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A viagem de Narciso
A viagem de Narciso
A viagem de Narciso
E-book153 páginas1 hora

A viagem de Narciso

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Sobre este e-book

— E como é que morri? – perguntou com um ar divertido.

— Com uma overdose de autoestima – responde muito séria a cópia de Narciso ao volante do veículo que acaba de descolar e que voa agora a baixa altitude, raspando as braças de uma árvore gigante com folhas douradas. Narciso abre a janela e colhe uma. Agarrando-a com a ponta dos dedos, aproxima-a dele, mas a folha desintegra-se como por magia. Varre com um gesto seco o pequeno monte de pó negro na sua perna, nas suas calças de tweed claro, o que tem como efeito espalhar a mancha que se incrusta no tecido. Narciso fica bastante chateado. Uma nuvem escura passa pela sua testa e deixa cair algumas gotas de chuva que lhe deslizam pela cara.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento12 de mai. de 2018
ISBN9781547529445
A viagem de Narciso

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    A viagem de Narciso - Isabella Marques

    A viagem de Narciso

    Da mesma autora

    La deuxième vie d’Hippolyte Bontampis, 2011

    Isabella Marques

    A viagem de Narciso

    Para Sara.

    ***

    Misturando devagar o açúcar na sua chávena de café, Sibylle olha, mas sem verdadeiramente ver a multidão de transeuntes que se agita à sua frente. Repara numa mulher alta e morena que abranda perto dela, vasculhando a sua mala com gestos nervosos. Irritada, a mulher não encontra o que procura. Levanta o nariz, percorre com o olhar a esplanada onde se encontra Sibylle e aproxima-se dela num passo decidido. É uma mulher muito bonita: um metro e setenta e cinco, magra, uma postura elegante, uma cara bem feita. Num tom seco, a morena pede-lhe lume. Tem um cigarro fino com filtro branco entre dois dedos com unhas pintadas, a escassos centímetros dos lábios. Sibylle repara na boca pulposa, pintada de vermelho vivo, ligeiramente entreaberta sobre uma dentição perfeita. Desculpa-se pelo tempo que demora a encontrar o isqueiro na confusão da sua mala. Por fim, retira o objeto, um pequeno Bic preto, que estende à morena. Esta última não faz qualquer movimento para o agarrar e fica imóvel, à espera. Sibylle atrapalha-se com mais umas desculpas, acendendo o cigarro com uma mão hesitante. A morena inspira profundamente e cospe o fumo em direção ao céu, numa longa expiração. Novamente, dirige-se a Sibylle, desta feita com um largo sorriso, e agradece-lhe antes de se afastar ao som dos saltos dos sapatos. Sibylle segue com o olhar a bela silhueta que acaba por se diluir na multidão. Imagina uma cena em que aquela mulher se teria sentado à sua mesa para se conhecerem. Sibylle, mais audaciosa do que na realidade, ter-lhe-ia dito: Está com pressa? Ao que a bela morena teria respondido:

    — Não, nem por isso.

    — Então sente-se, faça favor, peço-lhe. Posso oferecer-lhe um café?

    A mulher teria aceitado com agrado. Ter-lhe-ia contado a sua vida extraordinária, uma vida de atriz, ou até de rica herdeira...

    O empregado interrompe-a nos seus sonhos: terminou o seu serviço e precisa de receber. Sibylle abandona relutantemente a sua bela herdeira. Tira do bolso uma quantidade de moedas amarelas, tenta juntar o necessário, mas não é suficiente. Dirige um sorriso envergonhado ao empregado que lhe devolve um olhar frio e impaciente. A jovem tranquiliza-o: tem uma nota de dez Euros na carteira. Estoico, o empregado não se demove, agarra na nota estendida, devolve-lhe o troco, deixando cair as moedas no acrílico da mesa, e continua a sua ronda, de bandeja na mão, até às mesas vizinhas. Sibylle verifica a hora no seu telemóvel: nove e um quarto. Tem de se despachar, se quiser ficar bem posicionada na sala de conferências.

    Durante cerca de dez minutos, vagueia nos corredores do edifício antes de chegar finalmente ao grande anfiteatro onde deve acontecer a conferência. Instala-se rapidamente a meio de uma fila praticamente vazia e deposita a mala e o casaco no lugar a seu lado. Três filas separam-na do palco. A sala está longe de estar cheia. Uma pequena centena de pessoa está espalhada aqui e ali, tendo tido o cuidado de deixar uma boa distância entre si. Sibylle lança um olhar à sua vizinha mais próxima, à esquerda, a quatro lugares de intervalo. Uma mulher com cerca de sessenta anos. Cabelos acinzentados apanhados num rolo, óculos finos pousados num pequeno nariz direito, estatura média, a julgar pela altura do busto. O seu camiseiro é feito de um tecido violeta, cintilante, onde se reflete a iluminação da sala. Tem nas pernas um caderno de apontamentos e a sua mão direita brinca com uma caneta, mordiscando-a de vez em quando, ou fazendo-a dar voltas no ar como se fosse o bastão de uma cheerleader. Agitando-se na sua cadeira, a mulher vira-se para Sibylle e dirige-lhe um sinal educado com a cabeça, ao qual a jovem responde com um sorriso envergonhado.

    — Dá-me licença? – lança a sexagenária, apontando a caneta para o lugar ao lado de Sibylle.

    — Hum, sim... claro, faça favor – responde Sibylle, arrependendo-se imediatamente daquela fraqueza.

    A mulher contorciona-se, desliza dificilmente junto às costas das cadeiras da fila da frente, para, por fim, deixar-se cair com estrondo no lugar. Pousa a mão no braço de Sibylle e murmura-lhe num tom de confiança, com um ar cúmplice:

    — Aposto que veio por causa do Belamant...

    Sibylle responde-lhe com um breve e tímido sim, perguntando-se porque diabo o destino a fez sentar-se na mesma fila que aquela tagarela. Depois de um curto silêncio, a sexagenária retoma:

    — É inacreditável! Eles nunca começam a horas! Da última vez, começou com mais de uma hora de atraso. Tive de sair antes do fim. Não é pelo facto de estar reformada que posso perder o meu tempo. Tenho uma agenda extremamente preenchida, sabe! Atividades desportivas, culturais e caritativas: uma verdadeira agenda de ministra!

    Ela deu ênfase às palavras extremamente e verdadeira, articulando de forma exagerada as sílabas e arrastando as vogais.

    Sibylle gostaria de trocar de lugar, mas, com receio de parecer rude, fica, amua e reza interiormente para que o apresentador anuncie rapidamente a primeira intervenção.

    Uma mesa comprida coberta por uma toalha branca ocupa todo o comprimento do palco. A intervalos regulares, correspondendo a cada cadeira, pequenos mostradores brancos indicam em letras negras o nome dos participantes. Sibylle conta os mostradores. São dez. De onde está, consegue ler os nomes. Detém-se naquele pelo qual ela está ali: Narciso Belamant. Que ironia do destino fez com que ele tivesse aquele nome tão apropriado? Terá sido justamente o nome que fez dele o que é? De certa forma, ele não tinha outra alternativa que se tornar num homem belo e sedutor. O que não batia certo, na opinião de Sibylle, com o personagem de escritor-filósofo.

    Consulta o programa. Belamant faz a sua intervenção às dez, logo após o quarto de hora da sessão de abertura. Esta ainda não começou e já são nove e cinquenta. Várias pessoas agitam-se entre o palco e a primeira fila, com o telemóvel colado junto à orelha. Levantam-se, sentam-se, uma assistente passa e deixa garrafas de água e copos em cima da mesa. Sentem-se ondas de nervosismo que tornam o ambiente na sala cada vez mais elétrico. Por volta das dez e cinco, uma mulher sobe ao palco e, inclinando-se para o microfone, anuncia o atraso imprevisto do Senhor Narciso Belamant. O programa será um pouco alterado: o Professor Hans Krüger, da Universidade de Potsdam, fará a primeira intervenção.

    Sibylle já não aguenta a sua vizinha invasiva. A sexagenária acaba de dar início a um longo monólogo acerca de Marx, das derivas do comunismo para o totalitarismo estalinista, de como Trotsky poderia ter salvado a Rússia e até mesmo a Europa toda... Apesar da preocupação de não a vexar, Sibylle acaba por se desculpar com uma ida à casa de banho. Levanta-se precipitadamente, fazendo cair metade do conteúdo da sua mala entre os assentos. Amaldiçoando aquele dia que já tinha começado muito mal, recupera os seus pertences, percorre a fila o mais discretamente possível e sai da sala quase a correr. De qualquer forma, o tal Krüger, que se lançou numa grande demonstração teórica, é aborrecido de morrer e ela convence-se de que não perde grande coisa.

    Ao entrar na casa de banho das senhoras, dá de caras com a grande morena do cigarro que conhecera há momentos na cervejaria. Fica tão surpreendida que deixa novamente cair a sua mala cujo conteúdo volta a espelhar-se no azulejo branco, uma vez que ainda não a tinha fechado. Sibylle solta um palavrão, em voz alta, desta vez. Ao ver a mulher virar-se para ela, cora.

    — Precisa de ajuda? – inquire a bela morena com uma voz amável.

    — Hum... não, está tudo bem, obrigada... sou tão distraída – diz como que para se desculpar.

    — Está a assistir à conferência?

    — Sim... e a senhora?

    — Mais ou menos. Na verdade, vim para ver o Narciso. Narciso Belamant... sou irmã dele. Aliás, estou admirada por ele estar atrasado. Não faz parte dos seus hábitos.

    — Sim, é verdade, ele costuma ser pontual habitualmente...

    — Ah? Conhece-o?

    — Não, não! Enfim, não pessoalmente – responde Sibylle. – Acompanho o que ele faz, a sua carreira... na verdade, eu também escrevo... enfim, publiquei uma novela por enquanto. Não estou à espera de editar um best-seller, mas pronto... queria tornar o seu irmão na personagem principal do meu próximo livro. Eu li tudo o que ele escreveu e tudo o que foi escrito sobre ele!

    Arrepende-se imediatamente daquelas palavras infantis e ingénuas. Pareceu-lhe ver escárnio benevolente nos olhos verdes da sua interlocutora.

    — Interessante, muito interessante... A ideia vai agradar-lhe, tenho a certeza! Chamo-me Hélène – diz a mulher, estendendo-lhe a sua mão comprida.

    — Muito gosto, eu... eu chamo-me Sibylle... Sibylle Marceau.

    — Como o mimo? – pergunta Hélène, levantando uma sobrancelha divertida.

    — Como o mimo – confirma Sibylle, que já ouvira aquele comentário centenas de vezes.

    — Estou sentada na primeira fila, à frente do Narciso. Não está ninguém ao meu lado. Pode vir, se quiser. Poderemos conhecermo-nos melhor e apresento-lhe o Narciso no intervalo do almoço. Poderá falar-lhe do seu projeto.

    Sibylle fica tão surpreendida que permanece uns instantes sem responder, olhando para o reflexo de Hélène no espelho. Depois, pensa na sua vizinha de lugar e conclui que aquela proposta é bastante oportuna.

    — Sim... sim... claro, com muito gosto. É muito simpático da sua parte – acaba por articular.

    — Muito bem! Então, até já.

    Hélène Belamant sai num movimento gracioso, deixando atrás de si um perfume subtil e voluptuoso. Trata-se certamente de um perfume bastante caro, da Guerlain ou da Chanel. Sibylle deleita-se alguns instantes, ainda sob o charme daquele estranho encontro.

    ***

    Narciso Belamant nunca chegara, ninguém sabia onde estava e os outros intervenientes não souberam reter a atenção dos seus auditores, vindos principalmente por Belamant. Por volta das onze e meia, Sibylle e Hélène concordaram com um sinal da cabeça em abandonar juntas o anfiteatro. Chegadas à rua, Hélène, por várias vezes, tentara contactar Narciso no seu telemóvel,

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