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Inkué Piuntué
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E-book163 páginas2 horas

Inkué Piuntué

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Sobre este e-book

No Brasil do século XIX, conheça a história de Kaluanã e Aiyra. Os dois jovens nativos, vítimas de um desumano processo de preação contra os povos originários, são levados ao universo mambembe pelas mãos do cruel jagunço Amaro. Resistência, superação, conflitos e impasses da época são tratados nesta obra literária - além do lamentável sistema estrutural que dizimava as populações indígenas, segregando-a em um processo de exploração condenável.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de mar. de 2024
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    Inkué Piuntué - André Luiz Rezende Ferreira

    INKUÉ

    PIUNTUÉ

    A TRISTE HISTÓRIA DE UM BOTOCUDO

    AUTOR ANDRÉ LUIZ REZENDE FERREIRA

    Sumário

    1. CAPÍTULO I--------------------------------------- 02

    2. CAPÍTULO II--------------------------------------- 21

    3. CAPÍTULO III ------------------------------------ 34

    4. CAPÍTULO IV -------------------------------------3 7

    5. CAPÍTULO V-------------------------------------- 49

    6. CAPÍTULO VI ----------------------------------- 68

    7. CAPÍTULO VII ------------------------------------7 9

    8. CAPÍTULO VIII ----------------------------------- 88

    9. CAPÍTULO IX------------------------------------ 108

    10. CAPÍTULO X-------------------------------------1 47

    11. CAPÍTULO XI------------------------------------17 0

    12. CAPÍTULO XII-----------------------------------17 8

    13. CAPÍTULO XIII----------------------------------1 94

    14. CAPÍTULO XIV---------------------------------- 203

    NotadoAUTORE AGRADECIMENTOS------------21 6

    1

    1. OATAQUE (E A DESTRUIÇÃO DA ALDEIA DE KALUANÃ).

    A excessiva transpiração inundava a face grotescamente marcada de Amaro. Dos inúmeros sulcos e riscaduras daquele tão maltratado e pardacento rosto, fluía um suor pegajoso – e que se resumia a um gotejamento insistente, misto do encardido pó dos cipós (que eram violentamente afastados pelo indiferente jagunço durante sua caminhada), somado a uma exsudação aflitiva de todo o corpo daquele agente hostil na vigília de sua tocaia.

    Por horas intermináveis Amaro aguardava. Hirto e concentrado, aquele sertanista de reconhecida – e até mesmo admirada por seus pares! – exacerbada crueldade, só se permitia, extraordinariamente, movimentar-se equilibrando vez ou outra o acentuado torso em apenas uma das bases de seus pés – para facilitar o extravasamento de qualquer incômoda micção, que na certa lhe pressionava a bexiga momentaneamente. Ainda assim, sequer expunha publicamente a intimidade de sua ‘vergonha’, evitando que a sonoridade do impacto do incontido fluxo, caso o mesmo não fosse parcialmente represado por suas puídas vestes, ao alcançar o chão gerasse o prévio e indesejado alerta daquele aldeamento cercado.

    2

    Desejava intimamente destruir toda aquela maldita aldeia – encarcerando tão somente as selvagens, que certamente seriam coagidas a favorecer, disciplinadamente, às mais ferinas sevícias do grupelho de jagunços que comandava. Tragicamente, seus mais viscerais intentos foram objetivamente frustrados: no século XIX (período histórico em que Amaro respirava, pulsava e existia), inseria-se de forma contundente a criação de uma primeira ação política em favor da causa dos povos nativos. Contudo, para aquele facínora que dessorava em meio ao calor tropical, alvejado constantemente por dezenas de picaduras dos mais diversos insetos, todo aquele discurso inútil não passava de uma boatice temporária. Sem sombra de dúvidas, alguns ociosos homens ilustrados – adoidados em seus pantagruélicos banquetes cerimoniais -, decidiram atabalhoados por aquela nova sandice. Entretanto, contava ser questão de pouco tempo até que as invasões homicidas aos aldeamentos dos selvagens, fossem novamente ignoradas e franqueadas – principalmente, para aqueles que, como ele próprio, viviam e se beneficiavam das expedições marginais de preação dos nativos.

    Com a chegada de incontáveis religiosos na sua região – comumente, frades da Ordem Menor dos Capuchinhos (que, na maioria das vezes, eram italianos) -, Amaro viu minguar suas

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    atividades mercantis: o processo de desterro daqueles selvagens, por ora rigorosamente fiscalizado pelos intrometidos carolas europeus, reduzia drasticamente as receitas daquele violento criminoso. Incrédulo, Amaro via-se de algoz a perseguido – pois era sempre procurado por dezenas de usurários e prestamistas, implacáveis e sedentos diante da ausência de seus cobres que até então nunca faltaram para fazer honrar seus vultosos empréstimos.

    Toda aquela situação vexatória somente contribuía, ainda mais, para aumentar o ódio daquele perseguidor contumaz dos povos originários daquelas cercanias. Tachado pelos brancos locais de ‘cafuzo’, aquele cangaceiro negava-se a aceitar qualquer linearidade ascendente que envolvesse ameríndios e africanos. Há tempos convencera-se ser herdeiro de amorenados burgueses espanhóis – e, apesar do enredo não se sustentar diante das interrogações mais básicas, fortalecera sua ambição de casar futuramente com uma jovem e alva mulher ibérica (certamente, encaminhada àquelas paragens tropicais, pelas profundas necessidades que se avolumavam no distante Velho Continente). No entanto, apesar dos diversos dilemas que, atualmente, amofinavam a trágica e confusa vida daquele desalmado bárbaro, no presente instante Amaro era todo instinto: intocável,

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    invencível... e, incondicionalmente, disposto a fazer valer sua vil vontade.

    ***

    Aiyra era a sempre leal companheira de Kaluanã. As duas crianças, que tinham espaçados seus respectivos nascimentos em questão de reduzidos meses – sendo o menino Kaluanã, o mais velho – brincavam sempre juntos. Passeios, desafios, desenfreadas corridas e cuspidelas... todos esses eventos eram diariamente compartilhados por aquele precoce casal de nativos infantes.

    Ainda que apontado como ‘baixote’ pela menina Aiyra, Kaluanã despontava como inquestionável líder daquela então diminuta parceria: não era incomum observar-se o imberbe comandando, por intermédio de estridentes silvos e ruidosos brados, os destinos a serem alcançados pela dupla de peraltas. Naquele fatídico dia, especificamente, o menino levantara -

    se amofinado. Rejeitando desde muito cedo e, categoricamente, a presença de Aiyra, passara boa parte do tempo em um mutismo inabalável – posicionado de cócoras, incomodado com um pressentimento persistente que o fazia debruçar-se diante de um medo inexplicável.

    5

    Para Kaluanã, todo aquele dia fora estranho e inóspito : adentrara emsuas primeiras horas dominado por uma modorrenta angústia – que o aprisionava, estático, e o fazia ser, gradualmente, absorvido pela iminência de um desastre trágico. Nem mesmo o delicioso ‘tacará’ preparado por sua zelosa mãe – com a mandioca, habilmente transformada em um saboroso sumo destacadamente amarelado (e que fora derramado, com carinhosa fartura, sobre as prediletas tapiocas e erva de ‘jambu’, sempre tão cobiçadas pelo menino) -, desinstalara daquele preocupado efebo o sobrepeso de um alerta constante.

    Ainda agora, Kaluanã matutava, apoquentado, mirando objetivamente o horizonte à sua frente – como que se esperando, no avançar das horas, a chegada de um momento crucial e avassalador (e que, imparável, transformaria para todo o sempre a sua vida).

    ***

    Desde que se apercebera viva, ativa e inegavelmente presente na rotina daquele aldeamento – e que era todo o seu mundo, completo e finito, não se interessando para nada além das mais próximas cercanias daquele genuíno habitat -; Aiyra via- se, permanentemente, atraída por Kaluanã. De compleição física consideravelmente minguada, aquela esguia menina

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    acompanhava o mancebo nas mais adversas desventuras: machucavam-se, testando seus limites, numa infindável sucessão de escoriações – todas elas marcadas por dolorosas (mas temporárias) lacerações e também sofridas ralações. Com pernas e braços marcados, aquele tão inusitado casal de impúberes nativos fortalecia, inegavelmente, os laços para um provável consórcio futuro.

    Infelizmente, naquele exato dia Kaluanã – o ‘baixote’ – demonstrara acentuado desinteresse ao vê-la aproximar-se. Tão poucos foram os períodos em que, irritadiço, o menino escancarava sua temida carranca. Na atipicidade desses momentos, bastava tão somente Aiyra reconhecer sua passageira derrota: aceitar entreter-se isolada, e seguramente distante de seu assíduo e fiel parceiro de travessuras. Assim sendo, foi com notável percepção que aquela experiente observadora, já tão acostumada para com os diferentes semblantes de Kaluanã, absorvera também em si a angústia fragilizada que emanava de seu consorte de peraltices e traquinagens.

    Àquele dia, Aiyra podia assegurar – mesmo que não soubesse, definidamente, o real motivo ou mesmo o contorno daquela prévia dedução – que todos os sucessivos e felizes

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    momentos, que até então vivenciara naquele ermo e tranquilo sítio, estavam prestes a se findar concretamente.

    ***

    Além de sua própria e excessiva transpiração, Amaro farejava meticulosamente os diversos aromas que, saídos do aldeamento e seu diminuto entorno, permeavam agora sua concentrada tocaia. Diferente do bodum produzido fartamente por aquela súcia de ignóbeis velhacos que sempre o acompanhavam, os eflúvios e as essências que escapavam da morada dos silvícolas associavam-se, inegavelmente, ao zeloso tratamento que aquela população originária dava à sua rotina. Temperos, fragrâncias e perfumes – ali, tais emanações se complementavam, formando um ideal cenário imaginário de cuidado coletivo e esmero comunitário.

    De mosquete em mãos, o medonho líder daquele demoníaco grupo de jagunços esquadrinhava perfeitamente o território observado: em sua inegável maioria, o aldeamento era guardado por mulheres e crianças. Também existiam idosos, e mesmo alguns homens emidade adulta – que, quase sempre, eram desafortunados ébrios, padecendo cronicamente dos malefícios dos aguardentes destilados (cedidos ou não, sempre em conformidade com os interesses das autoridades agrárias locais).

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    Na antevéspera, conjuntamente ao carregamento de mosquetes – devidamente distribuídos aos facínoras, que regalavam-se por incessantes horas treinando o apoio do cano e a eficiente utilização da forquilha (além da exagerada repetição da mira e a prazerosa imaginação do disparo) -; foram distribuídos estrategicamente colmos da cana-de-açúcar, diluídos assombrosamente em um desequilibrado e concentrado destilado fermentado. À vista disso, os poucos homens adultos daquele nativo sítio – curiosa exceção em relação à maioria daquela população masculina, que seguia vítima de uma sedutora diáspora, sempre repleta de promessas e ofertas (mas que, não obstante, permanecia sempre distante do real alcance das futuras riquezas aventadas por embusteiros, vivaldinos e exploradores) - , logo foram surpreendidos com aquela tão inesperada e duvidosa distribuição dos aguardentes produzidos em alambiques.

    Agora, Amaro esperava ansioso que se firmasse a noite – para que assim, definitivamente, pudesse dar início ao tão esperado desterro daquela vulnerável população.

    ***

    O aldeamento cobiçado por Amaro, feudo campal onde habitavam, entre outros, os inocentes Kaluanã e Aiyra havia sido edificado – ao menos, a princípio – por uma exata dezena de

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    capuchinhos. Aqueles dez missionários, objetivos diante do desafio de aculturar aquela população originária, valiam- se comumente do enraizado sistema de escambo entre os nativos para oferecer-lhes utensílios, bugigangas e quinquilharias (sendo os dois últimos, sempre em maior quantidade). Em troca, tão somente exigiam inúmeros préstimos – de natureza laboral completamente servil -, além da leal devoção silvícola em função de seus ícones religiosos, ritos institucionais e, finalmente, o batismo cristão.

    Ultimamente, dada a constante escassez de recursos governamentais encaminhados ao trabalho missionário, é certo que os religiosos – progressivamente – foram distanciando- se daquele projeto específico. Com a ausência do apoio sacerdotal, os ameríndios – principalmente, os homens (jovens e adultos) – eram indevidamente assediados na sua moral e comportamento: eram seviciados publicamente por jagunços e sertanistas inescrupulosos, que os açoitavam constantemente. Além disso, colonos e quinteiros – todos eles encaminhados por vis fazendeiros – ofereciam farta distribuição de aguardentes e similares (para que, posteriormente, já devidamente sequestrados pela adicção alcoólica, fossem facilmente manobrados).

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    Era, em boa parte, o atual caso daquele sítio: entre uma peraltice e outra, Kaluanã e Aiyra testemunhavam as constantes agressões em face de umaldeamento inegavelmente pauperizado. Ademais, com a exceção de poucas mulheres adultas e resistentes diante de um hostil processo de desterro, eram raros os homens que não estivessem constantemente embriagados – o que, por último, facilitava o inevitável uso da força se os detratores deparassem com uma inesperada resistência daquela local população indígena. Lamentavelmente, parecia ser esse o caso agora em questão.

    ***

    O estampido de um disparo, a expansiva fedentina da pólvora e os assustadores urros dos grotescos jagunços: nada daquilo surpreendia os habitantes daquele povoado – e, ainda assim, alucinava arrebatadoramente as miseráveis testemunhas daquele colapso. Não eram desconhecidas as notícias de violentos desterros que, implacavelmente, eram cometidos contra as populações indígenas. Ao contrário: quanto mais periféricas e desassistidas pelas missões religiosas, maior era o risco de ver- se invadido um vilarinho nativo.

    Ainda assim, o espanto acentuado daqueles habitantes convencia de que seu despreparo, diante principalmente daquela

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    algazarra orquestrada, somente poderia ser fruto de uma imperdoável ingenuidade – que os faria pagar, mediante o enclausurado cerceamento de suas existências (ou quando mesmo, e até mais grave, com a possibilidade de sua vida ceifada).

    ***

    Teso no arraial central do aldeamento, Kaluanã agora expressava-se corporalmente de forma bem distinta: guardava ambos os punhos cerrados

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