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Vou de Canoa: Um olhar sobre a cultura polinésia e outras histórias do mar
Vou de Canoa: Um olhar sobre a cultura polinésia e outras histórias do mar
Vou de Canoa: Um olhar sobre a cultura polinésia e outras histórias do mar
E-book311 páginas5 horas

Vou de Canoa: Um olhar sobre a cultura polinésia e outras histórias do mar

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Sobre este e-book

Quando se fala das grandes navegações da humanidade, logo se pensa no período que fervilhou os séculos XV e XVI com naus de madeira, bússolas e sextantes. Porém, muito antes deste tempo havia um povo que já realizava incríveis façanhas marítimas no maior oceano da Terra, então desconhecido pelos europeus. O Oceano Pacífico é o berço dos maiores navegadores da Antiguidade: o povo polinésio. A principal ferramenta desta aventura foi sua típica embarcação, que hoje ganha o mundo na forma de esporte. Com uma leitura ímpar da natureza, esses velejadores do período da pedra polida entregaram-se a heroicas travessias oceânicas. De onde vieram e como desenvolveram suas técnicas de navegação são temas deste livro, que também traz relatos de desbravadores europeus da era da expansão marítima, de expoentes navegadores da modernidade e de transformadoras emoções experimentadas em remadas nos dias de hoje, quando travessias assumem uma curiosa simbologia que nos permite atravessar de um estado de consciência a outro. Em Vou de canoa, Luiza Perin, fundadora de projeto homônimo, lança seu olhar sobre a cultura polinésia e resgata muitas destas histórias com sabor de mar.
IdiomaPortuguês
EditoraEdite
Data de lançamento14 de out. de 2020
ISBN9786586850024
Vou de Canoa: Um olhar sobre a cultura polinésia e outras histórias do mar

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    Vou de Canoa - Luiza Perin

    © 2020 Luiza Perin

    Todos os direitos reservados.

    Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada

    ou transmitida, total ou parcialmente, por quaisquer métodos ou processos, sem autorização do detentor do copyright.

    Copidesque

    Hebe Coimbra

    Preparação de texto

    BR75 | Clarisse Cintra e Silvia Rebello

    Revisão

    BR75 | Aline Canejo

    Capa, projeto gráfico e diagramação

    BR75

    Produção editorial

    BR75 | Clarisse Cintra e Silvia Rebello

    Produção de ebook

    BR75 | Telmo Braz

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Angélica Ilacqua CRB-8/7057

    P552v Perin, Luiza

    Vou de canoa/Luiza Perin. — Rio de Janeiro: Edite, 2020.

    Inclui caderno de fotos

    Bibliografia

    ISBN 978-65-86850-02-4

    1. Viagens 2. Canoas e canoagem 3. Navegações 4. Polinésia —História 5. Havaí — Viagens I. Título

    20-2640

    CDD 910

    Índices para catálogo sistemático:

    1. História

    Todos os esforços foram efetivados para a obtenção das autorizações de uso e cessão de direitos. A reprodução das obras se deu de acordo com o que permite a Lei 9.610/98. Aos fotografados, autores e editores que não conseguimos identificar ou contatar, pedimos que manifestem sua aquiescência e nos comprometemos a sanar este lapso em eventuais edições futuras.

    Agradecimentos

    Agradeço aos historiadores Vera Mangas e Wagner Cataldo, que trouxeram valiosas contribuições para esta obra, com participação essencial no processo de torná-la um material de impecável confiabilidade. A Vera Mangas, ainda, pelo incentivo que mobilizou os primeiros esforços desta publicação, junto de Fernanda Mello. Agradeço a Ronald Williams, Fábio Paiva, Simone Duarte, Mário Figueiredo, Marcelo Depardo e Eugênio Azevedo que contribuíram com informações muito importantes para que a história da chegada do esporte no Brasil fosse contada de forma fiel aos fatos. Agradeço àqueles que leram os primeiros formatos e rabiscaram anotações, que ajudaram com críticas, perguntas, ideias e, às vezes, até com desenhos de carinhas sorrindo ou chorando para sinalizar partes em que riram ou se emocionaram. São eles Roberto Marra, Marco Provetti, Antônio Chaer e Aniesse Aguiar. Aos autores de fotos exibidas nesta obra, como Bia Zanetti, Fábio Valongo, Fred Gomes, Johann Meya (@808photo.me), Leonardo Fonseca (arquivo O Fluminense), Livia Mello, Paula March, Theo Andrade, Otavia Menezes e Yago Dávila, e também a Hélio Valente e Gabi Ferreira por cederem imagens de suas criações artísticas, e ainda a todos que colaboraram com autorizações de uso de imagem ou citações ou ajudaram de alguma forma e, por falha, eu possa não ter mencionado aqui. À Hebe Coimbra, Ana Chafir, Felipe Machado e à equipe da editora Edite, sou grata pelo carinho e pelo profissionalismo. Agradeço a minha família, e em especial a Fabiano Faria, que esteve ao meu lado de forma incondicional na construção deste livro.

    As marcas da passagem de um barco são rapidamente apagadas pelas águas, mas o que ocorre no interior do canoísta é fixado para sempre.

    Simone Duarte

    Sumário

    Capa

    Folha de rosto

    Créditos

    Agradecimentos

    Introdução

    1. O nascimento de uma canoa

    A identidade de um barco

    Uma lembrança aos guerreiros do passado

    A revolução da ama

    Uma estrada pronta

    2. A indecifrável busca

    O início de tudo

    A arte da navegação polinésia

    Por que se vai longe?

    3. A conquista de um sonho

    A primeira vez

    Imua Guardiã

    Quando chega a hora da travessia

    4. Remadores de fibra

    Trabalho em equipe

    5. No coração do Havaí

    Corajosa

    A gratidão havaiana

    6. Ukuleles e abacaxis

    O espírito aloha

    Fora, haole

    7. O tal do orgulho havaiano

    Na ilha de O’ahu

    A canoa histórica

    O Canal dos Ossos

    8. Tocando o leme de um barco

    Uma misteriosa relação com o mar

    No mar congelado

    A ilha flutuante

    9. O remo caiçara

    No coração da mata

    A canoa polinésia no Brasil

    O renascimento da Lanakila

    10. No umbigo do mundo

    As revistas da borda amarela

    O rei Sol

    Tempos de crise

    Passos de gigante

    E o planeta...

    11. O infinito movimento do mar

    A energia das ondas

    O solene encontro da vida

    Sonhos

    O poder feminino

    Mulheres e travessias

    12. Final

    Uma rápida visita do meu ‘aumakua

    O sexto sentido

    Diário de bordo | Memórias de viagens e aventuras no mar

    Diário de bordo | Índice remissivo de fotos

    Glossário de palavras havaianas

    Bibliografia

    Introdução

    Para viver é preciso coragem. A narrativa deste livro parte de duas histórias que se misturam. Uma relata experiências da minha de vida e outra conta histórias da aventura marítima protagonizada por povos originários do sudeste asiático que percorreram a maior massa de água salgada do planeta, a bordo de rústicas embarcações propulsionadas a vela e a remo. Esses povos primitivos navegaram ao longo de séculos percorrendo todas as ilhas da Oceania até chegar ao arquipélago havaiano, no Norte do Oceano Pacífico, desenvolvendo nessa trajetória as raízes da cultura polinésia.

    A Polinésia é uma área geográfica definida por um triângulo imaginário cujos vértices são a Nova Zelândia, a Ilha de Páscoa e o Havaí. As populações de todas ilhas desse trilátero, desde um tempo muito distante, compartilham a mesma cultura, a mesma linguagem e a mesma tecnologia de navegação, além de cultivarem os mesmos tipos de plantas e de domesticarem os mesmos animais.

    A partir desse lugar, em algum tempo remoto, esse povo acumulou saberes e experiências e navegou munido de seu conhecimento, seu poder intuitivo e sua coragem para conquistar todas as últimas ilhas inabitadas do planeta, de Oeste a Leste e de Sul a Norte do Oceano Pacífico.

    Além da Polinésia — palavra que vem do grego e significa muitas ilhas —, existem outros dois grandes grupamentos de ilhas no Pacífico que foram nomeados pelos europeus de Melanésia e Micronésia — o nome do primeiro grupamento vem de melanina, a molécula do corpo humano responsável pela pigmentação da pele. A cor negra dos habitantes do extremo Oeste, de povos provenientes da Nova Guiné e adjacências, é uma característica étnica que os diferencia dos demais povos da região. O segundo grupamento recebeu o nome Micronésia pelo seu aspecto, por suas inúmeras pequenas ilhas.

    Nessas três regiões do Pacífico, seus povos viviam em sintonia com o mar e, em especial, aqueles que por fim ficaram conhecidos como polinésios aprenderam de maneira empírica a direcionar seus barcos para cada vez mais longe, seguindo os sinais da natureza que têm sempre muito a nos dizer, se prestarmos atenção a eles.

    Quando se fala em grandes navegações e colonizações da humanidade, tendemos a nos concentrar naquelas que ocorreram a partir da chegada de Colombo à América ao atravessar o Oceano Atlântico e nas consequentes invasões de terras por povos provenientes do Velho Mundo. No entanto, muito antes de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, ocorreram incríveis movimentações ultramarinas em um oceano até então desconhecido pelos europeus, as quais resultaram na dominação de terras por povos que se deslocavam além-mar, rumo a um oceano cravejado de ilhas virgens a serem conquistadas. Esses povos não tinham bússolas, não desenvolveram a escrita e não possuíam instrumentos de metal, entretanto, deram valiosos passos no desenvolvimento da arte da navegação e da tecnologia de embarcações e são considerados um dos maiores navegadores da Antiguidade. Quando os primeiros europeus enfim se aventuraram a atravessar o maior dos oceanos, descobriram com espanto que bem no meio dele existiam ilhas montanhosas e recifes de coral espalhados por vastas áreas e que a maioria delas já era habitada por povos que lá aportaram muito antes deles. Esses povos viviam em complexas sociedades hierarquizadas, inclusive com campos cultivados, e falavam uma língua que ninguém conhecia. Isso deixou os europeus, que se diziam descobridores, bastante perplexos: de onde vieram estes povos? Como chegaram até lá? Que técnicas de navegação foram estas que desenvolveram?

    Este livro fala de incríveis façanhas no mar e de grandes epopeias de povos navegantes. Descreve travessias que decorrem de experiências íntimas, quando se passa de um estado de consciência para outro. Fala de homens que viveram no período da pedra polida, de desbravadores europeus da era da expansão marítima, e, ainda, de grandes exploradores da modernidade. Ao mesmo tempo, conta sobre transformadoras emoções vividas em centenas de quilômetros de água salgada em remadas de canoa polinésia, stand up paddle e paddleboard nos dias de hoje. Conta também que um dia um jovem havaiano do século XXI batizou sua pequena lancha de pesca com o nome brasileiro de Corajosa. Finalmente, relata como isso me motivou a escrever sobre a cultura das canoas, sobre a história do Havaí e sobre tudo aquilo que reconheço como coragem dentro de mim mesma.

    Gosto de decifrar a origem das palavras e às vezes faço descobertas interessantes. A palavra coragem vem do latim e significa agir com o coração. Os antigos romanos já sabiam que esse órgão era um importante centro do corpo e atribuíam a ele a fonte dos impetuosos atos que nos movem para a frente mesmo diante do medo. Já o medo parece ser um mecanismo da natureza para preservar a vida e permitir que as espécies perpetuem. Por isso, é um sentimento legítimo, saudável e natural. A natureza é sempre perfeita na constituição do equilíbrio da vida, e o comportamento que animais apresentam diante de seus predadores é o instinto orientando-lhes sobre como se defender. Com poucas horas de nascida, ao sair de seu ninho enterrado na areia, uma pequena tartaruga-marinha precisa se arriscar até o mar para alcançar seu novo mundo. Nesse percurso, ela pode sofrer ataques de aves, crustáceos e diversos outros predadores. Seus instintos lhe permitirão sobreviver por cerca de cem anos em um ambiente no qual sua vulnerabilidade é enorme. São os instintos da pequena e frágil tartaruga que a fazem deixar seu ninho enquanto rasteja obstinadamente para o mar. E isso não é coragem, mas sim instinto, pois para ser corajoso é preciso, antes de tudo, ter consciência do medo que se deseja enfrentar. Observem que bonito: o medo tem a ver com instinto, e a coragem, com o coração.

    Após diversas experiências no mar, passei a enxergar as adversidades da vida como parte natural do percurso, como os contratempos normais de qualquer travessia a bordo de uma canoa. Ao longo das remadas, já experimentei sentimentos diversos de conquistas a derrotas, de medo a coragem, de impaciência a paz, de insegurança a certezas e muita, muita felicidade. Remando, já pude encontrar virtudes que estavam escondidas dentro de mim e conhecer a fundo quem eu sou e, muitos quilômetros depois, acabei descobrindo que, quanto mais longe eu remo no mar, mais me reconheço e mais dentro de mim mesma eu chego.

    A remadora Simone Duarte, primeira mulher a remar sozinha em um caiaque a distância entre o Rio de Janeiro e Santos, diz em seu livro Uma mulher, um caiaque e o oceano que as marcas da passagem de um barco são rapidamente apagadas pelas águas, mas o que ocorre no interior do canoísta é fixado para sempre. Em meio a toda a poesia de sua narrativa, ela descreve de forma objetiva o que aprendeu sobre o navegar: Quando seu objetivo está a algumas milhas de distância no mar, aquele momento a bordo ganha uma saudável simplicidade em que apenas uma única preocupação existe: chegar. De acordo com a autora, suas solitárias experiências a bordo foram capazes de transformar seu mundo e aperfeiçoar posturas e filosofias de vida. Foi exatamente isso o que a canoa polinésia fez comigo.

    Algumas observações sobre este livro: no universo náutico as distâncias são medidas em milhas, em que uma milha corresponde a 1.852 metros, mas aqui me refiro às distâncias no mar sempre em quilômetros.

    Como uso muitas palavras havaianas ao longo dos capítulos, apresento um glossário no final do livro com o significado de cada uma delas. Para palavras do tronco polinésio nas línguas taitiana, maori e rapa nui, o significado vem no próprio texto.

    O mapa do Oceano Pacífico apresentado no início pode ser útil para o leitor situar as diversas ilhas e arquipélagos de que falo ao longo da obra.

    A identidade de um barco

    As canoas são a quintessência da Polinésia, o principal símbolo de sua cultura e o elemento-chave de mitos e lendas sem o qual este povo não existiria. São elas que lhes dão significado e que, ao sabor das ondas e das estrelas, ganharam lugar entre homens, ilhas e histórias da Oceania transportando guerreiros, famílias, costumes e crenças e permitindo a troca entre populações e a circulação de produtos e culturas pelo Pacífico.

    Quando os habitantes da ilha de Tonga viram pela primeira vez um avião pousar em suas terras, ficaram perplexos. Não tinham ideia do que era e nem de como os homens brancos chamavam aquela engenhosidade, mas logo perceberam que aquilo também unia ilhas e pessoas e que de tudo transportava em suas viagens. Chamaram os aviões, então, vakapuna, que significa canoa que voa. Na língua havaiana, as embarcações também emprestaram seu nome para o avião, chamado mokulele entre os nativos, palavra que se traduz por navio que voa, e é também o nome de uma das companhias aéreas do arquipélago. Mas a correlação das embarcações com os aviões e outros meios de transporte não aconteceu apenas na Polinésia. Termos náuticos aplicados fora do universo marinho são usados no mundo inteiro, basta lembrar-se de sua última viagem de avião. Claro, você procurou pelo portão de embarque e a primeira frase que escutou, ao entrar na aeronave, foi: Bem-vindo a bordo!. A antiga arte da navegação deixou impressões interessantes no nosso dia a dia, mesmo quando o assunto não tem referencial com o mar. A palavra náutica, por exemplo, se deriva do latim, nau, que é a forma como eram chamados os navios antigamente. Mas hoje em dia esse termo se aplica a expressões bem distantes da linha d’água. Por exemplo, astronauta — aquele que navega entre os astros; e internauta — aquele que navega na internet. Outro exemplo interessante é quando se diz que uma pessoa está desnorteada —, no sentido literal, ela está sem um Norte, ou seja, está perdida, sem saber coordenadas geográficas e direções. O mesmo se aplica para os desorientados — pessoas que perderam sua referência de ocidente × oriente. Conhecer a direção do Norte e do Oriente são princípios básicos para a navegação.

    Em qualquer lugar do mundo onde existam homens no mar, há barcos com nome e identidade própria. Dar nome a um barco significa dar vida e personalidade ao meio de transporte que por muitos anos na história foi o principal responsável por permitir ao homem desbravar o desconhecido, chegar mais longe do que seus olhos podiam enxergar e descobrir seu próprio mundo. Na Polinésia antiga, a construção de uma canoa era um evento religioso, em que desde o corte da árvore até o lançamento da embarcação na água havia um forte envolvimento de trabalho artesanal, técnico e social carregado de muito simbolismo. Cerimônias regidas por sacerdotes atribuíam à nova canoa uma alma, ou seja, seu mana, e a canoa então passava a ser concebida como um novo membro da comunidade. O nome havaiano para a cerimônia de batismo é lolo ana i ka wa’a, uma expressão que pode ser traduzida como dar cérebro a uma canoa.

    No Havaí antigo, o pequeno pássaro ‘elepaio ajudava na escolha da árvore certa. Com paciência e sabedoria, era preciso permanecer dias na floresta buscando discernir os sinais da natureza e observar com atenção o comportamento do pássaro. Se ele bicasse a árvore escolhida não era um bom sinal, pois indicava que nela havia vermes e sua madeira estava comprometida. No entanto, se ao pousar na árvore o ‘elepaio não bicasse o tronco, significava que ela estava livre de parasitas e aquela matéria-prima seria de qualidade para uma futura embarcação. Existe um ditado em havaiano que diz: "ua ‘elepaio i ka wa’a, que quer dizer esta canoa está marcada pelo ‘elepaio", mas é aplicável a qualquer situação de fracasso independentemente do que se esteja falando. O pássaro ‘elepaio é conhecido como o deus dos kahuna kālai wa’a, os experts fabricantes de canoa do passado.

    A expedição às florestas de koa (Acacia koa), a árvore mais cobiçada para a fabricação de canoas, podia levar semanas ou meses, e todo o processo era pautado pela expertise e pela sensibilidade desse kahuna, que se mantinha atento também aos sonhos que podiam trazer bons ou maus presságios sobre a canoa que se desejava construir. Esse construtor de canoas era mais que um líder espiritual, era também um exímio artesão e profundo conhecedor das áreas de botânica, engenharia e construção naval. Antes do corte, em sinal de respeito, ele fazia oferendas e preces ao pé da árvore e, após o abate, a construção começava ali mesmo, na floresta. O casco era de koa, madeira nativa usada também em outras partes da embarcação, como bancos, bordas e proeminências de proa e popa, chamadas manu. Para os flutuadores laterais e até mesmo para a construção de canoas mais leves para pesca, os antigos carpinteiros navais usavam madeiras mais porosas, como a wiliwili (Erythrina sandwicensis), procurando unir características de leveza e resistência ao equipamento. A madeira dos ‘iakos, que são as traves que sustentam o estabilizador lateral, precisava ser flexível o bastante para absorver as constantes contrações do movimento das ondas sem partir, e, para isso, os conhecedores da mata e das canoas utilizavam o tronco de uma árvore conhecida como hau (Hibiscus tiliaceus).

    O momento de levar a canoa pré-entalhada da montanha para a praia era um dos pontos culminantes do projeto. Com bastante cuidado para que a estrutura não fosse danificada, muitas pessoas eram convocadas a colaborar e, em um verdadeiro trabalho em equipe, a canoa recém-nascida era carregada para uma hālau, uma construção ampla e rústica em forma de chalé que servia de abrigo para a canoa, onde ela era finalizada. Pequenos blocos de pedra e coral com variações de espessura e densidade eram usados para dar polimento com diferentes acabamentos à superfície do casco, substituindo o que hoje a tecnologia naval encontra em plainas e lixadeiras. Ao final, elas podiam ainda ser pintadas com diferentes cores feitas a partir da tintura obtida de misturas de ervas, raízes e folhas.

    Quando pronta, era chegado o momento das festas onde todos participavam do pesado trabalho de colocar a canoa na água. No grande dia, do alto de uma colina, uma grande concha chamada , espiralada e com um orifício na extremidade, soprada como um berrante, era entoada para anunciar o início das comemorações. A canoa era ornamentada com flores e uma folha especial chamada ti (Cordyline fruticosa) — conhecida pelos havaianos como — era amarrada à popa, onde deveria permanecer até que caísse naturalmente. As folhas da planta ti têm uma propriedade característica de repelir água com facilidade, o que justifica suas muitas formas de uso pelos havaianos, como na confecção de capas de chuvas, saias para a dança hula, cobertura de construções, embrulho de alimentos, uso medicinal e alimentício, entre outros. Mas tinha também uma conotação espiritual, e acreditava-se que suas folhas verdes junto ao casco conferiam à canoa a proteção dos espíritos.

    A cultura polinésia nos revela um homem integrado à natureza por completo. Um homem que, apesar de levar uma vida em grande parte associada aos oceanos, sabia que dependia das florestas para se fazer ao mar. O cerne de suas resistentes canoas vinha diretamente do coração da mata, onde eram construídas graças a um acordo de muito respeito entre homem e terra. Esse entendimento dos polinésios em relação ao uso da natureza é representado na cerimônia de batismo com um gesto simbólico: em uma cuia, mistura-se água doce, chamada wai, com água salgada, chamada kai, simbolizando a união da origem com o novo meio da canoa. Com cantos e preces, essa mistura era derramada pelo grande kahuna sobre as principais partes da embarcação e, assim, uma nova canoa era instituída de mana. A descrição de rituais de batismo pode variar de arquipélago para arquipélago, de ilha para ilha e até de kahuna para kahuna. No entanto, mesmo existindo uma grande variedade de ritos

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