Querer sem medida
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Pré-visualização do livro
Querer sem medida - Gilmar Marcílio
Créditos
© Copyright 2012 Gilmar Marcílio
Editor
Gustavo Guertler
Revisão
Marcele Brusa Maciel
Foto capa
Getty Images Brasil
Capa e projeto gráfico
Celso Orlandin Jr.
Produção para ebook
Fábrica de Pixel
ISBN 978-85-8174-106-2
[2012]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA BELAS-LETRAS LTDA.
Rua Coronel Camisão, 167
Cep: 95020-420 – Caxias do Sul – RS
Fone: (54) 3025.3888 – www.belasletras.com.br
Dedicatória
Para Beatriz Balen Susin –
que me ensina um roteiro para a alma
O outro nascimento
Desde a mais tenra infância, pais e mães desdobram-se para nos ensinar o valor do ato de guardar. Gavetas e armários cheios, seguimos nós vida afora, certos de estarmos protegidos contra todas as vicissitudes. Somos seres que acumulam. É essa a nossa trapaça com o tempo: se, fugazmente, ele escorre entre nossas mãos, tentamos então uma barganha, enchendo estas mesmas mãos e a casa de objetos tantas vezes incômodos, tantas vezes repletos de pura afetividade. Não é do homem despojar-se, deixando de lado os seus pertencimentos.
Consumimos os dias construindo largas pilhas, como que a dizer a nós mesmos que essas provisões haverão de nos salvar de um futuro incerto. Só que não há porvir sem o confronto com a luminosidade de encontrar-se liberto de tudo, longe do peso da matéria e de sua gravidade.
Mesmo presos a tantas algemas, caminhamos ligeiros, com a certeza de que junto à despensa cheia encontra-se nosso atestado de imortalidade. Apenas adiamos o confronto, o embate final, a partilha de nossos bens. Que são sempre um empréstimo involuntário, um exercício de gratidão ao efêmero, ao que finda. A morte de um ser amado não significa apenas o esgotamento de um rosto, suas ansiedades e euforias. Com ele desaparece um mundo de significação.
Uma colcha sobre a cama, um velho álbum de fotos, bibelôs espalhados pela sala, livros e roupas que não se podem guardar na concha das mãos. O que eles são para nós senão um resquício pálido que se transmutava em amor, em posse deliberada que tantas vezes se confunde com a paixão? Já nas Escrituras há a advertência: Tempo de plantar, tempo de colher.
Enquanto as forças físicas são nossas aliadas, é justo desejarmos o nosso quinhão, arar a terra para um inverno que se anuncia.
Só não é prudente deixar de habitar a quietude que provém do descanso, do olhar que conhece a mansidão contemplando o vazio. Acariciar, aqui e acolá, um objeto que desperta em nós o sublime, o sentido da beleza, é uma tarefa que não rivaliza em nobreza com absolutamente nada.
Nosso pecado se manifesta quando, ao pressentirmos o crepúsculo, procuramos dentro de nós uma, dez ou vinte chaves para pôr em cofre o que é volátil, o que se desmancha no fluir das horas. A avareza torna o homem rijo. Atrofia dentro dele o sentido da música, da liberdade. Não sei ao certo o que se deve prescrever nestes casos. Mas há em mim uma intuição, um pressentimento que não machuca, algo que diz que é preciso aprender a se despedir. E que estes adeuses não venham encharcados de choro. Que não se lamente a sina de cada um. A alma, essa espécie translúcida de matéria, não há de ser unicamente obra divina. Precisamos treinar os músculos para torná-los rijos e fortes; igual destino deverá ter ela. É por isso que a velhice não deve nos surpreender com tantas tarefas por cumprir. As semeaduras pertencem aos primeiros anos, quando o acúmulo ainda não recebeu o batismo do cansaço.
Um coração cambiante não conhece limites ao conjugar o verbo ter. Ter é querer ter sempre mais. Como uma peste da qual não nos desvencilhamos, cobrimos uma montanha com outra montanha. Alguém conhece prisão maior do que aquela em que se encerram os homens de muitas posses? Há, sim, as maravilhas que o conforto nos dá. As mil faces de cristal em que se converte o dinheiro. Mas há, também, o medo, o horror de perder. Ser dono de algo ou de alguém é como ser bafejado por um poder que parece não ter fim. Só que esse engano é feito de sobressaltos, de insônias, nessa arquitetura de pedra que se chama riqueza. O usufruto é desejo natural dos seres. Poucos cortejam o ascetismo, a nudez, a entrega. O que nos faz gravitar ao redor dessa doença sutil é manter o olhar lubrificado pela avidez. O adágio popular nos alerta para a inexistência de gavetas no caixão. Tudo será deixado aqui. Que não o façamos com demasiada tristeza. Enquanto houver sol, seja nossa mão a tesoura que ceifa e colhe. Mas seja também aquela que espalha, cujos dedos se desvinculem do ato de somar, engendrando voos que não desaparecem com o fim da consciência, anunciando um outro e diverso nascimento.
"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la,
fitá-la, mirá-la por
admirá-la, iluminá-la ou ser por
ela iluminado.
Por isso melhor se guarda o voo
de um pássaro
Do que um pássaro sem voos."
(Antônio Cícero)
A arte de perder
A plenitude emocional da vida está ligada à capacidade de saber perder. Para isso, somos treinados desde a infância: um brinquedo que se quebra, amigos que vão morar em outro lugar, um gato ou um cão de estimação que morre. O reconhecimento afetivo se dá, geralmente, quando nos afastamos. O olhar e as mãos acariciam, sem perceber que são atitudes provisórias diante de perspectivas amorosas que se deformam para gerar caminhos diferentes. As perdas deixam rastros que servem como aporte para a construção de sentimentos mais maduros, quando há a constatação da separação.
O miolo do tempo não comporta permanência. Seus contornos se desgastam, gerando novas situações para que a vida cumpra seus ciclos. Perder, na verdade, é o nome diverso que se dá à transformação. Quando os olhos, famintos de horizonte, buscam reconstruir-se na dialética de ganhos e diluições, acontece o fenômeno da percepção do novo. Este novo que nos salva do cinza informe que seria existir, caso não perdêssemos. Afastar-se é uma necessidade de sobrevivência. Um impulso para reconhecer as fronteiras que nos ligam ao outro. A infância é solitária porque é nela que se inicia o primeiro estágio da separação. No futuro, o desejo de unidade permanente irá caracterizar os amantes, os santos, os psicóticos, os viciados em drogas e os bebês.
Nosso narcisismo faz com que queiramos agregar tudo que amamos. Mas este envolvimento estático com a totalidade não pode subsistir. Há um desgaste inerente às coisas e aos seres. A tarefa que nos cabe é caminhar entre eles, experimentando certezas que diminuam a solidão. Porém, a consciência da brevidade da vida faz com que desejemos nos relacionar permanentemente com o que supomos nosso.
A poetisa americana Elizabeth Bishop disse: Perca algo a cada dia. Aceite o susto / de perder chaves e a hora passada embalde. / A arte de perder não tarda aprender.
Precisamos nos acostumar a existir sem determinadas presenças. Quanto mais elas se afastam, mais enchem o nosso viver. A autonomia acontece no momento em que nos resignamos com a ambivalência dos papéis que os outros desempenham e assumimos o abandono. Quando conseguimos construir um ambiente interior para sustentar as lembranças e as perdas, começamos a medir a nossa capacidade de sobreviver dentro da liberdade e do desapego.
Sentir
Em seus Diários, a escritora neozelandesa Katherine Mansfield escreveu: Quando passo por uma banca de maçãs, paro e fico olhando até sentir como se eu própria estivesse me transformando também numa delas. Ou então que, por um milagre, a qualquer momento pudesse sair de mim uma maçã, assim como um mágico faz sair um ovo...
Lembrei desse belo fragmento a propósito de um fato acontecido há poucas horas. Sentado no sofá da sala, fui surpreendido pela visita de um beija-flor. Sentindo-se imobilizado entre a cortina e a vidraça, ele se debate para tentar escapar dessa inusitada prisão. Coloco minhas mãos em concha ao redor de seu corpo e o aninho entre os dedos. Súbito, tenho um estremecimento. Estou sentindo em mim uma outra forma de vida. Não percebendo, mas sentindo. É uma dessas experiências quase transcendentais, em que a individualidade cede seu lugar a uma compreensão mais sutil do próprio ato de viver.
Conseguir fazer com que desaparecesse, mesmo que por um breve instante, a espessa parede que me separa do beija-flor, desperta em mim a consciência da realidade do outro. Daquilo que não sou e, no entanto, faz parte de algo mais profundo, misterioso. Transformar-me no objeto olhado, como num processo de alquimia, me priva do egoísmo, da cegueira que tantas vezes se transmuta em violência, em posse arrogante do que não nos pertence. Para que possa entender minimamente o que se passa ao meu redor, é preciso que eu seja o pássaro, a pedra, o cão. Ou mesmo essa folha que os meus sapatos esmagam depois de um dia de esgotamento. Como pretendo alçar-me até quem sofre ou se regozija se permaneço reduzido a uma experiência tão limitadora quanto é o próprio Eu? Tenho a impressão de que a linguagem não dá conta dessa sensação que não obedece a nenhum código da lógica. Ela simplesmente vai se fazendo, como um riacho que não pode ser represado.
Quando encontramos um animal ferido, uma pessoa que em silêncio nos estende o olhar pedindo ajuda, não podemos compreendê-la senão ultrapassando o que está dentro da nossa mente, que fabrica uma realidade estreita, produto da nossa deficiência em estar dentro do outro. É o que os grandes criadores, poetas, pintores, músicos tentam nos dizer quando estão em pleno transe artístico. Eles não estão construindo uma obra. Eles são a obra, de dentro para fora. Como alguém que começasse