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Teologia e arte: Expressões de transcendência, caminhos de renovação
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Teologia e arte: Expressões de transcendência, caminhos de renovação
E-book444 páginas12 horas

Teologia e arte: Expressões de transcendência, caminhos de renovação

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Sobre este e-book

Esta obra quer ser um subsídio para quem pretende que teologia e arte, mesmo sendo dois modos diferentes de articular a experiência do real, possuem proximidades e identidades. A primeira parte procura refletir sobre categorias de análise oferecidas à arte, tanto pela teologia como pela filosofia. A segunda, explora os múltiplos caminhos que nascem do encontro entre teologia e arte, e que ganham expressão na literatura, na arquitetura, na imaginária religiosa, na pintura, na música. A terceira parte quer ajudar a aprofundar o sentido da dignidade do humano, com seus desafios éticos. Esse trabalho quer anunciar ao jovem que escolhe a arte como lugar de realização pessoal e profissional que teologia e arte têm tudo a ver.
IdiomaPortuguês
EditoraPaulinas
Data de lançamento30 de ago. de 2012
ISBN9788535631739
Teologia e arte: Expressões de transcendência, caminhos de renovação

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    Pré-visualização do livro

    Teologia e arte - Maria Ângela Vilhena

    Ceci Baptista Mariani

    Maria Angela Vilhena

    Teologia e ARTE

    Expressões de transcendência, caminhos de renovação

    www.paulinas.org.br

    editora@paulinas.com.br

    Apresentação da coleção

    A nova coleção Teologia na Universidade foi concebida para atender um público muito particular: jovens universitários que estão tendo, muito provavelmente, seu primeiro contato com uma área de conhecimento que talvez nem soubessem da existência: a área de estudos teológicos. Além dos cursos regulares de teologia e de iniciativas mais pastorais assumidas em várias Igrejas ou comunidades religiosas, muitas universidades comunitárias oferecem a todos os seus estudantes uma ou mais disciplinas de caráter ético-teológico, entendendo com isso oferecer ao futuro profissional uma formação integral, adequada ao que se espera de todo cidadão: competência técnica, princípios éticos e uma saudável espiritualidade, independentemente de seu credo religioso.

    Pensando especialmente nesse público universitário, Paulinas Editora convidou um grupo de docentes com experiência no ensino introdutório de teologia — em sua maioria, oriundos do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), recentemente assumido pela nova Faculdade de Teologia dessa Universidade — e conceberam juntos a presente coleção.

    A proposta que agora vem a público visa produzir estudos que explicitem as relações entre a teologia e as áreas de conhecimento que agregam os cursos de graduação das universidades, a serem realizados pelos docentes das disciplinas teológicas — às vezes chamadas de Introdução ao Pensamento Teológico —, contando com a parceria de pesquisadores das áreas em questão (direito, saúde, ciências sociais, comunicação, artes etc.).

    Diferencial importante dos livros desta coleção é seu caráter interdisciplinar. Entendemos ser indispensável que o diálogo entre a teologia e outras ciências em torno de grandes áreas de conhecimento seja um exercício teológico que vá da teologia e… até a teologia do… Em outros termos, pretendemos ir do diálogo entre as epistemes à construção de parâmetros epistemológicos de teologias específicas.

    Por isso, foram escolhidos como objetivos da coleção os seguintes:

    a) Sistematizar conhecimentos acumulados na prática docente de teologia.

    b) Produzir subsídios para a docência inculturada nas diversas áreas.

    c) Promover o intercâmbio entre profissionais de diversas universidades e das diversas unidades dessas.

    d) Aprofundar os estudos teológicos dentro das universidades, afirmando e publicizando suas especificidades com o público universitário.

    e) Divulgar as competências teológicas específicas no diálogo interdisciplinar na uni­versidade.

    f) Promover intercâmbios entre as várias universidades confessionais, comunitárias e congêneres.

    Para que tal fosse factível, pensamos em organizar a coleção de forma a possibilitar que cada volume fosse elaborado por um grupo de pesquisadores, a partir de temáticas delimitadas em função das áreas de conhecimento, contando com coordenadores e com escritores do âmbito. Essas temáticas podem ser multiplicadas no decorrer do tempo a fim de contemplar esferas específicas de conhecimento.

    O intuito de estabelecer o diálogo entre a teologia e outros saberes exige uma estruturação que contemple os critérios da organicidade, da coerência e da clareza para cada tema produzido. Nesse sentido, decidimos seguir, na medida do possível, a seguinte estruturação para cada volume da coleção (com exceção do volume inaugural, de introdução geral ao pensamento teológico):

    Aspecto histórico e epistemológico, que responde pelas distinções e pelo diálogo entre as áreas.

    Aspecto teológico, que busca expor os fundamentos teológicos do tema, relacionando teologia e… e ensaiando uma teologia da…

    Aspecto ético, que visa expor as implicações práticas da teologia em termos de aplicação dos conhecimentos na vida social, pessoal e profissional do estudante.

    Esperamos, portanto, cobrir uma área de publicações nem sempre suficientemente subsidiada com estudos que coadunem a informação precisa com a acessibilidade didática. É claro que nenhum texto dispensará o trabalho criativo e instigador do docente em sala de aula, mas será, com certeza, um seguro apoio para o sucesso dessa tarefa.

    Enfim, queremos dedicar este trabalho a todos aqueles docentes que empenharam e aos que seguem empenhando sua vida na difícil arte do ensino teológico para o público mais amplo da academia e das instituições de ensino superior, para além dos muros da confessionalidade. De modo muito especial, temos aqui presentes os docentes do extinto Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, onde essa coleção começou sua gestação.

    Afonso Maria Ligorio Soares

    Livre-docente em Teologia pela PUC-SP

    Introdução

    Teologia e arte, tudo a ver!

    Grande importância têm para a teologia as discussões em torno do tema fé e razão. Desde a Idade Média, instigada pelos questionamentos provocados pelo nascimento das cidades, pelo surgimento da universidade, ela busca enfrentar o desafio de articular a realidade em sua autonomia com a verdade de fé, a revelação. A teologia, nesse contexto, usando a mediação da filosofia aristotélica, colocará para si a tarefa científica de buscar a causa intrínseca das coisas, que reside em sua estrutura metafísica, ou seja, em sua essência imutável.

    Atualmente, a teologia continua a se autocompreender como ciência, uma vez que possui, como saber científico, dimensão metódica e crítica. Johan Konings, em um breve e interessante artigo da revista Perspectiva Teológica intitulado A teologia como ciência na universidade brasileira, define a ciência racional da fé, isto é, saber metódico e crítico que tem como objeto a experiência do transcendente enquanto tal, experiência inefável, porém alcançável enquanto experiência humanamente expressa. Nesse sentido, a teologia tem se apresentado como ciência interpretativa (e não como ciência explicativa!), como hermenêutica da tradição, experiência do transcendente transmitida intersubjetivamente através das gerações. À teologia cabe, portanto, a tarefa de fazer reluzir a racionalidade ampliada que habita a tradição religiosa em sua expressão histórica.¹

    Quando se autocompreende como ciência, no sentido lato do termo, a teologia está afirmando: Deus é a Verdade transcendente que habita o mundo e inquieta o humano desde tempos imemoriais. É o logos que confere coerência ao caos e nos dá o poder para fazer o bem. Assim, podemos dizer que o sentido do conhecimento é a ação que visa ao bem. Como ciência, a teologia se coloca, então, pelo menos em seu status moderno, junto com as outras ciências (e não como rainha das ciências!), nesse caminho de investigação teórica que visa ao bem. A teologia vai atuar nesse processo de busca da verdade, acolhendo a crítica dos frutos da razão humana, mas apoiando-se na fé, na abertura do humano ao infinito, na experiência humana de transcendência, sabedoria contida no interior das tradições que constituem as diversas religiões. Interessante para essa reflexão é retomar o discurso do Papa Bento XVI proferido na Universidade La Sapienza no início de 2008, em que ele reflete sobre a tarefa da teologia na universidade. Para ele, a tarefa da teologia enquanto ciência reside no esforço de manter viva a sensibilidade pela verdade que tem como meta a bondade, especialmente no contexto contemporâneo em que a verdade se encontra acuada pela pressão dos interesses e do atrativo da utilidade. Mais contundente é a crítica de Felix Wilfred em volume da revista Concilium dedicada a refletir sobre a teologia em um mundo de especialização, ao afirmar que as universidades não têm mais como meta a clássica busca da verdade e que as ciências que integram os estudos universitários orientam-se cada vez mais para serem avaliadas em termos de metas pragmáticas de produção e capacidade operacional. As disciplinas, ele afirma, "são avaliadas pelos critérios ‘sérios e práticos’ de viabilidade, o que na realidade significa comerciabilidade (marketability), e todo o sistema tende a criar indivíduos capazes de adquirir poder e riqueza. Na verdade, observamos que há uma crescente conexão entre o trabalho acadêmico através da especialização e o mundo da indústria e do comércio que visa ao lucro".²

    Existe hoje, contudo, no contexto da reflexão sobre a contribuição da teologia ao mundo contemporâneo, a exigência de colocar na pauta da discussão a relação entre teologia e arte ou entre Deus e a Beleza. Essa é uma discussão importante e urgente para um tempo que, como sabemos, além de haver aprisionado a verdade na injustiça, como ensina Paulo na Carta aos Romanos, tem manipulado a nossa concepção de beleza, destituindo a experiência estética de sua dimensão transcendental.

    É preciso ter também em conta que, assim como a verdade que nos inquieta é uma experiência que conduz à intuição de que Deus é a Verdade que confere coerência a tudo e torna a vida nesse mundo inteligível, a beleza que nos arrebata indica também uma presença, remete a uma realidade total e abrangente passível de ser percebida como Beleza. Estética, define John Haught, é a experiência de ser transformado — inteligência e afeto — pela harmonia, equilíbrio de contrastes apreendido pela percepção. O artista é aquele a quem é dado o dom de narrar a harmonia que perpassa todas as coisas através dos múltiplos recursos oferecidos à percepção. A beleza, portanto,

    tem o que os filósofos chamam de natureza transcendental. Isso significa que o belo não é qualquer coisa específica, e sim um aspecto metafísico de todas as coisas. (Ser, verdade, bondade e beleza são os transcendentais geralmente mencionados pelos metafísicos.) Só por isso temos razão para suspeitar que não podemos dissociar arbitrariamente qualquer possível encontro com a beleza da experiência do divino, tido como sumo exemplo dos transcendentais.³

    Nesse sentido, reflete esse autor, a experiência de ser tomado pela beleza é um dos mais cristalinos modelos de que dispomos para expressar o que se acha envolvido na intuição do infinito.

    A partir disso, podemos dizer, o teólogo, ao lado e como artista, deve estar envolvido no anúncio da Beleza, que é unidade na diversidade, harmonia de contraste, percepção que nos enleva, confere sentido à vida e traz felicidade. Quando a teologia se aproxima da arte e a arte da teologia, nasce uma obra capaz de falar sobre a vida no contexto de Deus.

    O presente trabalho Teologia e arte quer ser um subsídio para a reflexão sobre essa aproximação. Aqui estão reunidos diversos artigos assinados por pesquisadores que entendem que teologia e arte, mesmo sendo dois modos diferentes de articular a experiência do real, possuem proximidades e identidades. Esse trabalho quer anunciar ao jovem que escolhe a arte como lugar de realização pessoal e profissional que teologia e arte têm tudo a ver!.

    O conjunto dos textos publicados aqui foi organizado em vista de três preocupações. A primeira diz respeito ao rigor epistemológico, à preocupação com a necessidade que temos de, na universidade, trabalhar bem os fundamentos das ideias que nos orientam. A primeira parte do livro vai procurar trazer bases teóricas, isto é, refletir sobre categorias de análise oferecidas à arte tanto pela teologia como também pela filosofia. Nessa parte encontram-se também artigos que, apresentando elementos para um olhar em perspectiva histórica, ajudam a situar melhor as ideias.

    A segunda preocupação está associada aos múltiplos caminhos que nascem do encontro entre teologia e arte. Caminhos que ganham expressão na literatura, na arquitetura, na imaginária religiosa, na pintura, na música. Caminhos de transcendência encarnados na cultura. Uma ciranda de autores aqui reunidos, cada um na sua vez, canta a sua reflexão nascida do diálogo da teologia com a arte (teólogos que são também artistas), e da arte com a teologia (artistas que são também teólogos). Fica nessa parte também um convite a outras gentes que lidam com outras artes para entrar nessa ciranda e também cantar a sua reflexão.

    A terceira preocupação é a com a orientação para ação, com a reflexão sobre os princípios éticos. Reúne artigos que querem ajudar a aprofundar o sentido da dignidade do humano, sujeito às limitações históricas e aberto à transcendência, bem como oferecer pistas para pensar a verdadeira liberdade, chamando a atenção para a justiça que implica o cuidado com o mais frágil.

    Este volume, composto em mutirão, como outros que compõem esta coleção, é uma obra aberta, um convite à participação nesse diálogo da teologia com outros saberes. Diálogo que, consideramos, faz bem para a teologia e também para os outros saberes, ajuda as pessoas a se situarem e se posicionarem em um tempo de sensibilidade nova e de grandes desafios sociais, econômicos, políticos e religiosos.

    Como organizadoras, agradecemos a todos os que participaram dessa ciranda e esperamos que os leitores encontrem aqui, como diria o teólogo-poeta Rubem Alves, palavras boas de se comer, palavras que sirvam para nutrir o corpo, para dar vitalidade ao espírito e para renovar a vida em sociedade.

    Ceci Baptista Mariani e

    Maria Angela Vilhena

    PARTE I

    Relações entre teologia e arte: bases para a reflexão

    Capítulo I

    Teologia e arte: fundamentos epistemológicos

    João Manuel Duque

    1. Introdução

    Situando-me claramente em contexto teológico, são teológicos os meus pressupostos hermenêuticos. Ou seja, no tratamento da relação entre teologia e arte, em registro epistemológico, assumo abertamente a perspectiva teológica. Dito de outro modo, trata-se, aqui, de pensar nos efeitos, para a teologia, da sua relação com a arte. Sendo assim, para a fundamentação epistemológica dessa relação, o ponto de partida terá que ser a epistemologia teológica — uma vez que será difícil, se não impossível, encontrar um terreno epistemológico geral, que pudesse ser considerado neutro, em relação a concretos contextos de abordagem.

    Essa localização na epistemologia teológica — que comporta a consideração do método teológico propriamente dito — irá determinar, pois, o desenrolar da minha proposta, assim como a sua organização interna. Ora, o núcleo da epistemologia teológica reside na relação da sua atividade com a atitude de fé: seja enquanto auditus fidei (ponto de partida, como acolhimento de um dado/dom precedente), seja enquanto actio fidei (realização permanente, como processo, da própria atitude crente, na sua interação com a teologia), seja enquanto intellectus fidei (elaboração das características da racionalidade crente, como racionalidade teológica e diálogo com outras racionalidades), ou mesmo enquanto ontologia fidei (enquanto interpretação crente do sentido ou do ser de toda a realidade, quanto à sua origem primeira e à sua finalidade última).⁴ Essa concentração na categoria da fé pode ser tratada, como indica a nomenclatura clássica, em perspectiva formal, quanto ao estilo do ato de fé, ou em perspectiva material, quanto ao conteúdo para o qual se orienta esse ato. Estamos, pois, no interior de uma abordagem que distingue a fides qua (ato) da fides quae (conteúdo).⁵ Inspirando-me nessa distinção secular, proponho um tratamento do assunto em estudo, primeiro na perspectiva formal, depois na perspectiva material. No primeiro caso, as relações epistemológicas entre teologia e arte estarão ligadas com a forma do respectivo modo de ser (mesmo enquanto modo de fazer); no segundo caso, ligar-se-ão aos respectivos conteúdos. Em ambos os casos, as linhas condutoras serão as da epistemologia/metodologia teológica; e em ambos os casos manterei, também, a perspectiva do interesse cognitivo no resultado desta relação para a teologia, mesmo que não deixe de esboçar, no final, breves considerações sobre o possível interesse da mesma relação para a arte.

    2. Relação formal (fides qua)

    Teologia e arte são dois modos de articular experiência(s) do real. Mais do que objetos feitos, artefatos terminados, são processos de ação, que possuem modos próprios de realização de si mesmos, em ordem à finalidade a que se propõem. Ora, a dimensão formal do tratamento epistemológico da relação entre teologia e arte deverá, precisamente, analisar esses modos de realização, para decifrar possíveis proximidades, mesmo identidades, mantendo toda a legítima diferenciação recíproca.

    2.1. Um primeiro elemento do modo teológico de articular o real é expresso, tradicionalmente, pelo conceito de auditus fidei. De um modo geral, esse conceito significa que o conhecimento do sentido se realiza como reconhecimento do que é dado, ou reconhecimento do sentido como dado a compreender. Distingue-se, por isso, do conhecimento do sentido como factum, isto é, como aquilo que é absolutamente produzido pelo sujeito, ou mesmo pela relação intersubjetiva dos atores humanos.

    Ora, se este é um elemento indiscutível do modo teológico de elaboração do conhecimento, enquanto compreensão do real, como poderemos pensar o mesmo em relação à arte? Não estaremos, aqui, precisamente no polo oposto, que parece atribuir à arte a condição de mero produto do ser humano, enquanto obra de um artista que, à medida que a realiza, apenas se exprime a si mesmo?

    Mas precisamente essa noção exclusivamente expressionista ou subjetivista da arte tem sido fortemente colocada em questão. A título de exemplo, recorrerei, como a propósito de outros aspectos ao longo deste breve estudo, a um recente e elucidativo trabalho da filósofa francesa Isabelle Thomas-Fogiel. Além do mais, porque esse trabalho persegue uma finalidade muito semelhante à deste: pretende repensar a relação da arte com outra área da interpretação do real. No caso da filósofa, trata-se da relação com a filosofia, com base na relação entre o lugar e o conceito. Mas as interessantes intuições aí desenvolvidas podem aplicar-se, perfeitamente, ao estatuto epistemológico da relação entre teologia e arte.

    Ora, uma das primeiras intuições da autora é, precisamente, o fato de o conhecimento realizado na arte ser da ordem do reconhecimento, não da ordem da produção. Aliás, em relação à obra, nem sequer nos situaremos na ordem do puro conhecimento. Assim, propõe-se uma distinção entre o nível do conhecimento, aplicável em ciência (com base, grosso modo, na relação sujeito-objeto), o nível do saber, aplicável em filosofia (anterior à relação sujeito-objeto) e o nível do reconhecimento, aplicável em ética e, com modificações, também na arte (com base na relação sujeito-sujeito e na categoria da alteridade).

    Embora com adaptações significativas, poderíamos transpor esta leitura para a aproximação entre teologia e arte. Se é verdade que a teologia pode partilhar, com a filosofia, o modo do saber, tematizando uma dimensão do real anterior à relação entre sujeitos e objetos e mesmo entre sujeitos, não podemos negar que ela parte, sempre, de uma interpelação histórica, enraizada em sujeitos e em acontecimentos, pelo que não é possível pensar formalmente a teologia sem uma relação de reconhecimento quanto a esses sujeitos e a esses acontecimentos.

    Porque esses sujeitos e esses acontecimentos são sempre mediação de um apelo. Com este conceito tocamos noutra chave de leitura de Thomas-Fogiel. Segundo ela, mesmo que devamos distinguir o apelo ético do apelo estético, não podemos ignorar que, sobretudo na superação do modelo científico-produtivista da relação sujeito-objeto, a nossa relação com a arte é relação com um apelo que, na obra, nos é lançado. A obra de arte é sempre "convite a instituir um mundo e, por isso, a me fazer livre, pelo prazer recebido".⁷ A obra é, pois, acontecimento que apela, em primeiro lugar, a algo.

    Ora, o apelo é a raiz de toda a teologia, mesmo do ponto de vista formal ou metodológico. Nisso radica a dimensão teológica do auditus fidei. É na escuta desse apelo que a teologia se torna possível ou mesmo necessária. E o seu trabalho nada mais é do que o desenvolvimento sistemático, mesmo reflexivo, desse apelo originário.

    E porque o apelo nos precede sempre — manifestando-se-nos, em certo modo, independentemente da nossa intencionalidade em recebê-lo —, podemos interpretar essa interpelação apelativa como revelação. Por isso é que o primeiro princípio formal da teologia é a revelação. Mas a revelação é uma categoria empregada, também, para compreender o fenômeno artístico. Porque na arte se nos dá um mundo, como revelação de sentido, que claramente nos precede e em relação ao qual temos perfeita noção de não propriedade, de não domínio.⁸ A noção de revelação pode, assim, ser entendida como princípio formal da arte e da teologia — mesmo que os respectivos conteúdos possam distinguir-se. A esse propósito, são emblemáticas as palavras de Adorno: A herança teológica da arte é a secularização da revelação […]. Eliminar-lhe o vestígio da revelação degrada-a a uma indiferente repetição daquilo que é.⁹

    Para concluir, poderíamos afirmar que, quanto a este primeiro elemento formal — que se relaciona com a origem epistemológica —, quer a arte quer a teologia partem, sempre, de uma atitude de acolhimento da verdade, como manifestação de sentido naquilo que é dado, em acontecimentos que constituem um apelo.

    2.2. Uma segunda dimensão nuclear da epistemologia teológica pode ser denominada actio fidei. Trata-se, é certo, de uma dimensão menos considerada na tradição teológica, mas não propriamente ignorada. De qualquer modo, a mais recente epistemologia teológica — sobretudo a que procura fundamentar a teologia política e a teologia da libertação — coloca essa dimensão no centro das suas reflexões.

    Ora, um primeiro elemento desta dimensão pragmática pode ser concentrado na ideia de uma passagem da representação à ação. Ou seja, se partirmos do fenômeno artístico, o que determina a obra não é, propriamente, o fato de representar estaticamente o real, mas o fato de se tratar de um acontecimento ou processo que, enquanto tal, origina um mundo, precisamente o mundo da obra. Essa seria a dimensão po(i)ética da arte, enquanto modo de criação de mundos, por um modo específico de ação (poiesis). Se, por exemplo, retomarmos a teoria do jogo de Gadamer ou a teoria do texto de Ricoeur, compreenderemos melhor o que isso possa significar. No jogo, o mundo constituído pelo próprio jogo torna-se real, à medida que é jogado. Ou seja, a representação do real, feita no jogo, não é uma representação imagética, mas uma representação pela apresentação ativa do mundo originado. O jogo é, pois, um acontecimento que origina mundos, à medida que se realiza e assim os realiza. O mesmo se diga do texto, cuja função é a criação de sentido, precisamente compreendido como mundo do texto. O mundo do texto não está fora dele, sendo nele apenas representado ou espelhado, nem está por trás do texto, nele escondido. Encontra-se no próprio texto, como que diante do texto, e torna-se real na ação da leitura. Esta é a forma como o mundo do texto se torna mundo do leitor.

    Ora, o jogo e o texto podem ser assumidos como modelos de toda a obra de arte. O sentido da obra — ou melhor, o sentido originado/apresentado/dado na obra — não é um sentido exterior à obra, nela apenas representado ou refletido. É um sentido presente na própria obra, à medida que esta se realiza e o realiza como tal. Assim sendo, a dimensão significante da obra não pode desligar-se da sua dimensão performativa, na medida em que o significado coincide com aquilo que, na obra, acontece ou é feito.¹⁰

    Mas este processo performativo, originando o mundo da obra, não limita esse mundo à pura imanência da obra. De fato, o mundo da obra resulta da relação a outros mundos e origina relação com outros mundos. De um modo geral, o mundo da obra não pode ser separado do mundo da vida. A significação, portanto, inclui sempre a relação do mundo da obra com o mundo da vida, seja como origem seja como destino daquele.

    Nessa relação ao mundo da vida, a criação de mundos, pela obra e na obra, tem a função de abrir mundos da vida inauditos,¹¹ que passam a integrar a pragmática do mundo da vida daqueles que se relacionam com a obra. Esse processo de inovação de sentido — que pode assumir como modelo a inovação semântica da metáfora — é um processo artístico e pragmático, que afeta a pragmática do cotidiano de modo próprio, sendo por ela também afetado. Assim sendo, a arte é uma pragmática específica, na relação a outras pragmáticas.

    O mesmo se pode dizer, do ponto de vista formal, da teologia, que pode ser considerada um processo pragmático de inovação semântica, com uma relação específica à pragmática humana ou ao mundo da vida. Nesse processo, o sentido teológico do mundo da vida ganha corpo, à medida que se vai articulando pragmaticamente em obra — em articulações que correspondem ao que podemos chamar um texto ou um jogo. A teologia representa o sentido da existência à medida que o apresenta pragmaticamente, em um processo sem fim, ao longo dos contextos e dos textos da história humana. Nesse sentido, a verdade teológica é uma verdade a ser feita, permanentemente, a ser jogada e, nesse jogar-se, a ser ativa e eficaz na transformação do mundo da vida. E a força do sentido teológico — tal como a do sentido artístico — está, precisamente e do ponto de vista formal, nesta permanente pragmática da abertura de mundos inauditos.

    2.3. Mas a teologia tem sido considerada, na tradição, sobretudo como intellectus fidei. Será possível estabelecer, aqui, alguma relação com a arte? De fato, a este nível, que parece situar-se no campo do puro conceito ou da racionalidade teórica, tudo parece indicar que nos afastamos de qualquer possível relação. Mas a questão é mais complexa.

    Mais uma vez, pode ajudar-nos o modelo tentado por Thomas-Fogiel, na relação entre filosofia e arte. Até porque, nessa relação, o afastamento parece ser ainda mais evidente. Contudo, mesmo aí, a autora encontra um caminho sugestivo de possível encontro, precisamente quando relaciona a categoria do lugar com a categoria do conceito, não as opondo, mas conjugando-as, em sua diferença e em sua semelhança. O lugar é o modo como a obra realiza a conjugação do universal com o particular. E o lugar dessa conjugação é a própria obra, que só se entende como obra de arte à medida que está habitada por essa conjugação. Enquanto exclusivamente particular, seria simplesmente um objeto — ou uma coisa (Ding), na terminologia heideggeriana; enquanto exclusivamente universal seria uma ideia abstrata, nunca propriamente obra de arte. Mas o lugar da obra — ou a obra como lugar — é o lugar em que o universal se torna particular e o particular se torna universal.¹²

    No mesmo sentido, o conceito seria o lugar em que, filosoficamente, o particular se torna universal e o universal particular. Assim, a obra e o conceito, na relação com a categoria do lugar, acabam por ter a mesma dimensão de conjugação entre particular e universal.

    No contexto da obra concreta, o processo de originação do lugar e da respectiva conjugação dá-se, precisamente, à medida que se realiza uma ilimitação do limite — mesmo que sempre no interior do limite da própria obra. Essa ilimitação faz com que a obra supere a redução à figura. Se é certo que não há obra sem figuração, também é certo que o que a define como obra de arte é a superação da pura figuração. Assim sendo, a figura, na arte, é o modo como o seu próprio limite é transcendido. Segundo Thomas-Fogiel, isso dá-se não pelo modo iconoclasta da contra-figura, mas pelo modo representativo-performativo da figura vaga que, sem deixar de ser figura, não limita o lugar da obra aos limites estritos da figura.¹³

    De modo sugestivo, poderíamos aplicar estes elementos à epistemologia teológica. De fato, na dimensão do intellectus fidei é onde se situa a percepção da dimensão universal do sentido teológico. Mas essa dimensão universal é inseparável da sua articulação particular. Assim sendo, a teologia — e a correspondente pragmática histórica da fé — é sempre um lugar particular que articula uma dimensão universal da existência. E essa articulação dá-se, sempre, em figuras históricas e humanas. Só que essas figuras são, elas próprias, transcendência de si mesmas, sem se abandonarem propriamente.

    Poderíamos expressar este estatuto epistemológico com recurso às tradicionais vias da teologia apofática ou negativa. O necessário lugar da figura implica uma posição ou afirmação inicial, como ponto de partida imprescindível e nunca abandonável; a contra-figura equivaleria à negação, como possibilidade epistemológica e como caminho metodológico; mas a negação da figura particular — ou da particularidade da figura — só possui sentido se se resolver na eminência, em outro modo de figura (figura vaga ou figura simbólica) que permite compreender e dizer o sentido teológico universal, sem cair no abstracionismo da pura ideia, de pendor niilista.

    Essa relação entre universalidade e particularidade — núcleo da inteligência do real e também da fé, como compreensão do seu sentido — ganha, quer no campo teológico/religioso quer no artístico, articulações muito próprias, das quais sobressaem os fenômenos da festa e do rito. Na festa conjuga-se, sobretudo, a relação com a temporalidade, entre a dimensão cronológica (de kronos) do tempo medido e a dimensão cairológica (de kairos) do tempo qualitativo. Na articulação festiva do tempo, o tempo passageiro da cronologia é transformado em tempo significativo e, nesse sentido, em possível antecipação daquilo que pode significar a plenitude do tempo ou eternidade.¹⁴ No rito, conjuga-se a particularidade de uma ação com a sua dimensão simbólica, que implica a transcendência da mesma ação, na imanência da encenação ritual.¹⁵

    Essas articulações — e não a estrita atividade racionalizante do sujeito humano — é que permitem, à teologia como à arte, pensar e afirmar a verdade do real, enquanto verdade da fé ou enquanto verdade da obra. Porque essa verdade, dada na particularidade de uma articulação histórica e material concreta, é a representação ativa ou performativa da universalidade do sentido.

    Mas, após a exploração de todos estes contatos formais entre teologia e arte, sobra uma incontornável questão: qual o conteúdo do sentido que, desta forma, é recebido, realizado, afirmado e pensado? A relação em causa adquire, aqui, outra dimensão.

    3. Relação de conteúdo (fides quae)

    Antes de mais, convém deixar claro que, no âmbito do conteúdo, nem sempre se pode falar em aproximação entre

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