na intimidade do silêncio
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Sobre este e-book
Nascida e criada em Minas Gerais, Lia é uma professora de Artes desbravando São Paulo. Sua infância e sua adolescência foram marcadas pelas consequências das ações dos adultos ao seu redor. Agora, já crescida, ela tenta fazer as pazes com seu passado enquanto assume o protagonismo da própria vida.
Autora de um livro para crianças, Cintia Brasileiro se apresenta a um público mais velho com um romance que trata justamente do processo de amadurecimento sem deixar de lado a ingenuidade do olhar infantil. Com sua prosa leve, Na intimidade do silêncio versa com delicadeza sobre as dores de crescer.
"O sofrimento é apresentado de maneira quase inocente, acompanhando a voz que, aos poucos, amadurece e começa a compreender o mundo", define Jarid Arraes, que assina a orelha do livro.
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na intimidade do silêncio - Cintia Brasileiro
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Editora Aboio
Às mulheres dilaceradas
desde meninas.
A ninfa das águas 13
O olhar de Medusa 19
Meu naco de céu 24
Uma fatia da história 31
Ao que tudo indica 34
Outra fatia da história 38
Passaporte carimbado 43
Na cama ao lado 46
Não era dura nem de capotão 50
Saudade não tem repouso 53
A folha 58
Micro-organismos e bolinhas de gude 63
O trem e o mar 67
As musas 74
O direito ao grito 81
Parque dos dinossauros 85
Somente para iniciantes 89
Nascidas em 1946 93
O vaivém das recordações 97
A caça e o casamento 101
Achados e perdidos 104
Pois o que se apresenta como revelação aos nossos olhos, aos nossos ouvidos, guarda insondáveis camadas do não visto e do não dito e eu digo do não escrito.
Conceição Evaristo
Mãe, meu nariz sangrou na escola. Parecia que uma bomba tinha caído na sala de aula. Senti no ar o pavor que tomou conta de todos. Dentro de mim, tudo fervia. A professora congelou, não queria se aproximar e não sabia o que fazer com o lenço que tremia nas mãos dela. Eu também não sabia. Ninguém queria tocar em mim, mãe. O ventilador estava quebrado. Lá fora, um sol de rachar mamona, aí meu sangue escorreu pela minha boca, carteira, manchou meu uniforme e gotejou até o chão. Na sala, trinta crianças e a professora, e eu estava só. Peguei o lenço da mão dela, mãe. Tampei meu nariz, saí correndo em direção ao banheiro e desejei nunca mais ter que voltar.
A ninfa das águas
Faz mais ou menos uma semana que estou me preparando para este dia. De vez em quando, pego o endereço anotado no bloco vermelho e releio só para ter certeza de que não vou me perder. E, de vez em quando, uma angústia me acompanha até o chuveiro e escorre morna, a conta-gotas, pelo ralo.
Mesmo que por um instante, toda pessoa que conheço já desejou ter outro nome, outros pais, menos três quilos, ser um pouco mais alta ou mais baixa, quem sabe? Talvez queira morar em outro país, ou ter direito a nascer de novo e a calçar 35 para facilitar a compra de um novo tênis.
Almejei por quase tudo isso, perder alguns quilos não me faria mal e o 38/39 nos pés tem me acompanhado desde os treze anos. Sobre ter outra vida, isso é algo que desejo mais vezes do que gostaria.
Enquanto as buzinas lá fora parecem brincar de passa ou repassa, confiro quinze vezes meus papéis e documentos. Guardo tudo com cuidado, depois boto o pé na cadeira. Cruzo as duas partes do cadarço do All Star preto e gargalho quando vejo meu zigue-zague fashion terminar em orelhas de coelho. Minha professora do primário ficaria orgulhosa.
Jogo algumas balas de hortelã no bolso externo da mochila e lanço uma piscadela para o porta-retrato ao lado do sofá-cama. Passo pelo espelho com minha cara lavada e esperançosa, ouço a porta ranger ao meu toque, insiro a chave com gosto pelo buraco da fechadura, dou duas voltas e saio pela rua.
A garoa paulistana vai pouco a pouco chegando; não a convidei, mas está determinada a me acompanhar. Acelero os passos enquanto lembro que deixei as minhas inseguranças no quarto fazendo companhia ao guarda-chuva de poá que a dona Dora me deu.
Nada de interessante acontece até o meio do dia. Na avenida, algumas crianças descalças se entreolham, riem e pulam nas poças d’água que não podem alimentar, mas distraem bem os encharcados pela fome.
Meu almoço é um misto-quente com suco de laranja, o famoso da promoção, depois percorro
as
escadas
do metrô
com
a mesma
leveza
das bolhas
de sabão
Ao meu lado, corpos acelerados fazem cócegas no ar.
eu
flutuo
É gostoso esse arrepio que percorre meu corpo. Meu coração borbulha! O ir e vir de tantos desconhecidos é reconfortante. É bem melhor que andar de bicicleta
sem as mãos,
burburinhos, risos,
olhares atravessados ou
qualquer palavra maldita
por um conhecido qualquer.
Entro no metrô suando mais do que jogador de futebol numa grande final com cobrança de pênaltis. Assisti à final da Copa do Mundo de 94 ao lado do meu avô. Calejei meus ouvidos com os berros do narrador, mas foi eletrizante ver o Baggio chutar a vitória para fora do campo.
Um não gol e é tetraaa, Brasil! Uma das raras vezes que vi meu avô ir ao céu.
O sorriso no rosto dele me abraçou, sufocante. Quem diria, a bola voejou rumo ao nada pelo estádio do Rose Bowl, na cidade de Pasadena, Califórnia, onde as seleções italiana e brasileira eternizaram O MOMENTO em que o próprio camisa 10 da minha família pulava enlouquecido em cima do