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Uma espécie de mulher
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E-book173 páginas2 horas

Uma espécie de mulher

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Sobre este e-book

Londres. Um homem encontra uma mulher. Mas esta não é uma história de amor. Não uma daquelas tradicionais, pelo menos.

Ela tem os cabelos cor-petróleo, é um pouco extravagante, tagarela, invasiva. Ele, um jovem e brilhante jornalista aprisionado em um trabalho pouco gratificante. Juntos, jogam-se na redescoberta da cidade deles, transformando cada encontro em uma pequena aventura, aprendendo a se conhecerem e fantasiando sobre o futuro.

Mas, uma manhã, ela desaparece. Não tem um bilhete, uma explicação. Cada objeto ligado a ela parece ter evaporado magicamente. Reencontrá-la, para ele, torna-se uma obsessão que o levará a duvidar de si mesmo, a afrontar verdades incômodas, a reavaliar todas as suas escolhas, as relações com outros e a inteira concepção que sempre teve de si e do seu mundo.

Quem realmente Leila é? O quanto é real?

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento6 de abr. de 2019
ISBN9781547581849
Uma espécie de mulher

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    Uma espécie de mulher - Verdiana Nobile

    01

    Pela quarta vez, a voz gravada da companhia telefônica informa que o número discado não existe. Número que conheço de cor e que, apesar disto, continuo verificando obsessivamente na minha agenda para conferir se não digitei errado na pressa. Número que, até ontem à noite, estava entre as discagens rápidas do meu celular, mas que esta manhã parece ter se apagado da agenda, sem deixar rastros. Junto com ele, sumiram todas as mensagens e chamadas, de um golpe só. Conformo-me com a ideia de ter que trocar de celular e tento começar este dia.

    Tento ser lento, porque é segunda-feira e a luz que sai das janelas semiabertas tem uma aparência meio cinzenta que pede que se fique fechado dentro de casa. Não se pode esperar nada de bom de um dia assim. Vou à cozinha, envolto em um roupão desbotado de anos atrás, quando ainda permitia a minha mãe comprar alguma coisa cara, feia e inútil, sem lhe dizer claramente o quanto achava cara, feia e inútil. E, depois, ao menos este roupão, não é tão inútil, já que se revelou ser um discreto escudo contra o frio impossível desta casa, mas teria dificuldade em admitir diante da minha mãe.

    Tomo café da manhã em pé, com calma, na penumbra da cozinha recém desperta, com a nítida sensação de que alguma coisa não está certa. Tem uma vaga campainha de um alarme que estimula os pensamentos, fazendo o suco de laranja ficar amarelado. Olho em volta e, de repente, o vejo. Aquele quadrado branco sobre a parede ao lado da geladeira, liso, espectral, sem nem um rastro de furo deixado pelo prego. Aproximo-me para inspecionar melhor a área e, por impulso, escapa-me um: Mas o que...?

    * * *

    A lista possui duas páginas, mas, talvez, fiz a letra grande demais. Está imóvel em cima da cama ainda desarrumada e olha-me desafiadoramente, com a certeza de não estar errada.

    O quadro desaparecido da cozinha desencadeou tudo. Estão faltando muitas coisas aqui dentro. Desapareceram os vestidos, lâmpadas, livros (muitos livros), um porta-chaves, todas as fotografias recentes e sabe-se mais o quê.

    Poderia pedir ajuda, denunciar o ocorrido, mas não acho que alguém tenha entrado em casa, pelo contrário, parece que saiu.

    Todas as coisas sumidas, incluídas as que subitamente desapareceram do meu celular, têm ligação com Leila.

    02

    Leila tem 25 anos, mas não tem muita certeza disso. Às vezes, acha que tem 40 anos, certos dias sente fortemente ter só 5 e, frequentemente, eu poderia jurar que ela tem 16. Depende do momento, do quarto em que acorda (que quase sempre não é nem um quarto de verdade), da quantidade de pessoas presente no cômodo e de um monte de outros fatores desconhecidos para mim.

    Encontrei-a pela primeira vez em um bar, na noite de São Patrício, mas não a notei imediatamente. Tradicionalmente, a clientela presente no salão era uma explosão de verde fedida a álcool.

    Eu incluso.

    Foi um dos meus companheiros de bebida que atraiu a minha atenção para ela. Estávamos sentados no balcão – um lugar horrível – constantemente empurrados pelos clientes que pediam a milésima rodada de cerveja ao bartender atarefado. Entre a confusão geral, uma conversa vinda do banco ao meu lado conseguiu monopolizar a minha atenção.

    –Pintou o cabelo verde de propósito para hoje?

    –Não é verde, é azul petróleo.

    –Bem, então não vale, não tem nada verde, não seguiu a tradição!

    –Meus olhos são verdes!

    –Definitivamente...olha, você é mesmo brilhante então!

    Foi a sua última resposta que me convenceu definitivamente a virar-me para dar um rosto àquela voz.

    –Não sou brilhante, sou linda!

    Disse ofendida, como se uma coisa pudesse excluir a outra, depois se apoiou no balcão e acrescentou, sorrindo: 

    –E já que sou linda, vocês me ofereceram a bebida! 

    Não era linda, bonita sim, fascinante sem dúvidas, interessante, mas não linda. Porém, depois de três cervejas, dois rums e um Irish Coffe (que ela deixou intacto), não saberia defini-la de outro modo.

    Linda.

    Linda enquanto falava de um certo livro que todos deveriam ler uma vez na vida (e que até hoje não li).

    Linda enquanto o lugar esvaziava e meus amigos iam embora esquecendo-se a si mesmos.

    Linda enquanto me oferecia uma carona na bicicleta porque moro aqui perto, você bebeu, não quer dirigir, né?

    Linda enquanto tirava os sapatos e lançava-os acima da sua cabeça exclamando Ok, ali com o dedo apontado para um grande tapete de pelo comprido, amassado em um ponto pelo peso da pisada.

    Linda enquanto me ajudava a estender-me sobre aquele tapete e se aproximava sorrindo de modo lânguido.

    Linda enquanto a observava a poucos centímetros de mim, um momento antes da escuridão.

    * * *

    Abri os olhos com muita dificuldade, como se alguém tivesse jogado colheradas de mel dentro deles fazendo com que ficassem melosos. A boca seca e a testa pesada, forço-me a levantar apesar da necessidade interna de dormir, pelo menos, mais dois dias.

    Deveria beber água. Uma garrafa, possivelmente. E engolir uma ou duas aspirinas, antes que meu cérebro explodisse, sujando o tapete peludo sobre qual, provavelmente, dormi.

    Comecei a questionar-me de quem era aquela casa, tentando reconstruir a lembrança despedaçada da noite anterior, com poucos resultados. O aquecimento parecia estar no máximo e isto era um alívio porque vestia somente a roupa interior e estava congelando lá fora.

    Identifiquei uma pilha de objetos familiares colocados desordenadamente sobre uma mesinha e reconheci, entre eles, o meu celular. Alcancei-o arrastando as pernas doloridas para verificar a hora e o dia. Eram duas da tarde de um frio domingo de março e não tinha a mínima ideia de onde estava.

    Ela apareceu do nada na porta, na ponta dos pés, cortando minha confusão com um sorriso um pouco incerto. Olhamos um ao outro por vários segundos, em silêncio, como se estivesse avaliando o momento, depois ela sorriu de novo e deixou sair uma voz pacata, suave que não me lembrava.

    –Leila...caso tenha esquecido.

    Murmurei alguma coisa incompreensível, indeciso sobre qual motivo desculpar-me primeiro. Desculpe-me se estou meio nu no seu tapete? Desculpe-me se cheiro vagamente a vômito? Desculpe se não lembro quase nada de ontem à noite? No fim, optei por um Desculpa geral, de cabeça baixa e ela me entregou uma calça de ginástica e uma blusa grande com o rosto do Mickey Mouse bem grande no centro.

    * * *

    Leila tem as mãos grandes e ama usa-las para representar aquilo que está falando. Pode me contar cada coisa sobre si e punir-me com silêncios afiados se não sei acompanha-la, escolhendo palavras justas para assegura-la, para jurar que a entendi. Veste muito branco e seu modo de subitamente deslocar-se de um canto ao outro do cômodo a faz parecer espectral, fantasma muito vivo de uma moça fugaz.

    Prepara litros e litros de café, todo dia, mas nunca bebe porque a deixa nervosa. Gosto do cheiro, explicou-me, sorrindo, naquela primeira manhã. Enche xícaras e copos, pondo-os ao redor do cômodo como se fossem incensos, deixando-os esfriar devagar.

    Disse-me que podia beber uma, se quisesse, fazendo um gesto amplo com os braços, convidando-me a escolher uma xícara. Endireitamo-nos ao lado de uma pequena janela golpeada com granizos, comendo pão com manteiga sobre um jogo americano de plástico de bolinhas, conversando sobre o tempo, no começo, e depois sobre nosso encontro, recém desfeito do embaraço no último gole do café.

    –E fizemos...? –pergunto fazendo a pergunta ter um tom que me parece elegante naquele momento.

    –Ah, não, não! –ela apressou-se a responder engolindo um pedaço. –Eu queria, mas você desabou, estava muito bêbado! E, durante a noite, levantou-se para vomitar algumas vezes. Na primeira vez, não conseguiu chegar a tempo ao banheiro, por isto o despi. Aliás, estão na máquina, vou devolver assim que estiverem secas. –explicou.

    –Que boa impressão dei...merda, estou envergonhando, acredite!

    –Talvez terá uma outra ocasião, quem sabe...– Ela disse com ar esperançoso.

    O café da manhã tornou-se, inexplicavelmente, em um jantar e o jantar tornou-se em uma maratona de episódios de Assassinato por escrito (para mim, era óbvio quem era o assassino, ela retrucava, pontualmente que Só porque os indícios apontam para ele, não quer dizer que seja capaz de matar, quero dar-lhe um voto de confiança), enquanto minhas roupas secavam esticadas ao lado do radiador. Despedimo-nos tarde da noite com dois beijos apressados na bochecha que me deixaram um pouco perturbado.

    Não é que esperava chegar logo aos finalmentes, mas considerando suas insinuações à noite anterior, esperava, ao menos, um abraço sem compromisso.

    Em vez, nada. Depois de ter me acolhido na sua casa com a intimidade de um namorado antigo, apoiando os pés no meu colo enquanto assistíamos TV, Leila me cortou com uma timidez súbita que não vi o dia todo, entregando-me um guarda-chuva e um cartão de visitas, que não era seu, rabiscado com seu número de telefone a caneta.

    A chuva de granizo deixou espaço em uma área limpa e afiada, difícil de atravessar sem encolher-se no casaco apressando o passo.

    Minha vespa estava ali, a poucos metros do bar, pronta para me levar de volta a vida de sempre, onde nunca tinha ouvido falar na cor petróleo.

    * * *

    O dia seguinte revelou-se mais frio e nublado do que foi anunciado na previsão da BBC que, toda manhã, faz-me companhia à mesa durante o café da manhã.

    E quando digo café da manhã, quero dizer dois biscoitos velhos molhados em meia xícara de Earl Grey.

    E quando digo mesa, quero dizer uma pilha de caixas ainda fechadas que não decidi esvaziar ou jogar fora.

    Transferi-me para este apartamento minúsculo há seis meses, mas continuava a ter o aspecto de uma fase provisória do meu eterno vaguear. Especialmente, por culpa das caixas. Mas, talvez, era também, um pouco, por culpa das paredes nuas, do sofá-cama que, frequentemente, nem me importava de abrir à noite, do eco assustador que se podia escutar além da porta da geladeira. E de outras caixas.

    Sim, as caixas eram, definitivamente, o problema mais evidente.

    Naqueles meses de nova vida de adulto (que Os adultos não têm colegas de quarto, recordava-me meu pai) consegui organizar – de maneira simples – só o pequeno armário embutido que, situado entre a cozinha e o banheiro, tinha a função dupla de guarda-roupa e armário. Encontrar um apartamento que, na ordem: fosse situado em uma zona não esquecida por Deus e pelos homens; tivesse suficiente espaço para mim ou os meus móveis (coisa que é melhor especificar a alguns agentes imobiliários a julgar pela minha experiência pessoal) e que não custasse o equivalente ao PIB da Bélgica. Em Londres, realmente é uma missão para poucos.

    Entretanto, depois de semanas de procura, cheias de visitas a casas que chamar de surreais seria um grande eufemismo, consegui um estúdio respeitoso. Com só um forno a gás como aquecimento, quase todo sem móveis e com um princípio de mofo no teto do banheiro. Mas sem o horroroso carpete. Então, repito, bem respeitoso. Ou melhor, praticamente o Santo Grau na Inglaterra.

    Tudo isso – e aqui colocaria um rufar de tambores –, nada mais nada menos, a dois passos, literalmente dois, da estação Clapham Junction cujo o slogan diz: A estação da ferrovia mais ocupada da Bretanha[1], para dizer.

    Tinha um lugar só para mim e não podia reclamar.

    Joguei-me, ainda sonolento, na multidão de oito da manhã, esquivando no piloto automático das centenas de pessoas que corriam para todas as direções no saguão

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