Vista Da Torre
De Paul Marcel
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Vista Da Torre - Paul Marcel
Vista
da
torre
Do autor
Epifania (Romance)
Música de viagem (Romance)
Das boas intenções (Romance)
Vista da torre (Contos)
Paul Marcel
Vista
da
torre
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:
Contos: Literatura brasileira B869.3
Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253
Por que você não escreve sobre isso?
Vista da torre
A bênção no caos
A mulher do Correio
A porta
Fora das quadras
Guerreiro
Me quebra essa
O quarto
Pátria
Um homem de letras
A saída
Gravitas
O último
Devagar
Empanturrem-se
Encenação
A voz
Fotos
Pregando o olho
Filhos
Gravitação
Por que você não escreve sobre isso?
Nunca pretendi ser contista.
Na adolescência, li e adorei as Histórias Extraordinárias de Allan Poe sem atentar muito para o fato de serem contos. Os de Lovecraft eu desbravei por não ter encontrado nenhum romance deste autor tão conceituado entre os fãs da literatura de horror e suspense, minha predileção à época.
É verdade que Nas montanhas da loucura inspirou o primeiro conto que escrevi, Eles. Se bem me lembro, é pouco mais do que um pastiche do original, mas todo mundo tem que começar de algum jeito, ora essa.
Ainda o tenho datilografado e morro de medo de relê-lo, menos por ser uma história escabrosa de bichos alienígenas nojentos do que por ser, quase certamente, má literatura.
Durante anos, minto, durante décadas, ficou nisso meu flerte com o conto. Aos vinte e três anos me meti a escrever romances e não parei mais.
Eu tinha dois farrapos de enredo que havia enfiado em um escaninho da mente por intuir que não renderiam mais do que contos. Não sendo eu contista, lembrar deles me provocava algo entre o desinteresse e a preguiça.
No ano de 2021, tudo mudou. Do nada, eles me voltaram à superfície da mente latejando de possibilidades. Como se quisessem, finalmente, ser escritos, um pouco à maneira do Homem obscuro de Marguerite Yourcenar.
Disso saíram Pátria e A mulher do Correio.
E a coisa não parou por aí. Novas ideias começaram a pipocar, todas elas pedindo para ser contos – ou por não terem fôlego suficiente para virarem romances, ou porque me parecia que a brevidade lhes serviria melhor.
Ri de mim mesmo. Eu, escrevendo contos? Não era caso de me recusar a trazê-los ao mundo, afinal sou escritor e meu trabalho me dá prazer. Despretensiosamente, talvez pela primeira vez sem fazer planos, fui escrevendo-os.
Chegamos a meados de 2022. Flagrei-me com uma dúzia de contos e comecei a ruminar.
Sempre ousado, o escritor em mim sussurrou: temos um livro de contos a caminho...
Quem diria? Eu, não.
Nova surpresa: ideias para contos em inglês. Nem se tratava da minha ambição me atiçando, eles simplesmente me vieram assim.
A coisa foi ficando mais empolgante. Escrevi os contos em inglês e logo em seguida traduzi-os. Os contos em português, comecei a verter para o inglês.
Resultado: tinha o rascunho de nada mais, nada menos do que uma coletânea bilíngue de contos.
Eu, que não sou contista – nunca será demais dizer.
Conversando com meu irmão, ele me perguntou sugestivamente: Por que você não escreve sobre isso?
Boa. Daí este prefácio, ou seja lá o que for isto.
A seguir, o que deu esta série de acontecimentos totalmente inesperados.
Continuo não me considerando um contista. Mas, do jeito que anda minha imaginação, existe um risco grande de esta não ser minha única coleção de contos.
Vista da torre
A torre na qual escrevo não é nem alta, nem baixa.
Afastou-se da mesa. Estivera reclinado sobre ela, apoiando-se nos punhos fechados, carrancudo. Exasperava-se com o que escrevia.
Chamavam o que ele fazia de alquimia. Havia quem o dissesse com respeito; outros o diziam com desdém; muitos, com medo. O que faltava a todos era compreensão.
Talvez fosse bom ser alta; eu teria um horizonte mais amplo, o que poderia significar uma visão mais abrangente; estaria mais distante das emanações humanas que tanto me desgostam e mais próximo do conhecimento e da renúncia paradoxal que este enseja.
Por que o ser humano sentia tanta necessidade de se explicar? Explicava-se a si ou aos outros?
A convicção tem que bastar, afirmou em voz baixa sem se dar conta de que havia falado. Eu me vou, o que eu faço, fica.
Por outro lado, a esta altura mediana já me chegam acusações de uma suposta misantropia que me trouxe, ou me mantém, aqui em cima. Parece não ter ocorrido a ninguém que foi o ar mais rarefeito que mexeu com a minha cabeça e lhe incutiu uma falsa importância.
Tentei, bem que tentei. O que é conviver? Conversar... ah, as conversas que testemunhei! Transformar o nada em nada não é uma ocupação digna. Foi eu buscar outra coisa para os conversadores começarem a me olhar de soslaio.
Será isso a megalomania, falta de oxigenação no cérebro? Como a ciência tira a poesia de tudo...
O que encontrei para me ocupar revolucionou a minha vida, maravilhou os meus dias, iluminou a minha alma; ela pode ser de todos, ainda pode, se quiserem. Se enxergarem o que é.
Se minha torre fosse mais baixa, estaria mais conectado às coisas humanas, alguém poderia argumentar. Seria mais sensível às mazelas de meus irmãos de infortúnio e também saborearia melhor os prazeres simples, sempre os mais valiosos, de acordo com a sabedoria do rés do chão. Ainda mais adequado seria que nenhum truque de arquitetura me afastasse minimamente dos meus assemelhados.
O que querem de mim? Que eu não ouse ser diferente; se o for, nos termos deles. É como se a humanidade fosse um culto ou agremiação a que só se pode pertencer, nunca se desfiliar.
Oponho a isto que só um mentecapto acredita sinceramente que seja indecente almejar estar acima da mediocridade, chamá-la de medíocre na cara e evitar a sua companhia. Os falsos humildes pregam uma lógica segundo a qual, no limite, deveríamos comer nas tigelas e nos potes dos nossos animais de estimação, só para mostrar que não nos achamos criaturas superiores.
Onde está este contrato que firmei sem saber o que assinava? Que o apresentem! Quero negociar suas cláusulas; senão, rescindi-lo; não restando alternativa, rasgá-lo.
Desço pouco da torre, cada vez menos. Minhas tentativas de convívio com o bicho homem, para além da família, têm se mostrado tão infrutíferas que venho perdendo o sentimento de culpa que vez por outra me acomete.
Mas não; esta sociedade não se desfaz. Ao menos, não de fora para dentro. Do pequeno para o grande, do hoje para o amanhã, sim. É o que faço, diariamente, solitariamente, silenciosamente, para o bem futuro de quem agora me quer mal. E por isto me chamam de alquimista...
Será um sinal de que pertenço mesmo ao isolamento, se isto não for uma contradição de termos? Talvez esta seja uma daquelas questões para as quais é, além de impossível, indesejável encontrar resposta.
Faço ouro não de algum metal especioso, mas da escória de toda uma vida. Haverão de me agradecer? Ao menos prestarão homenagens à minha lápide?
A quem mesmo escrevo este texto?
A bênção no caos
Abriu as janelas rápido, para impedir que os vidros estourassem. Era sempre assim quando o bombardeio começava: você tinha que pensar o que fazer primeiro para diminuir ao máximo os danos.
Depois da terceira ou quarta vez, ficou subentendido que cabia a ele cuidar das janelas, assim como puxar o telefone para o chão para ter certeza de que poderiam ligar pedindo socorro. Ismael só se deu conta da tolice deste gesto mais tarde, quando um amigo de Rafah contou que os postes em seu bairro haviam tombado e as linhas haviam parado de funcionar. Acontece que Ismael conhecia a esposa muito bem e sabia que, para ela, acreditar em alguma coisa equivalia a ter certeza dela, mesmo que contrariasse a lógica. Por isso lhe omitiu a informação de que, se o bombardeio atingisse as linhas de transmissão, nada adiantaria ter protegido o telefone.
O que mais o incomodava quando o exército israelense atacava não era a destruição, não eram as mortes, não era a desordem, era o barulho. Ismael não suportava as explosões, os gritos, as sirenes. Todos aqueles ruídos pareciam se reunir de maneira proposital para atormentá-lo.
As explosões, dependendo do artefato, da distância e do que haviam atingido, produziam uma variedade de sons que Ismael prometeu um dia contar, para provar o absurdo da situação. Piores ainda eram os gritos, uivos, lamentos. Muitos eram de dor, dor pura e simples; outros de susto e choque; muita gente berrava de raiva e frustração, também, e por fim aquilo que mais o angustiava: adultos, muitos deles homens feitos, chorando como uma criança ou um animalzinho ferido.
Ismael tinha um ritual ao qual se apegava a qualquer preço: colocava um de seus discos assim que o ataque terminava. Já havia recebido insultos de seus vizinhos, que achavam seu gesto irritante e desrespeitoso, fosse porque agredia a necessidade de silêncio que toma conta de todos após um bombardeiro, fosse porque eram discos de música ocidental. Mas ele precisava daquela reafirmação de civilidade e de beleza em uma vida que podia terminar abruptamente.
Vinha daí sua grande revolta, ao ser atingido na última incursão israelense contra Gaza. Antes sua raiva era difusa; simpatizava com a causa de seu povo, mas se mantinha distanciado da luta, porque ia de encontro à sua natureza pacata, conciliadora. Esperava pela paz como seu pai havia aguardado a cura de seu câncer, ou seja, esperançoso, mas ciente da improbabilidade do milagre. Até recentemente, não havia sofrido mais do que danos materiais, aliás, os de sempre e de todo o povo: portas, janelas, utensílios domésticos; certa vez seu carro havia sido atingido, felizmente só pelos destroços de uma bomba que caiu próxima, e não pelo explosivo.
Da última vez, estava na rua e não conseguiu se abrigar. Quem é que sabe para onde correr numa hora dessas? Ismael procurou a entrada de um edifício, alguma construção que lhe parecesse sólida o bastante para resistir a um impacto, mas não teve tempo. Sua lembrança era igual à de todos que haviam lhe contado a experiência: após um estrondo, voltou a si no chão, completamente desorientado. Depois de se dar conta do que provavelmente havia acontecido, apalpou-se em busca de ferimentos e viu sangue entre os dedos depois de tocar o lado do rosto. Levantou-se, enfim viu um prédio próximo e se agachou no saguão, ainda bastante confuso.
Foi só bem mais tarde que Ismael descobriu o mal que lhe havia sido feito. Terminado o bombardeio, ainda ficou sentado no chão um bom tempo. Seu corpo não queria se movimentar e ele sentia um desencanto tão grande que não parecia fazer muito sentido ir para onde quer que fosse.
Chegou em casa tarde e logo foi abraçado pela esposa, que começou a soluçar assim que o viu cruzar a soleira. Ismael entendeu então o estado em que se encontrava, pois não ouvia nenhum som saindo da boca de sua mulher.
Leila o levou até o sofá, saiu da sala e voltou com um punhado de coisas nas mãos numa velocidade espantosa; limpou-o