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Para-Heróis
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E-book226 páginas2 horas

Para-Heróis

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Sobre este e-book

Esteja pronto para se surpreender com o que vai ler neste livro. É a vida que está ao seu lado e talvez você não veja. Não precisa nem gostar de esporte, muito menos do esporte praticado por pessoas com muito mais dificuldades do que as demais, como é o caso. Basta gostar de boas histórias, como estas, contadas pelo olhar sensível e comovente da repórter Joanna de Assis. As histórias de dez pessoas especiais com um sonho em comum: tornarem-se campeões paraolímpicos. Alguns já nasceram com uma deficiência, outros a encontraram mais tarde, mas todos eles descobriram que, mesmo num corpo limitado, o que faz a diferença na vida de um herói é o coração.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de set. de 2014
ISBN9788581741772
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    Para-Heróis - Joanna de Assis

    O SUPER-HOMEM ALAN

    O SUPER-HOMEM ALAN

    Correr é uma habilidade primária. O instinto que guia o homem para a sobrevivência. Essa inteligência inata é também um daqueles momentos de epifania do corpo humano.

    Tão natural, tão cedo, que ninguém se lembra do dia exato em que aprendeu a dar um passo em velocidade. Alan Fonteles é como outra criança qualquer. Ele também não tem essa memória. Mas a história ele sabe contar como se recordasse cada momento, porque caminhar, para ele, tem um significado muito diferente.

    Ouviu da família o relato emocionado uma porção de vezes. Foi difícil alcançar o outro lado da sala. O trajeto entre a mesinha do consultório e o armário valia um picolé de limão. Suado. Valia a prova de uma vida toda. Lindo. Fez quatro pessoas chorarem. Alan andou e correu quase ao mesmo tempo, assim mesmo, sem intervalo. Descobriu tudo ali de uma só vez a poucos dias de completar dois anos de idade. Andou e correu sem as próprias pernas. Andou e correu com duas próteses de madeira.

    Alan é o velocista paralímpico mais rápido do mundo. O cara que desbancou o maior ídolo que a Paralimpíada já teve – Oscar Pistorius, o sul-africano que se consagrou como o primeiro atleta a disputar jogos paralímpicos e olímpicos e depois de 2012 manchou sua imagem por ser acusado de assassinar a namorada. Alan é o corredor que mostrou com seus números fantásticos que o esporte adaptado pode até deixar a Olimpíada para trás em termos de performance. Mas nem sempre foi assim.

    Dona Cláudia não entendia bem o berro do filho recém-nascido. Em Canaã dos Carajás, cidadezinha do interior do Pará, havia várias crianças com o mesmo resmungo. Dizia o doutor que era virose, nada para se preocupar. Dava vômito e diarreia. Dava angústia. Passaria rápido, prometeu o médico, mas não passou. Com quinze dias de vida, o choro virou grito e os pés ficaram negros. Havia bolhas pelo corpo. Havia algo de muito errado com aquele bebê.

    Canaã dos Carajás não tinha hospital. Era 1992, e a cidade só virou cidade mesmo em 1994, porque antes disso era um assentamento agrícola que pertencia a outro munícipio, Parauapebas. Uma região cheia de conflitos de posse, com mais de 1.500 famílias sem-terra. Distante 760 quilômetros da capital Belém.

    A família correu para o hospital público mais próximo, que ficava em Parauapebas mesmo. Assim que recebeu o atendimento, o plantonista avisou que não havia condições de tratá-lo ali. Foi encaminhado para Marabá. Cento e sessenta quilômetros de estrada. Duas horas e vinte e um minutos de viagem. Cláudia não podia seguir, porque nem documento tinha, e apesar dos vinte anos, parecia uma adolescente. A sogra foi quem conduziu o menino, descendo com a pressa do desespero a Serra dos Carajás, a grande cordilheira do Estado do Pará.

    Em Marabá, os médicos reagiram da mesma maneira. Não sabiam como salvar Alan Fonteles. Sugeriram um hospital em Belém, mas teriam de correr ainda mais. Se fossem de ônibus, com a distância de 441 km, a viagem duraria oito horas e ele não iria sobreviver. A operação de guerra começou a ser desenhada graças a uma famosa cantora sertaneja.

    Roberta Miranda estava na cidade para um show. Ela era um fenômeno nacional na década de noventa, com músicas românticas com um certo tom de brega. Começou a fazer sucesso quando o já consagrado Jair Rodrigues gravou uma de suas composições, A majestade – O sabiá. O último voo da Varig naquele dia havia sido fretado por sua trupe.

    Com uma vaquinha dos cunhados e primos, a família de Alan comprou a passagem aérea. Ficou decidido que a avó paterna o levaria. Para embarcar, a tripulação impôs uma condição – se Alan morresse no avião, dona Diva não poderia sequer chorar. Teria de seguir viagem calada, e quando chegasse, enrolaria o corpo na coberta para fingir que o menino ainda estava vivo. Um trato cruel, mas que foi aceito na hora.

    As aeromoças sabiam da situação. Observavam caladas aquela avó que mal se mexia na poltrona. Dona Diva passou o tempo todo de olhos fechados, ao lado de dois músicos da banda de Roberta, que não entendiam a tensão que havia naquela viagem. Uma das comissárias lhe ofereceu água. Ela nem reagiu. Seguiu apertando o peito de Alan. Foram 39 minutos de voo, 2.340 segundos de agonia, orações e promessas.

    Alan sobreviveu.

    Em Belém, mais uma ronda por vários pronto-socorros. Ninguém aceitava o menino. Todos repetiam que não sabiam o que fazer. A respiração estava fraca, Alan mal reagia. O único hospital que o recebeu foi o Universitário João de Barros Barreto, que enfim explicou o diagnóstico – Alan tinha uma infecção intestinal, e já apresentava sinais de septicemia, ou seja, uma ruptura do intestino havia contaminado o sangue.

    Dona Cláudia e Seu Almir ainda nem tinham começado a viagem de ônibus para Belém. Um dos cunhados, que trabalhava na Vale do Rio Doce, e estava com Alan no hospital, apressou o casal do jeito que podia, através de um telegrama. Contou que eles precisavam assinar um termo de responsabilidade para autorizar um procedimento de emergência.

    No balanço daquele ônibus velho, os pais seguiram até a Capital. Não comeram nada durante o longo trajeto, dinheiro não tinham. Chegaram ao hospital secos de sede, secos de preocupação. Pediram para ver o filho e receberam o choque de uma imagem. Tomado pela febre, Alan foi colocado dentro de uma caixa de gelo, no meio da enfermaria. O corpo roxo, quase sem vida, inerte, com a pele desbotada. Seu Almir viu o filho ali como se fosse um peixe morto, jogado à sorte. Segurava suas mãozinhas frias. Rezava baixinho para Nossa Senhora de Nazaré.

    Era preciso baixar a temperatura do corpo para que fosse feita uma cirurgia radical. A infecção generalizada estava se alastrando muito rápido pelo corpo. Para conseguir salvá-lo, seria necessária a amputação das duas pernas, com um corte acima dos joelhos. O hospital não tinha recursos, nem um cirurgião experiente, mas naquele dia havia um doutor de São Paulo. Só iria passar algumas horas no prédio, mas foi convencido pelos enfermeiros a fazer a operação. Era um bebê de 21 dias. Não tinha como dizer não.

    A cirurgia durou cinco horas. Parecia muito mais. Dias, talvez meses. O tempo na realidade parou. Olhar para o relógio velho e com o vidro rachado pela dureza da vida só aumentava a ansiedade. Cinco horas. Depois veio a sensação oposta. A de que os minutos passaram rápido. O médico apareceu na sala de espera. Sorriu. Contou que o bebê sobreviveu e que seus joelhos foram salvos. Pensar em perna e joelho naquele instante parecia confuso demais, mas esse detalhe era muito importante. Com a articulação íntegra, a reabilitação e a mobilidade seriam muito mais fáceis no futuro.

    Essa era visão do médico, por isso o sorriso. Mas para um pai e uma mãe, saber que o filho recém-nascido perdeu as duas pernas era receber uma péssima notícia. Entretanto, Alan estava vivo, e isso era o motivo real da comemoração naquela sala apertada com apenas duas cadeiras de couro rasgadas. Em duas semanas ele deixaria o hospital e iria para casa se recuperar. Juntou enfermeiro, médico, copeiro, faxineiro. A história comoveu o hospital.

    Todos conheciam Alan, mas lá ele era chamando de RN – abreviação de recém-nascido. Lá vem o RN. O RN está melhorando, pai. Terminou a cirurgia do RN. Os pais estavam felizes, mas ao mesmo tempo tentavam absorver a ideia de que o filho não tinha mais as pernas. Um choque tão grande que podia deixar alguém fraco da mente.

    Gente simples é diferente diante de problemas assim. São apegados a Deus e confiam em seus propósitos. Não lamentam as dificuldades, lutam. Gente simples pensa simples. O impossível eles aceitaram. O indispensável foi dispensado. E o intolerável foi suportado.

    A história se complicou justamente no dia em que Alan receberia alta. Seu Almir colocou sua melhor camisa para buscar o filho. Entrou de braço dado com dona Cláudia, sorrindo para todos os funcionários. Os pais do RN chegaram. Mas Alan não poderia ir para casa. Nos dias em que passou na Unidade de Terapia Intensiva, o bebê contraiu uma pneumonia gravíssima e, diante do seu quadro delicado, só um milagre o deixaria vivo.

    O médico era um japonês simpático, talvez de nome Walter, que acompanhou de perto todos os dias do RN. Tinha um choro leve e sincero ao contar para seu Almir a situação do bebê favorito do hospital. E ainda fez uma espécie de promessa. Alan tinha pouquíssimas chances de sobreviver, mas se contrariasse a má sorte, se conseguisse superar mais esse problema de saúde, era sinal de que teria uma missão muito importante para cumprir na vida. A verdade é que Alan havia morrido duas vezes, mas tinha a teimosia dos que precisavam viver.

    Barros Barreto não tinha berço térmico. Alan tinha febre alta e convulsões. O equipamento ajudaria a controlar os espasmos do corpo doente. Seu Almir correu pelos hospitais mais sofisticados da cidade explicando sua história, e ele nem conhecia Belém. Pedia informação para estranhos aleatórios nas ruas movimentadas e partia em disparada, muitas vezes a pé mesmo. Ouviu muitos nãos, alguns por falta de solidariedade pura. As pessoas pareciam sem ternura, surdas às dores alheias.

    Seu Almir seguiu a caminhada e ouviu um sim. O empréstimo ele conseguiu no Hospital Santa Terezinha. Prometeu devolver assim que o filho melhorasse. Na volta, parado na faixa de pedestres da avenida Presidente Vargas, esbarrou em um mendigo sem braços e sem pernas que lhe sorriu imediatamente. Ele desenhava paisagens com o pincel apoiado na boca. Seu Almir chorou alto. Viu que a esperança existe nos casos mais graves e mais tristes. Pensou no filho que não tinha mais as pernas, mas que havia sobrevivido com os braços intactos. Deu Graças a Deus.

    Aquele sem-teto feliz só poderia ser um sinal para mostrar que a realidade não era cruel. Duas esquinas à frente, passou por uma menina também sem braços e sem pernas chorando por trocados no farol. Eles estavam lá há tanto tempo, mas ninguém parecia notar. Vidas que ninguém vê. Talvez seu Almir também não os percebesse se não estivesse com o filho na cabeça. Mas naquela tarde ele enxergava todas as dores. Eram suas dores também.

    Pense no sofrimento. Primeiro ver um bebê de 21 dias perder as duas pernas, depois ficar entre a vida e a morte com um quadro grave de pneumonia. Dois drenos foram colocados no corpinho de Alan – um na altura do ombro direito, outro abaixo da costela do lado esquerdo. Tentavam tirar o que podiam daquele líquido amarelo venenoso que estava tomando seus pequenos pulmões. Até hoje dá para ver as cicatrizes, dois buracos no peito. Marcas da luta que começou bem cedo.

    Seu Almir e Dona Cláudia iam todos os dias ao hospital. No vigésimo dia, Alan melhorou. Melhorou muito. Abriu os olhos, voltou a ter cor. O pulmão estava limpo. O bebê podia ir para casa. Foi tão inesperado que nem mesmo os médicos acreditaram. Nem os pais. Não sabiam direito o que sentir, se vinha saliva na boca, um choro, um sorriso de agradecimento. Estava tudo misturado, chacoalhado no coração. Nem roupinha eles tinham levado. Alan deixou o hospital envolvido apenas num lençol. Foram os primeiros dois meses de vida batalhando, lutando para respirar, para não morrer. O bebê mais forte que Belém já viu.

    Alan surpreendeu médicos, curandeiros, pessoas comuns. Renovou a fé de muita gente, especialmente a dos pais, devotos de Nossa Senhora. Não dava para voltar para uma cidade que nem era bem cidade. Não dava para subir a Serra dos Carajás e viver na sombra. Era preciso cuidar de Alan. Por isso, eles precisavam ficar em Belém.

    No começo, a família humilde ajudou. Emprestou dinheiro, um canto para dormir. Seu Almir procurava emprego o dia todo. Fazias dezenas de bicos. Eletricista, instalador de linha telefônica, marceneiro, carpinteiro, limpava quintais, até ser contratado por uma empresa de gás. Com renda fixa, compraram uma casinha em Ananindeua, cidade vizinha a Belém. A vida começou a se organizar, mas eles não tinham ideia de como criariam uma criança sem as pernas. Não sabiam, mas também não se preocupavam, porque tinham certeza de que ele seria alguém importante. Fizeram uma promessa – Alan jamais teria ou se sentaria em uma cadeira de rodas.

    Alan não tinha sete meses quando uma vizinha indicou um fisioterapeuta. Bem, não era bem um fisioterapeuta, mas sim dois estudantes de Medicina que resolveram ajudar Alan em troca do trabalho de conclusão de curso. Dona Cláudia o levava para as consultas três vezes por semana. Aprendeu a fazer os exercícios e em casa mesmo movimentava os membros do filho de manhã, de tarde e de noite. Aos nove meses, usou a primeira prótese, de madeira, que está guardada até hoje em uma gaveta da casa de Ananindeua. Tinha uma cinta de couro envolvendo a cintura, como se fosse um suspensório, com um suporte para as coxas. Na altura do joelho, havia uma articulação de metal para auxiliar os movimentos.

    Faltava quinze dias para Alan completar dois anos. Dona Cláudia estava na sala de espera, aguardando mais uma sessão com ortopedistas. A prótese tinha sido trocada há poucos dias, e os exercícios de adaptação estavam ainda no início. Mas aconteceu uma surpresa. Alan pediu um picolé. Dona Cláudia brincou e mandou o garoto buscar. Naquele instante, ele se moveu com segurança, virou o tronco, e quase deu um passo. Todos se olharam.

    Alan usava duas chupetas, uma na mão, outra na boca. Para estimular ainda mais o menino que queria tomar sorvete, os médicos penduraram suas chupetas do lado de uma mesa, a uma altura que ele conseguiria apanhá-las, mas para tanto teria de andar. Sorvete e chupetas. Alan não tinha idade nem consciência para entender o que estava fazendo, mas da maneira mais natural do mundo caminhou sem dificuldade pelo consultório até alcançar seus tesouros infantis. Continuou pedindo o picolé de limão. Andou e correu minutos depois,

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