevi, com algum detalhe, em um artigo escrito juntamente com uma jovem assessora29, a Iniciativa Bush […] não só obrigou a uma maior coordenação Brasil-Argentina como a estendeu, por peripécias que não cabe recordar aqui, a Uruguai e Paraguai […]. Foi já na discussão 4+1 (i.e, os quatro que vieram a constituir o Mercosul mais os Estados Unidos) e, em parte, como resultado da necessidade de coordenar posições frente às demandas de Washington que a ideia da Tarifa Externa Comum do Mercosul se consolidou. Assim, a Iniciativa para as Américas, paradoxalmente e por reação, terminou por acelerar a criação do Mercosul, cuja existência (e nome!) se foi conformando nas discussões entre os quatro, que foram surpreendentemente rápidas. Como negociador-chefe, pelo Brasil, assinei o telegrama que deu por concluídas as negociações e rubriquei a minuta do texto, que viria a ser assinado por presidentes e ministros, em Assunção30.

    Abandono de lastro

    13/10/1999 […] No ano e meio em que estive à frente do Itamaraty, no governo Itamar Franco,31 a consolidação do Mercosul foi uma das prioridades da diplomacia brasileira. Acreditava e continuo a acreditar que, apesar das limitações e possíveis distorções, o Mercosul é política e economicamente importante. As razões são bastante evidentes. Talvez a principal seja a de reforçar o peso econômico e a capacidade negociadora frente a outros países e blocos. […] O engajamento em uma empreitada complexa e ambiciosa certamente aumentaria o respeito com que nossos países seriam vistos por outros parceiros. Por este motivo, em face das tentativas argentinas (sobretudo do ministro da Economia Domingo Cavallo) de dar um status inferior32 ao Paraguai e ao Uruguai, sustentei a necessidade de manter o perfil do bloco com os quatro países e, se possível, ampliá-lo (foi durante a minha gestão como ministro que o presidente Itamar lançaria a ideia da ALCSA33, em uma reunião do Grupo do Rio34 em Santiago, em outubro de 1993).

    Além do enorme labor técnico e das negociações específicas, houve dois ou três momentos em que senti que a construção da união aduaneira, base do mercado comum, estava ameaçada. Já me referi às tentativas de Cavallo de estabelecer um Mercosul de duas velocidades, com o Paraguai e Uruguai fora da União Aduaneira­. A proposta foi apresentada por Cavallo (com Di Tella se mantendo silencioso quase o tempo todo) em reunião em São Paulo,35 semanas antes da Cúpula de Ouro Preto. Não tenho clareza absoluta dos motivos que levaram a Argentina (e, em particular, Cavallo) a propor esse abandono de lastro, em momento tão tardio do processo. É bem verdade que as negociações com uruguaios e paraguaios (por motivos diversos) eram frequentemente penosas, com os dois explorando a condição de sócios mais fracos. Embora compartilhasse, até certo ponto, a preocupação de Cavallo, eu percebia a importância, em termos de credibilidade internacional, de um projeto plurinacional. Em suma, politicamente, eu via um valor agregado de um Mercosul com quatro membros plenos em relação a uma união que envolvesse somente Brasil e Argentina. Na reunião de São Paulo se discutiram outros aspectos, como a compatibilização dos regimes automotivos, que ficaram mais a cargo do Ciro Gomes e do Winston Fritsch. Mas, na questão política, obviamente cabia a mim conduzir a discussão. Fui muito firme e, aparentemente, convincente, pois Cavallo acabou cedendo. A Chancelaria argentina, a começar por Di Tella, não compartilhava a mesma resistência do ministro da Economia em relação aos dois pequenos sócios. Alguns anos mais tarde, em um jantar em Nova York, no restaurante Trois Jeans, próximo à residência oficial do embaixador do Brasil, Winston Fritsch me diria ter ficado impressionado com a minha dialética.

    A idiossincrasia de Cavallo em relação a Uruguai e Paraguai não foi a principal ameaça que pesou sobre o Mercosul nos dezoito meses da minha gestão como ministro. Uma outra questão mais fundamental foi objeto de permanente contenda entre Brasil e Argentina (esta sempre mais em decorrência das posições do ministro da Economia do que das do San Martín): tratava-se da discussão em torno da Tarifa Externa Comum, prevista no Tratado de Assunção e base da união aduaneira. Por trás dessa discussão, havia a ambiguidade argentina face aos acenos de Washington de estender o NAFTA36 a outros países da região de forma seletiva. A questão era complexa por vários motivos. De um lado, havia a percepção de que o Brasil era ou poderia ser contra o NAFTA e, por essa razão, a Argentina­ queria manter as mãos livres. Numa época de euforia liberalizante em todo o mundo (e certamente na Argentina), a imagem de um país amarrado a um passado protecionista não jogava a nosso favor.

    De minha parte, sempre achei discutíveis os motivos da Argentina em interessar-se tanto pelo NAFTA, já que a economia do nosso vizinho é, em larga medida, concorrente da norte-americana e visto que o nosso mercado, mais próximo e mais complementar, deveria ser muito mais atraente. A explicação para essa aparente contradição, segundo deduzi de uma conversa com o chanceler Di Tella, em Marraquexe por ocasião da conclusão da Rodada Uruguai em 1994, estaria no desejo de Buenos Aires de obter um selo de qualidade para sua política econômica e de consolidar ("lock in", no jargão anglo-saxão, dominante na área econômica) as reformas introduzidas por Cavallo.

    Outro fator tornava as discussões sobre esse tema ainda mais complexas: a existência no Brasil de setores importantes no Itamaraty – e possivelmente na sociedade – que viam na perspectiva da união aduaneira uma manobra dos liberais para aprofundar a abertura iniciada no governo Collor, consolidando tarifas mais baixas do que as negociadas no âmbito multilateral37 (i.e. na Rodada Uruguai do GATT). O principal expoente desta tese era uma pessoa por quem eu tinha muita admiração e respeito (e que, no início da minha carreira, fora meu chefe): o embaixador Paulo Nogueira Batista.

    Cavallo e Batista, por motivos distintos ou mesmo opostos, defendiam o desquite amigável. Enquanto o argentino buscava a liberdade de abrir-se mais completamente, se não ao mundo, pelo menos aos norte-americanos, o brasileiro queria flexibilidade para que a indústria brasileira pudesse gozar de maior proteção tarifária. Em vários momentos, tive que lidar com este duplo desafio e houve mesmo reuniões em que Cavallo e Batista se aliaram, contrariando as posições das respectivas chancelarias.38

    O desafio Cavallo foi contornado principalmente por meio de uma manobra diplomática, que consistiu numa carta do presidente Itamar Franco aos chefes de governo dos três sócios, na qual dizia essencialmente duas coisas: (1) o Brasil não se opunha ao NAFTA e (2) não aceitaria que os parceiros do Mercosul negociassem separadamente. Implicitamente, o Brasil afirmava que se não houvesse Tarifa­ Externa Comum (e, portanto, política comercial externa coordenada) tampouco haveria área de livre-comércio. Quanto a essas duas mensagens, é preciso compreender (pelos motivos a que aludi antes e que tinham que ver com a percepção sobre nossa atitude) que a primeira era indispensável para a segunda. Em outras palavras, dado o clima liberalizante da época, mesmo após a substituição de Collor por Itamar, era difícil para o Brasil impor uma disciplina integracionista baseada, entre outras coisas, em uma Tarifa Externa Comum, se não admitisse a hipótese de uma negociação com os Estados Unidos. O recado foi entendido e os argentinos, após algum tempo, sossegaram os seus ímpetos pró-NAFTA e antiunião aduaneira. O outro desafio (o do Paulo Nogueira Batista) era intelectualmente mais complexo, inclusive do ponto de vista das minhas próprias ideias e convicções.

    ALCSA, TEC e PNB

    39

    15/10/1999 Paulo Nogueira Batista fora um dos meus primeiros chefes, no Rio de Janeiro. À época, como conselheiro, cargo intermediário na hierarquia diplomática, Batista dirigia a área de planejamento político do Itamaraty. Isso ocorreu ao tempo do ministro Magalhães Pinto40, quando o governo militar ensaiou alguns passos na direção de maior autonomia. O secretário-geral do MRE era Sergio Corrêa da Costa, homem de ambição e aberto a ideias que pudessem render dividendos políticos. Tinha também um real substrato nacionalista e, apesar das limitações da época, era politicamente um democrata. Era genro do Oswaldo Aranha, o que o vinculava a correntes políticas menos identificadas com a "pensée unique" do período Castello/Juracy Magalhães. Durante um tempo, houve um esboço de retorno, ainda que parcial e limitado, a certas ideias que haviam inspirado a política externa independente, anterior ao golpe de 1964.

    O fato político-diplomático mais importante deste período foi a decisão brasileira de não assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (e negociar o Tratado de Tlatelolco, de uma forma que garantia, na prática, a possibilidade de uma postergação indefinida de sua vigência). Três diplomatas jovens eram vistos como tendo influência nesta tentativa de resgate da política externa: Ovidio Melo, que era então o chefe de gabinete do secretário-geral (e que viria a ser instrumental, já no período Geisel/Silveira, no reconhecimento de Angola); Celso Diniz, chefe de gabinete do ministro; e Paulo Nogueira Batista, secretário de planejamento político. Eu havia ido trabalhar com Paulo a convite de Samuel Pinheiro Guimarães. Depois de haver sido o idealizador e criador da Nuclebrás, PNB foi embaixador em Genebra, a cargo das negociações comerciais multilaterais, a chamada Rodada Uruguai. À época, além das negociações no GATT, Batista tinha que enfrentar as pressões norte-americanas contra a política nacional de informática, que se faziam sentir tanto em Genebra quanto diretamente em Brasília, onde eu era assessor do Renato Archer no recém-criado Ministério da Ciência e Tecnologia. No início do Governo Collor, embora por pouco tempo, coincidimos eu no DEC e Paulo Nogueira Batista na missão do Brasil junto à ONU. Justamente porque o tempo foi tão curto, alegrei-me ao ver em seu telegrama de despedida, entre os vários agradecimentos, uma referência generosa a mim. Durante os anos seguintes, continuamos a manter contato em seminários, mesas-redondas etc. Já nos meus últimos dias de embaixador em Genebra, sugeri o nome do Paulo Nogueira para o cargo de vice-diretor-geral do GATT, manobra que tentei, sem sucesso, completar a partir de Brasília, como secretário-geral do Itamaraty, cargo para o qual havia sido convidado por José Aparecido de Oliveira. Todo este retrospecto é para ilustrar que não só tinha relações pessoais muito amistosas com o embaixador Batista, mas também muitas afinidades de pensamento. Por isso, as críticas que Paulo fazia sobre o Mercosul não podiam ser descartadas com ligeireza. Além disso, era embaixador na ALADI, posição que lhe conferia uma natural autoridade para tratar do tema.

    Olhando para trás e tentando analisar as forças históricas que poderiam estar em jogo, tenho dificuldade em identificar um setor ou corrente de opinião que o embaixador Batista pudesse estar representando. A própria esquerda, que era contra a liberalização em geral, não se opusera ao Mercosul, possivelmente porque a ideia de integração latino-americana sempre foi simpática aos idealistas de vários matizes. A indústria e parte da agricultura, que haviam expressado preocupação­ no início do processo, eram agora entusiastas do Mercosul.41 Nos meios acadêmicos, afora críticas superficiais, tampouco se discerniam sentimentos contrários ao Mercosul, que, àquela altura, praticamente se tornara uma unanimidade nacional. Assim, a luta persistente do embaixador Batista contra a união aduaneira era uma batalha quase escoteira, baseada sobretudo na sua energia pessoal e na sua grande capacidade de argumentação. Tentarei resumir brevemente as suas críticas, bem como a minha posição, que acabou por prevalecer, e, também, algumas circunstâncias daquele momento (lançamento da ALCSA, discussão da TEC, aparecimento do NAFTA no cenário).

    Não acha que o embaixador é um pouco otimista?

    18/10/1999 Creio que a principal objeção do meu amigo ao Mercosul estava ligada à percepção de que os setores do governo que mais defendiam o aprofundamento da liberalização pretendiam valer-se do Mercosul para levar adiante suas teses. Com efeito, as negociações intra-Mercosul para a Tarifa Externa Comum, sobretudo em áreas como bens de capital e produtos de informática, provavelmente implicariam uma redução adicional das tarifas, abaixo do patamar praticado no Brasil e das tarifas consolidadas na OMC. Embora o Brasil tenha lutado e, em boa medida, conseguido manter as tarifas para estes produtos em níveis elevados, comparativamente às demais linhas tarifárias, na essência, a tese do Paulo era verdadeira. No momento em que estes debates estiveram mais acesos, pessoas como o Winston Fritsch, secretário de Política Econômica, e outros integrantes da equipe econômica certamente tinham esta intenção liberalizante. Além disso, é possível que, do ponto de vista político, o embaixador Batista identificasse o Mercosul com o governo Collor e estendesse a ele a avaliação negativa sobre o ex-presidente. Isso era, a meu ver, uma simplificação, já que as raízes do Mercosul remontavam ao processo de integração iniciado no governo Sarney, com um alto conteúdo político. A liberalização promovida no período Collor era de natureza muito mais ampla e, a rigor, independia do Mercosul.

    Cerca de um mês antes da reunião presidencial de Buenos Aires (que se realizou em julho de 1994), onde as bases da Tarifa Externa Comum deveriam ser finalmente lançadas, Paulo me enviou um memorando em que sugeria que redirecionássemos nossa estratégia. Pelo que soube, uma cópia do documento chegou também ao presidente Itamar, que tinha desenvolvido forte admiração pelo embaixador­ Batista, por ocasião de uma CPI sobre energia nuclear. Itamar era em essência um nacionalista (ele se dizia um trabalhista, seguidor de Alberto Pasqualini­42). Sentia uma verdadeira alergia às teses neoliberais e era com certo amargor que cedia às posições da área econômica do seu próprio governo. O fato é que Itamar mostrou-se sensível aos argumentos do nosso embaixador na ALADI e pediu-me para convocar uma reunião, a ser presidida por ele, Itamar, e que, além de mim e do Rubens Ricupero (então ministro da Fazenda), contaria com a presença dos embaixadores nos nossos sócios do Mercosul e do próprio Batista, então, nosso representante na ALADI. Fiz preceder a reunião no Planalto de outra, no meu gabinete, com essencialmente os mesmos personagens (afora, como é óbvio, o presidente). Já não me recordo em detalhe do que foi dito. Eu acabara de voltar de uma longa viagem, se não me engano à Índia e à China, e havia, apenas na véspera, passado os olhos em algumas notas que me foram trazidas pelo subsecretário para Assuntos Econômicos, o embaixador Denot­ Medeiros. No encontro no meu gabinete, as posições não se alteraram. Fui para a reunião no Planalto com grande expectativa, já que uma eventual decisão do presidente contrária à minha orientação me deixaria em situação extremamente delicada, sem falar no fato de que poria em risco um projeto no qual estivera pessoalmente empenhado, em várias de suas fases. Sabia que teria o apoio dos outros três embaixadores (Marcos Azambuja, em Buenos Aires; Alberto da Costa e Silva, em Assunção; e Renato Prado Guimarães, em Montevidéu), mas isso poderia não ser suficiente. A posição de Ricupero tampouco era garantida, dadas as críticas que, no passado, fizera ao Mercosul (por motivos distintos aos do Paulo). Sua atuação no Ministério da Fazenda fora até o momento discreta sobre este tema. A reunião no gabinete do presidente realizou-se num clima de indisfarçável tensão, embora sem afastar-se das normas da cordialidade. Eu falei em primeiro lugar. Itamar fez questão de ouvir a todos os presentes. Ricupero defenderia posições semelhantes às minhas sobre a importância do Mercosul (o que era uma ajuda considerável). Após ouvir atentamente uma eloquente intervenção do embaixador Batista, bem como minha resposta, Itamar encerrou a reunião com poucas palavras: Vamos seguir a linha exposta pelo chanceler. Para mim foi, mais que uma vitória, um grande alívio. O aspecto político do Mercosul e seu significado de longo prazo, inclusive em relação ao contexto hemisférico, transcendiam, a meu ver, as questões tarifárias. Paulo lutou e perdeu, apesar do apreço que lhe tinha o presidente. Duas ou três semanas depois, quando negociávamos com a Argentina as bases do que viria a ser a TEC, em uma fazenda nas cercanias de Buenos Aires (Vila Maria), em meio a chuvas torrenciais que alagaram o terreno­ em volta da casa principal, tive a notícia de que Paulo Nogueira Batista falecera, vítima de um derrame, em sua residência em São Paulo. Foi um grande choque, que não consegui dissociar inteiramente dos embates doutrinários que tínhamos tido nos últimos meses. Consolava-me o fato de que, apesar das divergências, estivéramos juntos em várias batalhas. Mesmo recentemente, Paulo fora fundamental na elaboração de uma proposta para criação de uma Área Sul-americana de Livre Comércio (ALCSA), detalhando aspectos da ideia que fora lançada por Itamar em Santiago, no Grupo do Rio, e retomada por mim no foro da ALADI.

    Uma nota mais leve sobre a reunião no Planalto tem a ver com a intervenção do Marcos Azambuja, embaixador do Brasil em Buenos Aires, que anteriormente fora secretário-geral do Itamaraty, sob cujas ordens eu trabalhara. Com o seu jeito flamejante, mas bastante simplificador, Marcos defendeu a tese de que tudo o que a Argentina queria era ser o Canadá do Brasil. O senhor não acha que o embaixador Azambuja é um pouco otimista?, perguntou-me Itamar, quando ficamos a sós, ao final da reunião.

    A vigésima sétima província

    Como já referi, as duas questões em que Brasil e Argentina se haviam colocado em campos diferentes, se não opostos, foram a da natureza do Mercosul, resolvida da forma que expus, e a da reforma do Conselho de Segurança. Sobre esta, as divergências perdurariam e tomaram, em algum momento, contornos desagradáveis. Recordo-me que, na minha chegada a Nova York, após o período como chanceler no governo Itamar Franco, uma das primeiras providências que tomei, seguindo a boa prática diplomática, foi a de visitar meus colegas de posto. Comecei, como de rigor, pelo representante permanente da Argentina, Emilio Cárdenas, um homem inteligente e abrasivo. Era uma visita de cortesia, mas Cárdenas foi logo me dizendo que não esperasse o apoio da Argentina às pretensões do Brasil. No ano anterior, Cárdenas já havia reagido de forma ácida à declaração do presidente da Venezuela Rafael Caldera, que ousara apoiar o pleito brasileiro. Em uma referência ao número de estados da federação brasileira, disse, a propósito da Venezuela: é a vigésima sétima província!.

    12/4/2000 Ontem preparei, com o auxílio do Antonio Patriota, um longo telegrama destinado ao secretário-geral43, que acabei enviando sob a forma de fax pessoal. O objetivo era situar as declarações do embaixador Richard Holbrooke44 dentro da evolução do tema da reforma do CSNU, ressaltando sua importância.45 Fiz também alguns comentários sobre o conteúdo da reforma, usando o projeto Razali46 como base, bem como sobre questões de tática. Recordei os apoios que já tivemos na América Latina e o memorando que preparamos antes da reunião do Grupo do Rio, de 1997, em que manifestávamos a intenção de informar oportunamente que estaríamos dispostos a assumir as responsabilidades de membro permanente.

    […] A realidade é sempre cheia de rebates falsos. Nenhuma evolução é linear. O problema é que a atitude de Brasília sempre foi ambivalente e, de certa forma, oportunista em relação a esse tema nos últimos anos. O pano de fundo é que a questão não é prioritária (o próprio FHC chegou a dizer que era coisa do Itamar e do Celso Amorim), cria problemas com os vizinhos (Argentina etc.).

    Reproduzo, abaixo, trecho, relativo à América Latina, do fax enviado ao secretário-geral do MRE, mencionado na nota anterior, conforme transcrito em minhas anotações:

    18/4/2000 Não devemos esquecer, tampouco, que, em dado momento, uma boa parcela dos países da região nos manifestou seu apoio. Venezuela e Paraguai o fizeram explicitamente do plenário da assembleia geral. Peru, em nível presidencial, em Brasília. Chile, no mesmo nível em Santiago. O Equador, no Grupo de Trabalho. A Bolívia, em conversas bilaterais. O embaixador Bernd Niehaus, da Costa Rica, também revelaria inclinação a nosso favor, bem como o embaixador de El Salvador em NY. Suas posições no GT, sem citar o Brasil, foram coerentes com tais indicações. Cuba apoia a Índia e defende membro permanente latino-americano. Mesmo a Colômbia não se sente atraída pela ideia de uma rotação regional permanente47 da qual ela pressente que seria excluída em benefício de México e Argentina […]. A Guiana, que representa a voz da Caricom neste debate, também é contrária à rotação regional e prefere um único membro permanente da região, dando a entender que só poderia ser o Brasil.

    As resistências mexicana e argentina não devem ser superdimensionadas. […] na Argentina, pelo que posso julgar, não pareceria haver uma resistência unânime ao Brasil como há na Itália em relação à Alemanha (o nível de objeção paquistanesa à Índia não poderia sequer ser evocado neste contexto). […] [Quanto à Argentina,] houve quem48 dissesse que, antes de vetar o Brasil, a Argentina deveria assegurar-se que defendêssemos interesses comuns e não estritamente nacionais. Quando circulamos um "non-paper" aos países do Grupo do Rio antes da Cúpula de Assunção e deixamos claras nossas intenções sobre o assunto, nos comprometemos a sempre levar em consideração os interesses da região. O propósito de coordenação contínua com nossos vizinhos, e sobretudo com os argentinos, poderia ser reiterado e, se necessário, tornado mais específico […].

    Cada um pelo seu lado

    A frase acima consta de uma nota feita em março de 2001. Relendo-a agora, fico na dúvida se expressa um pensamento meu ou se era algo que meu eminente interlocutor no diálogo referido abaixo haveria dito. Sem certeza, inclino-me pela segunda hipótese.

    29/3/2001 Falei ontem à noite com o Fernando Henrique. Mais para não perder o hábito. Relatei algumas das iniciativas e atividades que temos desenvolvido aqui: OIT, direitos humanos (resoluções sobre incompatibilidade de racismo e democracia; preços de medicamentos). Mas meu objetivo principal era tocar na ALCA e Mercosul. [O presidente] concordou, implicitamente, que deve haver debate público sobre a ALCA (a decisão tem que ser da sociedade). Disse que falaria nesse sentido em Washington. Também sobre Mercosul, concordamos com os riscos, sobretudo em função da convicção de Cavallo de que seria preferível voltarmos a uma área de livre-comércio. Lembrei-lhe rapidamente a minha experiência sobre o assunto no governo Itamar. Hoje, não sei que caminho se desejará tomar. Senti alguma flexibilidade do presidente, na linha Serra (que no fundo é a mesma que Paulo Nogueira Batista defendia): se for assim, será cada um pelo seu lado. É difícil ter certeza do que é melhor para o Brasil.49 Teremos mais liberdade­, mas menos capacidade de arregimentação. Conseguiremos compensar a perda do Mercosul com uma renovação da iniciativa América do Sul (que não percebo estar ocorrendo, de resto)? Independentemente de considerações puramente nacionais50, o esgarçamento das relações econômicas Brasil-Argentina (uma área de livre-comércio representa menos compromisso do que uma união aduaneira) não se refletirá em outros aspectos do relacionamento? (Este último ponto foi corretamente levantado por Ricupero em conversa que tivemos recentemente.)

    O ponto de equilíbrio

    8/1/2002 Enquanto o Reino Unido assiste, com sentimentos ambíguos, ao bem-sucedido lançamento do Euro, o Brasil vive de perto o drama argentino51. Entre outros, o "Lord Mayor52 perguntou-me sobre os efeitos para o Mercosul. Respondi-lhe que, se a Argentina conseguir atravessar a crise sem uma convulsão ainda maior, a queda na realidade pode ter efeitos benéficos, desde que o Brasil saiba conduzir as relações com grandeza. Creio que esta é também a visão do presidente e do Celso Lafer. Penso que os antiargentinos" têm cada vez menos influência, mas haverá pressões por causa do impacto da desvalorização sobre o comércio etc. Com uma situação muito difícil ao norte (Venezuela53) e outra ao sul (Argentina), o Brasil tem que ser o ponto de equilíbrio e o fator de dinamismo da América do Sul.

    No meio da crise argentina, morreu Guido Di Tella, que foi chanceler por cerca de sete ou oito anos, inclusive durante o meu curto período como ministro. Sempre mantive com Guido um bom diálogo, mesmo em questões a respeito das quais tínhamos posições divergentes, como a reforma do Conselho de Segurança. No que toca ao Mercosul, Guido, embora cedendo por vezes às pressões de Cavallo (mas voltando atrás quando sentia firmeza de nossa parte), foi antes um aliado do que um adversário. Era um homem intelectualmente sofisticado, capaz de entender motivações psicológicas complexas (inclusive do seu próprio país) e dar os descontos devidos a certas atitudes mais rígidas de alguns compatriotas. Mas sempre me pareceu excessivamente sensível às pressões e impulsos pouco previsíveis de Menem e mesmo do seu colega da área econômica e antecessor na chancelaria, Domingo Cavallo.

    Tienen vocación de potencia

    12/1/2002 A morte de Di Tella me faz lembrar alguns episódios das relações Brasil-Argentina durante a minha gestão como ministro brasileiro. Alguns já registrei aqui, como as tentativas de Cavallo de impedir a adoção da TEC ou a ideia de deixar Paraguai e Uruguai de fora da união aduaneira. Não sei se mencionei, entretanto, a posição hesitante de Guido entre o que seria a posição brasileira (e possivelmente de boa parte do San Martín) e a obstinação de Cavallo. Uma das vezes que Guido me procurou com essa mensagem (na ocasião, o pretexto ou razão – quem sabe? – era a de que o Brasil era contra o NAFTA) ocorreu em Marraquexe. Discutimos brevemente o tema, ao qual ficamos de voltar mais tarde. Mas logo, da parte do Brasil, tratei de abortar essas conversas com a carta de Itamar Franco aos três outros presidentes do Mercosul, mencionada em anotação anterior.

    Em Marraquexe, Guido e eu tivemos uma longa conversa sobre a ampliação do Conselho de Segurança. Meu colega portenho chegou perto de admitir que o Brasil era o candidato natural ("ustedes tienen vocación de potencia). Logo tratou de acrescentar que para a Argentina seria um trauma psicológico [sic] ver tal situação consolidada com a nossa participação no Conselho de Segurança, como membro permanente. De outra feita, durante banquete oferecido pelo presidente Itamar Franco aos chefes de Estado do Grupo do Rio, no velho Palácio Itamaraty do Rio, em setembro de 1994, Guido, dizendo-se impressionado pela suntuosidade das instalações (o jantar foi na biblioteca, amplo espaço de estilo neoclássico), afirmou que agora podia entender a nossa preocupação com a grandeur. Várias vezes mais tarde, inclusive quando eu já não estava no ministério, Guido (usando uma expressão minha da ocasião) se referiu à nossa conversa psicanalítica".54

    Temem mais as eleições no Brasil

    As anotações que se seguem se afastam do tom de reminiscência. Constituem comentários esparsos sobre a situação da Argentina, em meio à crise política e econômica e às repercussões no Reino Unido. Em uma delas, trato apenas do tema do Conselho de Segurança, sem referência ao nosso vizinho; deixo-a aqui por ser um tema que, como já ficou claro, sempre esteve presente no relacionamento bilateral.

    28/1/2002 Ontem, dois encontros interessantes. O primeiro foi com Peter Sutherland­, que foi escolhido diretor-geral do GATT/OMC nos meus últimos dias de Genebra (primeira passagem) e hoje é, entre outras coisas, presidente do conselho da British Petroleum e CEO da Goldman Sachs. Peter convidou-me para um almoço na sede da BP, um edifício que fica numa praça imponente, de desenho circular. O ambiente interno é muito moderno, mas a sala privada onde almoçamos (em companhia também de um coordenador para a América Latina) era surpreendentemente pequena, o que não impediu que o anfitrião, ao final da refeição, tirasse boas baforadas do seu charuto. Conversamos sobre Argentina, perspectivas eleitorais no Brasil, Oriente Médio etc. Peter Sutherland é um homem muito inteligente e pragmático. No que toca à Argentina, sua visão não foge muito do paradigma dos investidores internacionais, em especial dos banqueiros, que se sentem ameaçados pelas medidas populistas de Duhalde. 55

    1/2/2002 Ontem reuni um grupo de analistas brasileiros que trabalham na City. Todos gostariam que o Brasil abrisse mais sua economia. Nesse contexto, alguns salientaram a importância de uma adesão plena ao projeto da ALCA, embora eles próprios não saibam explicar quais os benefícios, para além das convicções liberalizantes. Curiosamente, em geral, pareceram temer mais as eleições no Brasil do que a crise na Argentina.

    2/2/2002 Hoje pela manhã, o rádio noticia novos protestos na Argentina, no bojo de uma crise entre o executivo e o judiciário sobre os depósitos bancários. A grita agora é contra os políticos em geral. Mas qual a alternativa de poder? Sem dúvida, as coisas se complicam.

    9/2/2002 Há dois ou três dias, o presidente fez um longo discurso durante reunião de gabinete. Falou das vitórias na OMC, das crescentes batalhas que tivemos­ que travar. Mencionou, também, o espaço econômico da América do Sul. Senti-me gratificado, independentemente da ausência de reconhecimento pessoal. É também a sensação que tenho com as repetidas referências à necessidade de reformar o CSNU.

    A anotação seguinte se refere ao episódio Bustani. À época, o embaixador brasileiro José Maurício Bustani era diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPAQ). Sob sua direção, os inspetores daquela agência haviam concluído que não existiam armas químicas em poder de Saddam Hussein no Iraque, retirando um dos pretextos – possivelmente o principal – que Washington desejava usar para justificar sua ação armada unilateral. Bustani passou a ser visto como uma bête noire, que tinha que ser removido do cargo. No comando da operação, estava o famigerado John Bolton, o mesmo que viria a ser o representante da linha dura no governo de Donald Trump. A reprodução da anotação aqui deve-se à referência à Argentina.

    21/3/2002 Ontem, alguns jornalistas me ligaram sobre a situação do embaixador José Bustani. Dei um background geral ao Reale Jr., do Estado de S. Paulo. Deborah­ Berlinck, do Globo (Genebra), lembrava-se do silent veto que os americanos aplicaram­ ao meu nome para a UNMOVIC56 e obviamente fez um paralelo. Procurei explicar semelhanças e diferenças, mas no fundo tudo tem a ver com a onipotência dos Estados Unidos. Chamei o Michel Roccard57 sobre o assunto, com a esperança de que ele possa influir junto ao governo francês. Ficou de fazer algo.

    Está claro, entretanto, que os dados estão lançados. Os Estados Unidos mobilizaram apoios ou, quando menos, abstenções, como parece ser o caso da Argentina. A propósito, telefonei para o ministro Lafer, a quem tentei mostrar que, se não fôssemos capazes de obter sequer a solidariedade dos nossos vizinhos, ficaria patente que as gestões encomendadas às embaixadas brasileiras não passavam de mera formalidade, sem real empenho, e que, na verdade, a cabeça do Bustani estava sendo entregue na bandeja para os Estados Unidos.

    Queimar meus barcos

    Aqui terminam minhas anotações dos Cadernos de Londres e normalmente deveriam começar os registros sobre os fatos ocorridos durante a minha gestão como ministro do presidente Lula. Conforme expliquei no prefácio às Breves narrativas diplomáticas, no início do governo tais anotações foram espaçadas no tempo e extremamente sintéticas. Muitas vezes, meras indicações de intenções ou de acontecimentos relevantes. Vários processos importantes não foram sequer mencionados. No total, minhas notas se espalham por treze cadernos. O primeiro deles cobre o período que vai de janeiro de 2003 até o primeiro quadrimestre de 2005. É praticamente omisso sobre o que ocorreu nos três primeiros semestres do governo. Para preencher essa lacuna, sem afastar-me excessivamente do formato dos diários, recorri à memória (e também à minha agenda).

    Como já era tradição, minha primeira visita bilateral como chanceler foi à Argentina, no início de fevereiro. Antes disso, havia participado da posse do presidente do Equador, acompanhando o presidente Lula (ocasião em que foi criado o Grupo de Amigos da Venezuela)58. Eu fora também à sede da OEA, em Washington, para formalizar o Grupo de Amigos. Olhando minha agenda da época, verifico que o próprio presidente da Argentina, Eduardo Duhalde, havia estado no Brasil em 14 de janeiro, na véspera de nossa viagem a Quito, para a posse de Lucio Gutiérrez. Embora a programação tenha sido extensa, confesso não guardar nenhuma lembrança específica da visita de Duhalde. Minha viagem de 5 de fevereiro a Buenos Aires não foi meramente um gesto simbólico para sublinhar a prioridade da relação bilateral. Era um momento crucial das negociações da ALCA e a Argentina, à época, apesar da simpatia de Duhalde em relação a Lula e ao Brasil, e da inclinação que viria a revelar em favor da integração sul-americana, seguia nesse tema uma posição que guardava resquícios da era Menem-Cavallo. Garantir uma sintonia maior com nosso principal sócio no Mercosul era fundamental. Recordo-me que tomei um jatinho em Brasília, provavelmente um HS, com destino inicial a São Paulo. Aí me reuni com lideranças sindicais na sede da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e à noite participei de um encontro com intelectuais, organizado por Paulo Vannuchi59. Naqueles primeiros dias de governo, reuniões como essas serviam, entre outros propósito­s, a fortalecer minha determinação em seguir uma linha firme nas negociações da ALCA60.

    Na Argentina, teria uma agenda com vários encontros, que incluíram almoço com o presidente e encontros com o ministro Carlos Rukauf61 e com o vice-ministro, encarregado de comércio exterior, Martín Redrado. Em Breves narrativas diplomáticas, detalho como, valendo-me de um encontro empresarial que precedeu às reuniões com autoridades, apresentei publicamente a decisão do Brasil de buscar uma redefinição dos termos em que a ALCA vinha sendo negociada. Fiz isso intencionalmente para, como dizem os anglo-saxões, queimar meus barcos. Recordo que a entrevista à imprensa que concedi juntamente com o ministro argentino foi cercada de grande expectativa e que minhas posições bastante firmes não foram contrariadas pelo colega portenho.62

    Não foi um fato menor o presidente Duhalde, respondendo a meu pedido de entrevista de cortesia, me ter recebido para um almoço com vários de seus ministros e assessores. Aproveitei a ocasião para expor nossa visão sobre a ALCA. Fiquei com a impressão de que o presidente argentino não discordava. Saliento esses fatos porque, naquelas semanas

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