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O contágio sagrado: história natural da superstição
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O contágio sagrado: história natural da superstição
E-book278 páginas4 horas

O contágio sagrado: história natural da superstição

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Sobre este e-book

"Esta obra, uma das mais profundas e esclarecedoras já publicadas sobre religião, apareceu na Inglaterra em 1709 sem o nome do autor, em um volume in 8º. Acreditou-se, no entanto, ter-se reconhecido nela o estilo e os princípios do SR. JEAN TRENCHARD, homem de destaque no partido Whig por seu esclarecimento, sua probidade e, sobretudo, por seu amor à liberdade". Nesta obra, Holbach aborda os perigos dos dogmas religiosos, instrumentos de tirania. O filósofo desenvolveu esta reflexão em torna da ideia de que as religiões e tudo que está ligado a elas acorrentam o ser humano a um mundo de imbecilidades. O texto aqui traduzido, de 1768, é primordial para compreendermos o pensamento ateu materialista de Holbach. Trata-se de leitura importante para entendermos os meandros das ações religiosas durante os séculos e as suas verdadeiras pretensões ainda em nossos dias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de abr. de 2023
ISBN9786525287188
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    O contágio sagrado - Barão de Holbach

    CAPÍTULO 1

    ORIGEM DA SUPERSTIÇÃO: O TERROR SEMPRE FOI A BASE

    Primus in orbe Deos fecit timor¹

    O homem é supersticioso apenas porque tem medo; ele só teme porque é ignorante.

    Por não conhecer as forças da natureza, supõe-na submissa a poderes invisíveis, dos quais acredita depender, e que os imagina irritados com ele ou favoráveis à sua espécie. Consequentemente, concebe as relações entre esses poderes e a si próprio. Em alguns momentos acredita ser o objeto de sua cólera, em outros, o objeto de sua ternura ou piedade. Sua imaginação trabalha para descobrir os meios de torná-los auspiciosos ou de desviar sua fúria, mas como ela nunca pode mostrá-lo nesses deuses senão meros homens exagerados, as relações que supõe entre ele e esses seres invisíveis são sempre humanas. A conduta que assume para com eles é sempre emprestada daquilo que mantêm os homens quando têm que lidar com algum ser de sua espécie cujo poder temem ou querem merecer o favor. Uma vez encontradas essas relações e esses meios, o homem se comporta para com seu Deus como o inferior para com o superior, como o súdito para com seu soberano, como o filho para com seu pai, como o escravo para com seu senhor, como o fraco para com aquele cujo capricho ou poder ele teme. Conforme essas noções, faz regras e traça um plano de conduta para si mesmo, conformando às ideias agradáveis ou terríveis que sua imaginação, guiada por seu temperamento e suas próprias circunstâncias, lhe dá do ser invisível do qual ele acredita depender. Assim, seu culto, quer dizer, o sistema de conduta em relação a Deus, está necessariamente em conformidade às noções que fez dela, assim como esse próprio Deus, formado em sua própria maneira de sentir. Quando o homem sofre devido a grandes doenças, pincela para si mesmo um Deus terrível diante do qual treme, e seu culto se torna servil e pouco sensato. Quando acredita ter recebido suas bênçãos, ou quando imagina ter o direito de esperá-las, ele vê seu Deus sob traços mais suaves e seu culto se torna menos abjeto e menos irracional. Em resumo, se teme a seu Deus, é capaz de todas as formas de extravagâncias para apaziguá-lo, porque o supõe vicioso, perverso e mal-intencionado. Tem mais confiança e presta-lhe menos homenagens abjetas, conforme as virtudes e as boas qualidades que lhe atribui ou que deseja nele encontrar, e conforme os favores que acredita ter recebido ou que aguarda para o futuro.

    Todos os cultos ou sistemas religiosos são baseados em um Deus que se irrita e se acalma. Os homens estão sujeitos a sofrer calamidades, entretanto, em algumas circunstâncias, encontram-se em situação mais feliz e atribuem-na igualmente a este Ser. Assim, sua ideia alcança suas imaginações de várias maneiras; às vezes ela os assusta, os aflige e os lança ao desespero; às vezes excita neles admiração, confiança e reconhecimento; consequentemente, os cultos prestados por eles a este Ser foram sentidos a partir das diferentes paixões ou maneiras em que foram afetados. Deus, conforme os efeitos da natureza, parecia às vezes terrível e às vezes, amável; às vezes era objeto de temores e às vezes de esperanças e amor; às vezes era um tirano terrível para seus escravos, e às vezes um pai terno que acalentava seus filhos. Como a natureza não age de maneira uniforme nos efeitos que experimentamos de sua parte, nenhum Deus pode ter uma conduta uniforme ou que jamais se contradiga. O Deus mais cruel e suscetível à cólera, teve alguns bons momentos, o mais bondoso gozou, necessariamente, momentos de humor dos quais os homens acreditavam ser o objeto.

    É nessa conduta mutável e sem suporte da Divindade, ou melhor, nas variações da natureza, que devemos buscar as causas dos meios tão opostos, muitas vezes tão bizarros e tão contraditórios, que vemos empregados em cultos diversos e frequentemente na própria religião. Encontramos mortais ocasionalmente ocupados em dar ações de graças, entregando-se à alegria, testemunhando-a via festas hílares; às vezes, e mais frequentemente ainda, os vemos mergulhados na tristeza, não ousando erguer os olhos ao céu, ocupados com expiações, sacrifícios e cerimônias que anunciam a mais profunda consternação e esforços para apaziguar a ira da Divindade. É assim que, periódica e continuamente, todas as religiões do mundo fazem apenas uma miscelânea de práticas as quais nos revelam as ideias vacilantes que os homens têm feito dos objetos de seu culto.

    É à mesma causa, ainda, que devemos atribuir a diversidade de opiniões que os diferentes indivíduos das mesmas sociedades, embora seguidores do mesmo culto, têm e sempre terão sobre aquele Deus que concordam em servir. Alguns observam apenas o Deus terrível, outros, apenas o benevolente; alguns tremem diante dele, outros se esforçam para amá-lo; alguns desconfiam dele, outros põem nele a mais completa confiança. Em suma, cada um segue, em suas ideias, seu próprio temperamento, seus preconceitos, suas paixões, suas circunstâncias, e extrai induções vantajosas ou prejudiciais para si mesmo ou para os outros do sistema que criou a respeito de seu Deus. Um sujeito, paralisado de medo, geme aos pés de seus altares para implorar sua piedade, o outro lhe mostra ternura afetuosa e agradece sua bondade. Alguns estão persuadidos de que esse Deus se agrada em atormentar os humanos e vê-los em lágrimas, consequentemente ele se aflige, se inquieta, renuncia aos prazeres; o outro, menos pusilânime, se convence de que um Deus bom não pode desaprovar o uso de suas bênçãos. Um acredita que seu Deus está irritado e sempre pronto para atacar, o outro o vê mais indulgente e pronto a perdoar. Um, imerso na melancolia, na tristeza e na enfermidade, se ocupa incansavelmente com seu Deus desolado; outro, mais alegre, mais dissipado, mais distraído pelos negócios, raramente leva-o em conta, e logo deixa de pensar nisso: o que direi!

    No curso de sua vida, e mesmo no decorrer de seus dias, o mesmo homem não tem a todo momento a mesma ideia de seu Deus. Sua noção varia na saúde e na doença, na prosperidade e na adversidade, na segurança e no perigo, na infância, na juventude ou na idade das paixões, na meia-idade e na velhice. Essa noção varia, ainda, segundo os estados; as pessoas mais expostas a empreendimentos perigosos são comumente as mais sujeitas à superstição. O mal sempre deixa impressões muito mais fortes no homem do que o bem, assim, o Deus mau o ocupa muito mais do que o Deus bom. É por isso que vemos dominar um tom lúgubre e obscuro em todas as religiões do mundo. De fato, vemos por toda parte a religião conduzindo os mortais à melancolia, tornando-os sérios, levando-os a fugir da alegria e dos prazeres, e muitas vezes, fazendo-os abraçar a forma de vida mais desagradável e oposta à sua natureza. Em todos os ambientes, perceberemos as provas desta verdade. Descobriremos que o nome de Deus evoca, em toda parte, a tristeza daqueles que se ocupam dele seriamente, renova incessantemente neles o sentimento de medo, e nutre em suas almas disposições sombrias e dolorosas.

    Isso não deveria nos surpreender. Estas são calamidades que por toda parte fizeram as pessoas pensarem nas Divindades e imaginar meios de apaziguá-las. O homem é supersticioso porque é ignorante e tímido: não há mortal que não sinta dores, não há nação que não tenha sofrido reveses, desastres, infortúnios. Tais adversidades sempre foram tomados como sinais da cólera celestial em razão da falta de conhecimento das causas naturais². Habituados a considerar os deuses como os autores de todas as coisas, foi a eles que os povos se dirigiram para fazer cessar os males que os afligiam. Ofereceram-se indiscriminadamente e sem exame a todos os meios que lhes eram apresentados, seja para torná-los favoráveis ou para afastar sua fúria: o homem estúpido e perturbado é totalmente incapaz de examinar algo. Portanto, não nos espantemos se virmos por toda parte a humanidade tremer sob deuses cruéis, estremecer diante de suas ideias e, para desarmá-los, submeter-se a mil invenções das quais o bom senso é ultrajado.

    De fato, em qualquer local de nosso globo em que direcionamos os olhos, podemos ver pessoas infectadas por superstições, consequências de seus medos e da ignorância, as verdadeiras causas de seus males. Sua imaginação perturbada os fez adotar, sem reflexão, os cultos que lhes anunciaram como meios mais seguros de apaziguar os deuses, a quem a astúcia imputou sempre os infortúnios do gênero humano. Todo homem que sofre, treme e ignora, está disposto à credulidade. Privado de recursos próprios, confia em quem lhe parece mais instruído e menos temeroso do que ele, considerando-o um ser privilegiado, favorecido pelo céu, capaz de consolá-lo e remediar suas dores³.

    Em meio a nações consternadas, sofredoras e inexperientes, encontraram-se ambiciosos, entusiastas ou enganadores. Aproveitando a alarmada ignorância de seus concidadãos, estes usaram em proveito próprio suas calamidades, seus medos e sua estupidez, conquistaram sua confiança, conseguiram subjugá-los e fazê-los adotar seus deuses, suas opiniões e seus cultos. Um mortal mais intrépido, esclarecido e astuto, ou de imaginação mais vívida, obtém uma ascendência necessária sobre o mais fraco, tímido e simples do que ele. A esperança de encontrar recursos e aliviar a rigorosidade de sua sorte amarra o infeliz ao seu guia, se dirige a ele como alguém que recorre ao primeiro charlatão em uma doença desesperadora. Aquele que sofre ou treme em tudo acredita, tudo consente, contanto que lhe prometam aliviar as suas dores, estabilizando as suas incertezas e lhe fornecendo os meios para evitar os infortúnios que o afligem ou que teme. É por isso que todo homem que padece ou está inquieto se dispõe a sempre se entregar à superstição. É, sobretudo, em meio às calamidades públicas que as pessoas ouvem a voz dos impostores que lhes prometem remédios; é quando as nações ficam consternadas que os inspirados, os profetas e os ministros dos deuses se tornam todo-poderosos. Eles triunfam nos momentos em que os homens estão enfermos, aflitos, descontentes e magoados. Doenças e contratempos entregam todo mortal àqueles que lhe falam em nome da Divindade; é diante da cama de um moribundo que a religião certamente alcançará vitórias completas sobre a razão humana.

    Nada, então, é mais natural do que ver a impostura triunfar sobre a credulidade; a experiência, a habilidade e o gênio dão a alguns homens um poder ilimitado sobre as nações ignorantes, consternadas e mergulhadas na miséria. O vulgo, semelhante a um rebanho tímido, reunia-se perto deles, recebia seus conselhos e suas lições com avidez, subscrevia sem exame aquilo que queriam lhe ordenar, confiava nas maravilhas que produziam, em suma, reconheciam em tudo a sua superioridade. Esses, aliás, conquistaram comumente a confiança do povo, quer com promessas lisonjeiras, quer com benefícios reais; maravilharam os seus espíritos com obras que não podiam compreender, e muitas vezes por reconhecimento os prenderam. Todos que deram deuses, leis e cultos aos homens, geralmente se anunciaram com descobertas úteis e maravilhosas para os ignorantes, ganharam sua confiança antes de comandá-los e os fizeram esperar a cessação de seus males. Porém, para conservar seu império, sentiram que era importante nunca banir suas inquietudes, assim, sempre os mantiveram suspensos, flutuando entre a esperança e o medo, tendo o cuidado de não os tranquilizar demasiadamente. Ao contrário, dedicaram-se em renovar frequentemente os seus alertas, a fim de permanecerem seus senhores. Com isso, os legisladores asseguraram seu poder, tornaram-no mais sagrado, mostrando aos seus discípulos um Deus terrível sempre prestes a punir aqueles que se recusassem a se curvar sob suas próprias vontades: a causa do legislador sempre foi a do Deus do qual ele era o intérprete e o enviado.

    Assim, os impostores, identificados com a Divindade, exerceram o poder mais absoluto, tornaram-se déspotas e reinaram mediante o terror. Os deuses serviram para justificar os excessos e os crimes de sua tirania, fazendo, desses mesmos deuses, tiranos. Perdoaram, em seu nome, o crime e a irracionalidade, e as ameaças celestiais vieram em apoio às paixões daqueles que anunciaram seus decretos aos mortais. Fizeram entender que toda a natureza, armada com deuses invejosos, conjurava contra eles, e que esses deuses poderosos, semelhantes aos reis da terra, vigiavam sem cessar a conduta de seus súditos, estando sempre dispostos a punir com fúria as menores desobediências ou murmúrios contra os decretos que lhes anunciavam. Afirmavam que esses deuses, disfarçados de reis ou tiranos, eram, como eles, gananciosos, bizarros, interessados, invejosos dos bens de seus súditos e de sua felicidade. Supunham exigirem tributos, presentes, subsídios, que lhes rendessem honras, que lhes dirigissem votos, e não tolerassem negligência alguma ao cerimonial e a etiqueta com que seu orgulho era lisonjeado. Os intérpretes desses reis invisíveis foram os únicos cientes de tais coisas, das quais elaboraram profundíssimos mistérios. Tornaram-se, então, os árbitros da conduta que deveria ser adotada em relação a eles. Somente eles conheciam as intenções da Divindade, viam-na face a face, desfrutavam de sua conversa familiar, recebiam diretamente dela mesma suas ordens e o método que deveria ser seguido para merecer suas graças ou apaziguar sua ira.

    Advertidos de que Deus é um monarca poderoso, interessado, ciumento de seu poder e pronto a se irritar, os homens sempre se comportaram diante dele como com os governantes da terra. Esse ser sempre foi tratado como homem, porém privilegiado: seu poder o colocava acima das regras ordinárias. Não conhecendo nenhuma lei exceto seu capricho, foi um verdadeiro sultão da Ásia e seus ministros, os vizires, foram tão despóticos quanto ele. De fato, observamos que todas as religiões do mundo povoaram o Olimpo apenas com deuses perversos, que encheram o mundo com seus distúrbios, fizeram da destruição humana um jogo e governaram o universo conforme suas fantasias insensatas. Acostumadas a acreditar que a licenciosidade deve fazer parte do poder, as nações acreditaram com muito mais razão que tudo era legítimo para os soberanos celestiais aos quais adoravam. Elas, portanto, viram em seus deuses apenas mestres licenciosos para os quais tudo era permitido, que impunemente brincavam com a felicidade de seus súditos, cuja conduta não podiam criticar sem perigo ou crime. Essas funestas ideias, emprestadas do terrível despotismo, tornaram todos os cultos servis, abjetos, irracionais, e fizeram dos deuses os seres mais contrários à moral, os mais irracionais e os maiores destruidores de toda e qualquer virtude.

    A Divindade, assim transformada em um soberano injusto e caprichoso, recebeu homenagens dos povos, que procuraram bajulá-la sordidamente, ganhá-la com presentes, corrompê-la com oferendas, desviá-la com orações. Como os reis, assim como os outros homens, agem apenas por interesse, e como o desejo de se apropriar dos bens e dos frutos do trabalho dos outros é, comumente, o grande móbil daqueles que governam, pensaram que o rei do mundo devia exigir tributos, invejar as posses de suas fracas criaturas, ter ciúme de suas propriedades e até lamentar as vantagens que havia concedido a elas. Em suma, tinha o caráter de um monarca caprichoso que retirava com uma mão o que dava com a outra. Todas as religiões, como consequência dessas noções bizarras, representaram seus diversos deuses como ávidos, interesseiros, gananciosos, sensíveis às iguarias selecionadas e ao aroma das carnes⁴. Assim, para satisfazer os gostos da Divindade, acalmar sua inveja, alimentar sua preguiça, satisfazer sua avareza, aplacar sua fome, cada um sacrificou uma parte de seus bens ou de sua felicidade, presenteou-lhe com as iguarias e os perfumes que julgou mais favoráveis ao agrado do seu paladar ou do seu olfato.

    Os traços assustadores sob os quais os fundadores das diferentes religiões do mundo pintaram suas Divindades tiveram necessariamente que tornar os homens sanguinários, pois deuses maus e cruéis não podiam ter súditos humanos e pacíficos. As nações, acostumadas a ver em seus deuses apenas monstros sedentos de sangue, não tardaram em acreditar que era por sangue que deviam ser apaziguados. Pensavam que imolar-lhes homens, exterminar povos para seu prazer, atormentá-los, persegui-los, destruir em seu nome, era servir conforme seus gostos. Assim, o sangue humano correu sobre todos os altares; os sacrifícios mais bárbaros, mais revoltantes e mais dolorosos foram considerados os mais agradáveis para os deuses antropofágicos. Os povos assumiram o dever de satisfazer a Divindade com milhares de vítimas humanas; outros a apaziguaram com o sangue de seus próprios reis. Enfim, as mães, as mães! Arrancaram seus filhos do próprio seio, e os deram como refeição ao seu Deus. À força de meditar sobre um Deus terrível e de refinar as noções de sua crueldade, as nações esclarecidas chegaram a esse excesso de loucura, o de acreditar que o Deus do universo havia exigido a morte de seu próprio Filho e que foi apenas com esta condição que ele consentiu a perdoar o gênero humano. Foi preciso nada menos do que a morte de um Deus para apaziguar sua raiva! Este foi, sem dúvida, o último passo na extravagância teológica; é difícil imaginar que ela pudesse ir muito além disso.

    Essas foram as consequências das más ideias que as nações formaram de suas Divindades. Seus legisladores, representando-os sob os traços da loucura e da maldade, levaram os homens a se comportarem com eles como escravos desorientados, que, para agradar seus senhores, tentam adivinhar e servir suas fantasias, adotam cegamente suas paixões e consideram um mérito tornar-se cúmplices de seus distúrbios. E assim, partindo do princípio de que Deus muitas vezes se irritava com o gênero humano e com a causa de seus males, as nações se submeteram a práticas tão abomináveis quanto bizarras. Gradualmente se convenceram de que cerimônias insensatas podiam ser meritórias, e que a barbárie religiosa e a loucura sagrada podiam ser mantidas no lugar da razão, do bom senso e das virtudes. Como consequência, os caprichos e paixões dos deuses foram secundados pelo delírio, sua adoração frequentemente tornou-se atrocidade, capaz de revoltar os corações mais endurecidos. O aspecto terrificante foi aquele sob o qual os mortais, mais sensíveis aos seus males do que aos bens que experimentaram, consideraram, comumente, seu Monarca Celestial. Como vimos, foi também sob este aspecto que os legisladores tiveram o cuidado de apresentá-lo. Sentiram que um Deus terrível era mais conveniente aos seus interesses e muito mais propício a tornar os povos flexíveis, do que um Deus bom e dócil, cujos decretos permitir-se-iam serem facilmente violados. Se por um lado atribuiu-se bondade a este Deus, por outro, foi prudentemente contrabalançada por uma severidade sempre inquietante e capaz de fixar a atenção. É assim que os deuses, após terem sido gerados pelo temor, ficaram ainda mais assustadores pela astúcia dos legisladores, os quais tiveram interesse em nutrir e perpetuar o terror nos corações dos homens. O fruto desta terrível política não foi torná-los melhores, prendê-los à virtude, fazê-los observar as leis da natureza, foi o de torná-los mais submissos aos seus guias do que à razão, rebaixá-los aos seus próprios olhos, lhes sufocar toda energia, toda sua coragem e todo sentimento de dignidade. É esmagando os homens à força do terror, pondo incessantemente diante de seus olhos objetos propícios à inquietação, perturbando seu entendimento, irritando sua curiosidade sem jamais satisfazê-la, falando à sua imaginação e silenciando sua razão, que se pode torná-los escravos, mantendo-os eternamente sob o jugo.

    Nos dirão, talvez, que ao apresentar um Deus terrível aos homens, os legisladores esclarecidos acreditaram haver encontrado o mais poderoso dos motivos para exortá-los a viver entre si de maneira razoável. Porém, para tornar os mortais razoáveis, não se deve enganá-los, obrigá-los a renunciar à razão, dizer-lhes que existem preceitos mais importantes ou mais sagrados que os da natureza. Devemos mostrar-lhes a verdade, fazê-los sentir as relações que os unem; é preciso dar-lhes uma educação e leis que os convidem, os habituem e os obriguem a viver de uma maneira verdadeiramente conforme a natureza. A maneira mais segura de enganar os homens e fazê-los perversos é torná-los estúpidos, escondê-los ou disfarçá-los da verdade, proibir-lhes o uso da razão e, então, ordenar-lhes o crime em nome do céu.

    Este foi o caminho que tomaram todos os que trouxeram deuses, religiões e leis às nações. Longe de esclarecê-las e formar seus espíritos, de ensinar-lhes a verdadeira moral e os caminhos da natureza, falaram-lhes apenas por enigmas e alegorias; apresentaram-lhes mistérios; os entretiveram com fábulas. Neles se multiplicaram as incertezas, seus constrangimentos e seus medos, e tiveram como dever, sobretudo, nunca desenvolver sua razão.

    Por esse indigno abuso da confiança dos povos, estes tiveram apenas um espírito de servidão. Lançados em perplexidade contínua e privados de meios para escapar, estiveram sempre à mercê de seus guias, que sem princípios morais, estranhos à virtude, seguros da impunidade, foram

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