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Grandes criativos
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E-book496 páginas5 horas

Grandes criativos

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Sobre este e-book

São variados e muitas vezes acidentados os caminhos que levam os grandes criativos às grandes ideias. A rota do tesouro, que conduz ao Santo Graal das soluções inspiradas, fica desconhecida até pelos seus geniais criadores. Estes são as verdadeiras estrelas aqui, examinadas com lupa pelo olhar atento e inquieto do entrevistador Celso Loducca.
O segredo da descoberta aparece às vezes durante a entrevista, revelando-se para o criativo no mesmo momento em que é apresentado ao leitor. A conclusão é imediata: não há modelos fixos para chegar às grandes criações. Há os criativos que ruminam ao longo de anos até encontrar a resposta, há os que são visitados pela genialidade, e outros que simplesmente são capazes de dedicar esforço sobre-humano, concentrar tanto o seu foco que o desfecho feliz, o parto das grandes ideias, acaba sendo inevitável.
Como não há um roteiro único, este é um livro de histórias inéditas, que poderão ajudar o leitor a descobrir a sua própria criação. Esta, se for grande, será necessariamente original. - Papirus 7 Mares
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de abr. de 2015
ISBN9788561773748
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    Grandes criativos - Celso Loducca

    GRANDES

    CRIATIVOS

    Celso Loducca (org.)

    >>

    Sumário

    Prefácio

    Mario Vitor Santos

    Apresentação

    Celso Loducca

    Alex Atala

    Rodolfo García Vázquez

    Eduardo Srur

    Marcelo Rosenbaum

    Ronaldo Bastos

    Marçal Aquino

    Paulo Lima

    Alexandre Machado

    Notas

    Sobre os autores

    Redes sociais

    Créditos

    Prefácio

    DE ALGUNS ANOS PARA CÁ, A INOVAÇÃO VIROU UMA espécie de Santo Graal, de pedra filosofal que vai resolver todos os problemas do indivíduo, das empresas e do país. Os brasileiros amam dizer que são atrasados porque são pouco criativos e porque não conseguem adotar novas ideias a tempo. Sentem-se sempre ultrapassados, seja na criação de produtos, seja na forma de fabricá-los, seja nas próprias formas de vida. Como perdemos o passo, estamos sempre querendo compensar adotando a moda mais recente. Inédito e inovação tornam-se a mesma coisa, então.

    Em tempos de crise, os brasileiros adotam atitudes opostas. Uns orgulham-se da imagem de povo criativo, sensível e improvisador. Outros lamentam o fato de que a maioria das invenções e ideias vêm de fora, incorporadas em marcas e cadeias produtivas geradas e geridas de outros centros. O traço comum é uma espécie de sacralidade da criação: ambos a encaram como algo mágico, muito especial, único, que resulta de um momento de rara inspiração. O que este livro mostra, pelo depoimento de diversos expoentes da criação no Brasil, é o oposto.

    A criação resulta de uma espécie de crença no próprio olhar, ou de uma falha na vigilância, de uma abertura para aquele outro rejeitado que muitas vezes se insinua em nós, clamando para ser reconhecido. A criação é o máximo do risco, é prima do absurdo e irmã do ridículo, o que se torna óbvio depois que dá certo. Neste livro de muitos autores, não há fórmulas, só histórias, de novo arrancadas dos criadores, a fórceps agora pelo entrevistador Celso Loducca.

    Mario Vitor Santos Diretor

    executivo da Casa do Saber

    Apresentação

    ESTÁ FICANDO IMPOSSÍVEL – E QUASE INSUPORTÁVEL – a quantidade de vezes por hora que temos que nos deparar com as palavras transformação, inovação, criatividade e outros termos que, de alguma maneira, embutem o conceito de fazer diferente. Hoje virou quase uma obrigação ser criativo, existe uma pressão social e empresarial para que cada um desenvolva ou revele sua habilidade ou, como querem alguns, competência em inovar. Este livro é fruto de um curso, conduzido por mim na Casa do Saber, com o intuito de desvendar, no sentido literal de afastar os véus e as teorias, alguns dos mais importantes criadores de várias áreas de atividade, e beber direto na fonte deles. Como você poderá ver, ninguém tem uma explicação clara ou um roteiro para sua própria criatividade. Mas fica difícil não perceber que ela brota de um certo desconforto (explicitado ou não), de um desencaixe, de uma sensação de que o mundo não os faz sentir-se plenos, que o arranjo geral da vida não os deixa sentir-se parte deste lugar. E a tentativa de apreender, de transformar o mundo aos seus olhos, de buscar um caminho de sobrevivência emocional os força, às vezes com doçura às vezes com dor, a descobrir novas peças do quebra-cabeça, ou ainda novos arranjos para as mesmas peças.

    Eu mesmo, como redator publicitário e criativo (se grande ou não deixo para os outros julgarem), quando perguntado sobre a tal da criatividade, por educação, tento me aproximar de uma resposta que não tenho, e costumo dizer que me parece um defeito de visão, um tipo de distorção, herdada e/ou adquirida, que faz enxergar e sentir o mundo de um jeito bastante particular e, muitas vezes, desconfortável – principalmente quando você percebe que quase ninguém comunga dessa visão. O que, inicialmente, gera um sentimento de isolamento, de não pertencimento, de se estar sozinho no meio do oceano. Mas com o tempo (e um pouco de sorte), aquilo que apertava seu coração, que o fragilizava, pode acabar se transformando em sua fonte e razão da existência, seu motor, sua luz. E, quem sabe, sua profissão. Conversar com esses profissionais excepcionais reforçou essa minha teoria torta sobre a criatividade. Ainda em minha opinião, todo mundo, de alguma maneira, tem essa distorção particular de visão. A diferença entre uns e outros talvez seja de grau, mas também da atitude em relação a ela, o que se faz com essa distorção e com os sentimentos que ela gera em nós.

    Como consequência natural, este livro não é um manual de criatividade, não é uma fórmula de como ser mais criativo ou ganhar mais dinheiro. Muito menos pretende que você concorde com as visões e posições de cada um. Ele tem uma pretensão maior: que você descubra e passe a amar suas diferenças a ponto de não poder viver sem elas. E que isso o impulsione a rearranjar as peças. E a criar um mundo novo.

    Celso Loducca[1]

    conversa com

    Alex

    Atala

    (POR ALGUM PROBLEMA TÉCNICO, NÃO FOI GRAVADO O início da conversa com o Alex, o que nos impede de reproduzir fielmente os primeiros minutos. Peço desculpas, mas acho que esse erro não causou danos irreparáveis. Além disso, me lembro do espírito do bate-papo: eu o apresentava como o grande nome da culinária nacional e ele recusava o rótulo por saber que não era visto assim por parte do segmento dele.)

    No meu segmento, principalmente porque sou um cara de muita personalidade, faço argumentações e tenho atitudes muitas vezes polêmicas, sempre estou criando dois polos: pessoas que adoram o meu trabalho e pessoas que têm preconceito contra ele.

    Tem isso? Eu não sabia.

    Lógico! Quem tem opinião, quem tem personalidade gera opinião. Há pessoas que gostam e há pessoas que não gostam. Não dá para passar em branco...

    Mas essa notícia é boa também...

    É, ninguém chuta cachorro morto. Eu gosto.

    Mas, para quem não é realmente do meio, parece que você é uma unanimidade mundial, nacional, o Pelé da cozinha.

    Eu até chego lá, mas posso afirmar o seguinte: hoje em dia, alguém fala espumas e todo mundo se entusiasma: Ah, espumas!. Ou, então, menospreza ou tem ojeriza: Ah, espuma.... O novo causa medo. O ser humano, muitas vezes, se comporta como gado. Se se tocar o gado todo dia para o curral, ele vai sozinho para a porteira. E continua a fazer o mesmo caminho, ainda que se mude o lugar da porteira. Essa opinião é muito pessoal, mas acho que a massa é burra, se comporta como animal, não como ser inteligente.

    Saiu um artigo do Contardo Calligaris na Folha de S.Paulo... Não exatamente com esse grau de acidez, mas referindo-se ao fato de que as opiniões se diluíram na banalidade... Não existe mais opinião, porque quem se achava formador de opinião, hoje, acredita nas próprias bobagens que inventa e acaba sendo também formado pela própria mentira. Então, está todo mundo na mesma burrice.

    É interessante pontuar algumas coisas. Vamos voltar um pouquinho para a questão da espuma para terminar um raciocínio. Espuma, hoje, parece coisa de espanhóis no meu ramo, então, todo mundo faz bico. Quem gosta de cozinha italiana, quem gosta de cozinha francesa, quem gosta de outras cozinhas... faz bico. E muitas vezes não sabe que o processo de fazer espuma nasceu na França, que a expressão cozinha molecular nasceu lá, que o método de fazer espuma é igual ao de bater um achocolatado geladinho de manhã para os nossos filhos, que faz espuma. Não é nada demais...

    É que o Ferran[2] quis criar a ideia de que ele tinha um laboratório e não uma cozinha. Eu comi algumas vezes lá...

    Ele quis criar ou as pessoas quiseram acreditar? O sucesso, muitas vezes, não está em você, mas na maneira como as pessoas olham para você. Os mitos, igualmente, não estão dentro deles, mas na maneira como as pessoas os olham. Aí, eu volto àquele discurso: muitas vezes, é muito fácil enganar as massas, basta mudar a porteira de lugar!

    Amarro assim a história que estava contando para você. Tente se distanciar e imaginar a seguinte situação – criatividade efetiva é isto. Todo mundo vê o arroz com feijão como comida de pobre. De repente chega um maluco cheio de tatuagem e faz um restaurante bacana com arroz e feijão, e arroz e feijão hypa! Ninguém se arriscou a falar, primeiro, que arroz com feijão era bacana. As pessoas esperaram alguém sair na frente, e aí todo mundo foi atrás. Eu fico muito feliz com isso. As cópias só são nefastas quando escondem autoria, quando são plágio. Então, acho que não me ofendem.

    É um tipo de elogio.

    É efetivamente um elogio. Ainda sobre a espuma... O salvo-conduto do cozinheiro criativo é a base clássica. O salvo-conduto de um compositor de música é o conhecimento da música. O salvo-conduto de um escritor é ter uma boa formação em português. Simples assim. Qualquer coisa que saia disso assusta e é perigosa. A criatividade se diferencia da inventividade nessa hora. A figura do inventor é a do cara que explodiu o laboratório – essa é a clássica figura do inventor. As verdades estão aí, é só ler o que a história nos conta. Vou repetir: se você pegar estas chaves e mudá-las de lugar, você estará sendo, efetivamente, não criativo, mas inovador.

    Perfeito. Agora, por que você acha que foi você quem fez e não outro? É uma bênção divina? Por que você é o cara que faz isso? Você tem um treco a mais?

    No meu caso, é visão lateral.

    O que é isso?

    É não me conformar com padrões estabelecidos. Então, vou contar para você... Acabei de falar da formação clássica de um cozinheiro. Eu me formei na Bélgica; de lá, fui para a França; da França, para a Itália – e entendi que eu nunca ia ser bom como um francês, um belga ou um italiano, porque não tenho no meu registro cultural, na minha formação de paladar, aquele sabor. A diferença do bom, do muito bom e do excepcional só vem com repertório. Se um sushiman no Japão é honrado, o que lhe confere honorabilidade é fazer muito melhor a comida que o público japonês comeu a vida toda, por isso ele é respeitado. Então, acreditei que ninguém no mundo poderia fazer comida brasileira melhor do que eu. Eu tinha a chave. É essa visão lateral que não vejo nas pessoas, pois em geral elas se conformam com as coisas.

    E outros chefs, outras pessoas da sua geração? Agora até penso que tem mais gente seguindo o caminho que você abriu, mas, de alguma maneira, salvo uma ignorância grande da minha parte – o que é bem possível –, acho que você abriu esse caminho da cozinha brasileira para o mundo e tal.

    É um processo bem evolutivo. Não existiria Alex se não existisse Claude.[3] Tem uma evolução na história, mas...

    Claro... Eu queria que você me dissesse por que é você, por que você acha que a coisa caiu em você.

    Já respondo logo para você: porque eu tenho essa mania de não me conformar com as coisas. Não acredito no que me falam: tenho que ir lá e ver. Essa é a minha diferença. Isso pode beirar a burrice, quer dizer, eu tenho que enfiar o dedo na tomada para tomar choque, mas é isso, inconformismo.

    Um traço de personalidade.

    E eu fui entendendo, conhecendo outras pessoas que viam isso e descobrindo que as experiências eram positivas. Essa criatividade ou esses lampejos de inovação não são intuitivos. Eles são formados em cima de repertório assimilado. Eu fico brincando que minha cabeça é como uma panela de nhoque: eu faço um monte de nhoque, jogo tudo na água e o primeiro a boiar não é aquele que caiu antes. A minha cabeça funciona desse jeito. Eu vou pegando informação de todo lado: o que vai sair, sabe Deus, é a primeira coisa que boia.

    Eu vim para cá pensando no que ia falar, no criativo... Boiou isto aqui, agora: criatividade não é mais a palavra, inovação é que é a palavra. Só a criatividade não vende. Para mim, a criatividade, hoje, é perigosa. Acontece esse problema no tipo de cozinha que eu faço: os meninos, sem formação de base, tentando fazer cozinha e causando acidentes. E aí a desilusão começa.

    A primeira coisa que motiva um chef a cozinhar é o prazer de dar prazer. É possível ter vieses até mais extremados aí: o sexo e a comida são atividades vitais, que transformam o homem em ser humano. E ainda vou um pouco além: o que eu preparo com as minhas mãos, as pessoas colocam dentro delas. Existe uma relação direta com isso. Maternal, vital. Tudo o que um cozinheiro quer é tudo o que a mãe quer: o sorriso do filho. É só isso. A mãe se satisfaz com o filho comendo tudo.

    Você tem isso no seu restaurante?

    Lógico! O Paulo Autran dizia que não dava para entrar no palco sem ter frio na barriga. Não dá para cozinhar e não esperar um sorriso. A coisa mais intrigante para mim é gente inexpressiva.

    E tem o massacre da história do negócio, que é o lado desagradável do restaurante. É business, tem que ficar de pé, tem que pagar a reforma, essas coisas todas... Como você lida com o lado negócio e o lado artístico?

    Vamos dizer o seguinte: por saber que não sei, contrato quem sabe. Eu acabo aprendendo, porque não me conformo em ser burro. Foi a primeira coisa que falei aqui. Não me conformo em ser burro, não quero não saber. Não tenho vergonha de não saber. Tenho vergonha de não querer aprender. Então, pego alguém que sabe, me sento do lado e sou cara de pau. Pergunto: Por quê? Na minha cozinha, isso não funciona. E esmiúço, chateio o sujeito, para entender por que ele está me falando que custo fixo mais custo variável é igual a custo operacional. Não acredito. E a taxa do cartão de crédito?

    Posso voltar um pouquinho? Também posso dizer que você é o típico brasileiro, com mistura de irlandês com não sei que mais? Depois você conta direitinho, mas me lembro de você ser uma mistura de um monte de gente... E parece que você saiu de casa e também do Brasil muito cedo. Conte um pouquinho de onde você veio, da sua família...

    Setenta e cinco por cento da minha família são ingleses e irlandeses, com predominância irlandesa. Meu avô paterno é palestino. Todos eram mineradores e vieram para a América do Sul pela colônia de mineração britânica. Por algum motivo... não, por trauma mesmo, ninguém quis mais falar outro idioma na minha família. Meu avô falava com sotaque, mas só falava português comigo. Não queria que eu aprendesse inglês.

    Queria romper com o passado. Mas aconteceu alguma coisa traumática?

    Acho que as guerras... Palestino e irlandês sabem fazer bombas; de resto, não sabem fazer mais nada. Bom, com 14 anos eu tinha uma série de coisas: já era inconformado, já achava que podia, que era homem para viver minha vida. Então, olhei para meu pai e minha mãe, que não moravam juntos, e falei: Eu vou seguir minha vida. Vocês seguiram a sua, eu tenho o direito de seguir a minha.

    Eu fiz isso com 19 e já achava que era o máximo, que era o rei da cocada...

    Bom, eu já tenho filho de 16. Se meu filho falar isso, eu infarto. Mas eu acreditava naquilo e agradeço a meus pais por terem permitido.

    Permitiram ou não tiveram chance?

    É, não tinha muito diálogo. Talvez porque eu tenha sempre sido muito teimoso, eles não foram contra. Sabiam que, se tentassem me segurar, eu ia fugir. Eu ia fazer, estava claro. Eu queria sair numa boa e foi isso que fiz.

    Você queria ir para onde? Fazer o quê?

    Eu queria ter o meu espaço, a minha vida, o meu lugar. Eu não queria ter o deles. Eu queria o meu.

    Mas você não sabia o que era isso...

    Não. E aí há duas coisas. A primeira é a juvenil, de sentir-se só e sozinho: Agora, não tem mais ninguém para me encher o saco e ", pelo amor de Deus, eu preciso conversar com alguém". E uma segunda coisa: o que aprendi dos 14 aos 25 anos, sendo autodidata na vida, podia ter aprendido em três anos com alguém que me ensinasse.

    Talvez mais suavemente...

    Mais suavemente, apanhando menos. Então, hoje, acho autodidatas geniais. Mas não sou nem quero ser mais autodidata, porque, para mim, isso é muito perigoso. Quando acreditei que podia, fritei.

    Mas, então... você saiu de casa com 14 anos e foi fazer o quê? Acabou a mesada, moleque. Dane-se. E aí?

    Essa história tem toda uma convergência. Eu morava em São Bernardo do Campo. Greve dos metalúrgicos. Lula. Eu estava descobrindo sexo, drogas, rock-and-roll e política. Pancada... Polícia descendo o cacete nos caras. Junto com dois ou três amigos, eu pegava um ônibus em São Bernardo e vínhamos até o Sesc-Pompeia para assistir a um programa da TV Cultura, chamado A fábrica do som, apresentado pelo Tadeu Jungle. Um dia, quando cheguei lá, estavam tocando duas bandas, Cólera e Inocentes, e eu vi um bando de punks. Era tudo o que eu queria. Já estava tudo ali. É isso o que eu quero ser. Aí, encontrei essa história e tinha que buscar o meu destino. Achei que realmente podia e fui fazer...

    Era só fazer som? Ou foi viver essa história?

    Eu fui fazer várias coisas, obviamente, por conta do rock-and-roll, por andar na noite, porque o punk rock era uma atitude noturna. Durante o dia, o máximo que fazíamos era ir para a Estação São Bento e fazer alguns bicos para me manter.

    Era um jeito de viver...

    É, tinha um lifestyle na história. E música. Uma fascinação pela Europa. Quer dizer, branco, magrelo e nascido em São Bernardo... eu era o único ruivo da escola. Quando vi que, num lugar do mundo, tinha gente como eu, achei muito legal. Então, eu tinha fascinação pela Europa, queria ir de qualquer jeito. A música foi a ferramenta com que consegui viver o sonho de morar sozinho até chegar à Europa. Fiz vários pequenos trabalhos: fui DJ, vendi fita, fui assistente de fotógrafo. Podia fazer qualquer coisa, não escolhia. Não escolho até hoje.

    Aí, você juntou uma grana e foi para a Bélgica, já pensando em alguma coisa relacionada a comida?

    Não. O meu negócio ainda era a música. Virou comida para sempre cinco anos depois, na Itália, só para pontuar a distância entre um e outro. Eu cheguei à Bélgica com dois problemas: primeiro, como todo garoto, não sabia controlar a grana e gastei tudo mais rápido do que podia.

    Só uma pergunta: que cazzo você foi fazer na Bélgica, um país sem nada de especial? Você não era punk ? Seguisse para Londres, pelo amor de Deus!

    Vou lhe contar uma coisa: tinha um som industrial que era incrível. Era um novo movimento de música começando.

    Na Bélgica?

    É. E eu tinha amigos lá. Tinha essa coisa de maluco, de louco que vai se juntando: Deus faz e o Diabo junta. Aí, fui parar lá. Para ganhar grana, comecei a pintar parede. Precisava também conseguir o visto de permanência, sair da clandestinidade. Se eu cursasse uma escola, eu garantiria o visto; assim isso estaria resolvido. Mas aí surgiu o segundo problema: ia fazer escola do quê? Um dos meninos que pintava parede fazia escola de cozinha. Já achei que fome não passaria. Resolvia, assim, dois problemas de cara. Comecei a trabalhar em cozinhas e descobri uma coisa mais legal ainda: não precisava conhecer o idioma para cozinhar. Abriu-se outra janela: eu podia viajar para novos lugares.

    Qualquer lugar em que a linguagem fosse a cozinha.

    A linguagem era universal. E aí vão se criando aqueles mitos. Fui da Bélgica para a França.

    Mas era para pagar a conta. Viajar e pagar a conta.

    E ver show. E comprar disco. Eu achava que assim estava vivendo minha juventude.

    Mas na sua cabeça, você ia ser o quê?

    Eu ia pensar depois... Eu não tinha quem me sustentasse, não tinha um negócio para herdar, não tinha nada para fazer, não tinha um gato para puxar pelo rabo... eu podia ser um flâneur. E eu fui ser, fui viver aquele momento.

    A cozinha entrou na minha vida para realizar um sonho que era estar perto daquela cena musical que tomava conta de mim. Cinco anos depois – já casado com a Cris, mãe do meu primeiro filho, Pedro –, eu estava na Itália, cheio de ser estrangeiro. Isso é fácil de entender. Se eu falar para as pessoas daqui: Vocês querem bacalhau?, todo mundo vai se lembrar do Chacrinha. Mas quem não o conheceu não vai entender a brincadeira. Então, cansei de dar risada de piada que não entendia. É verdade: quando a pessoa não conhece o idioma, dá risada sem saber do quê. Todo mundo ria, e eu Ha! Ha! Ha! Eu também achei engraçado. Fiz muito isso. Cansei. E também tive dificuldade, era brasileiro. Naquela época, na Itália, falava-se em extracomunitário – estava se formando a Comunidade Europeia e esse tipo de visão de que quem não era da comunidade era considerado menos do que os outros.

    E a Itália é especialmente difícil nesse sentido.

    Milão, cidade burguesa... E eu vinha de cozinha francesa. Ou seja...

    Estava tudo errado na Itália.

    Mas consegui um emprego e comecei a trabalhar num restaurante. Eu me dei bem e fui chamado para outro.

    Era um restaurante legal, porcaria, bar de esquina...

    Os anteriores em que eu tinha trabalhado eram restaurantes muito legais. Esses outros já eram restaurantes básicos, mas eu não queria ir para um restaurante bom, porque os bons eram militares. A conversa não era de brincadeira. E eu estava apaixonado.

    É igual àqueles programas de televisão em que os caras gritam? Você faz isso também? Você grita?

    Não. Eu fui educado dessa forma, já fui desse jeito, mas hoje eu me comporto de maneira completamente diferente. Dentro da minha cozinha, as palavras-chave são outras: não corra, não fale e não pare. Essas são as três ordens da minha cozinha.

    A imagem nesses programas é de um inferno.

    A alta cozinha, a alta gastronomia é colocar um ingrediente, uma receita, no seu melhor lugar. Não é siga o mestre, não é Ctrl+C, Ctrl+V. É foco. Se a pessoa não entende o que está se passando à sua frente, não vai conseguir. Cozinhar bem é método, compreensão, exercício; método, compreensão, exercício. É na repetição, é na compreensão que se vai chegar à prática de estilo, à técnica. Não tem jeito. O que eu faço hoje é como um esporte. Se eu não me exercitar, se eu não tiver o melhor equipamento, não vou chegar aonde quero. É muito simples essa parte. Não tem um grande segredo. As pessoas costumam perguntar: Como você pica rapidinho assim?. São 22 anos picando! Faça isso por 22 anos e você vai ver.

    Chega uma hora em que você aprende. Bom, vamos em frente. Você estava lá no restaurante que era uma cantina, uma coisa assim.

    Era uma cozinha italiana, uma osteria. Preciso fazer uma história recente. Na Itália, aprendi uma das principais coisas para a minha cozinha de hoje: que a cozinha da mamma é essa cozinha basal. A mamma, quando cozinha, comove; a nonna, quando cozinha, mais ainda. Só que elas fazem a mesma receita. Os anos de experiência da nonna lhe conferem expertise.

    Estava na Itália, fui trabalhando. No começo, tive muita dificuldade de adaptação àquela nova cozinha. Os caras tinham problemas comigo – eu já tinha muita tatuagem, uma coisa muito de pancada. Além disso, sempre fui mais agressivo no trabalho e, como a cozinha é militar, tive muito conflito pessoal. O chef começou a perceber que os companheiros me sacaneavam na cozinha. Falavam: Por que o seu é todo bem-feitinho, todo organizadinho, todo bonitinho? Tem que fazer assim, veja. E tacavam tudo no prato. Eu dizia: Não, comida tem que ter sabor e.... E brigava com eles. Não fui o mais popular nas cozinhas italianas pelas quais passei. Um dia, fui trabalhar com um chef que começou a gostar desse cuidado a mais que eu tinha com as cores.

    Estético.

    Não é só isso. Por que a gente não compra uma maçã cortada no meio? Porque preteja. É isso.

    É tão fácil assim? Pensei que você fosse me falar uma coisa excepcional.

    Cuidar bem de um ingrediente é isso. Se o vendedor cuidou bem do ingrediente até ele chegar à sua mão, é sua missão fazer a mesma coisa. Um grande prato é composto por 60% de um bom ingrediente. Os restantes 40% são o que você pode melhorar. E errar é mais fácil do que acertar, ou seja, pegar bons ingredientes e fazer um prato ruim é a coisa mais simples do mundo.

    Voltando à nossa história... Um dia, eu estava em casa, cansado de ser gringo, de ser estrangeiro. Olhei para a Cris e disse que queria voltar para o Brasil. Ela falou: "Segurei todas as suas ondas. Estou fazendo o meu curso master aqui na Itália. Ou você cala a boca e fica comigo ou você volta para o Brasil sozinho". Muito corajoso, fiquei com ela.

    Calou a boca...

    Depois de dois meses, o chef me chamou, me deu um aumento e me promoveu a sous-chef da cozinha. Voltei para casa... Olhei para a Cris e disse: Puxa, vamos ficar na Itália. E todo prosa, todo cheio de história, contei que tinha sido promovido a sous-chef. Ela olhou para mim e falou: "Você é um tremendo babaca, porque você conhece bem o seu trabalho, faz bem, mas não dá importância a ele. Você continua parecendo um menino, por causa desse punk rock, dessa música que você gosta e não dá atenção para o que você faz bem". Nesse dia entendi que esse era o meu assunto. Aí a história se fecha. Cinco anos.

    Quando você voltou? Quando ela permitiu?

    A Cris ficou grávida e eu não queria ter filho numa cidade que não tem zoológico. Milão não tem zoológico. O povo vive urbanamente, não tem o menor apreço pela natureza naquela cidade. As pessoas que conheci não tinham a menor paixão pelo entorno. E, se tem uma coisa incrível da Itália, é que basta sair 30 quilômetros de Milão e já tem um contadino, um senhorzinho que faz um salaminho especial. Eu via aquilo, estava ali na minha frente. Milão é para mim uma cidade que não tem zoológico, que não gosta de natureza, que não gosta de vida, que não aprecia isso. Só aprecia o Rolex, a Bugatti, a Ferrari, os óculos. Eu não comungava daquele mundo e convenci a Cris a voltar para o Brasil. Voltamos.

    Aí, só para amarrar o pensamento, acho que aparece forte essa minha ligação com a natureza. É a ligação que tenho com o ingrediente e que começa já na minha infância, com um pai e um avô que gostavam de ir para o mato, que gostavam de pescar, que gostavam de pegar uma fruta no pé. Esse foi o meu diferencial na cozinha. Quando entrei na escola de cozinha, já sabia limpar peixe, já sabia depenar frango. Hoje, recebo em média 15 estagiários por mês. Eles vêm da Suécia, do Japão, do mundo inteiro, enfim, ver o que são esses ingredientes brasileiros. E não são poucos os meninos e as meninas que chegam à minha cozinha e não sabem a diferença entre sardinha e tainha. Para quem é cozinheiro, isso é o fim do mundo, é não saber diferenciar uma rosa de uma violeta.

    Para quem é florista...

    Não, é que é uma coisa da vida da gente. Não dá para confundir rosa com outra coisa. Sardinha em lata está na casa de todo mundo, é coisa de cesta básica.

    Esses garotos vêm de faculdade.

    E são marcados pela distância da natureza. As pessoas se distanciaram. Raciocine comigo: as pessoas acham matar brutal, não é? A primeira coisa que vou deixar claro é que nada justifica a morte de um animal, a não ser a alimentação. Assim é a cadeia alimentar. Então, hoje, seria chocante se eu chegasse aqui e torcesse o pescoço do frango, mas a avó de todo mundo já fez isso, e ela não era uma mulher sanguinária, não tinha tatuagem e não era bocuda.

    Você caça também, não?

    Já cacei muito, continuo caçando, mas...

    Você caça e come?

    Só caço com essa finalidade, mas tenho toda uma história para falar disso. Só que eu prefiro hoje falar desse distanciamento da natureza. Quer dizer, eu fico mal, porque as pessoas não sabem. Toda quinta-feira, tem feira na rua Barão de Capanema. Eu dou um dinheiro para o menino e peço para ele ir buscar um maço de almeirão. Eu faço de propósito.

    Eles se matam, porque não sabem o que é almeirão, voltam com alface.

    É. E aí continua a sacanagem, o sadismo prossegue... máquina de desempenar camarão. Tem que entender que não se pode ser tão limitado assim. Se alguém quer buscar o diferencial naquilo, conheça, estude, se aplique. A internet está aqui. Antigamente, isso tudo era caro, informação era coisa cara. Hoje é gratuita. Eu não aceito que um menino chegue à minha cozinha sem saber a diferença entre elementos básicos.

    É um absurdo mesmo, estou impressionado. Não achei que fosse assim.

    É assim. E isso para tudo. Cozinheiros que não fazem a menor ideia de que picanha tem em qualquer boi do mundo. Veja como é o raciocínio: as raças bovinas europeias, em linha geral, não se adaptavam ao Brasil. As raças que vingaram na América do Sul foram as indianas zebuínas. Característica do zebu: cupim. Então, vamos dizer que só países que têm o zebu têm cupim. Brasil, cupim, zebu, picanha. É assim. Num dos meus livros, fiz uma tábua com os cortes brasileiros, os cortes europeus e os cortes americanos para a pessoa entender que todos aqueles pedaços estão dentro de qualquer boi. Então, é só a maneira de cortar que é diferente. Essa é a distância que vejo hoje entre as pessoas e o elemento primeiro que elas pretendem cozinhar.

    Juro que achei que as pessoas chegassem até você mais preparadas. Você acha que isso é porque virou bacana ser chef, então vem um desavisado qualquer e começa a querer ser chef também?

    Vou contar uma história que já relatei recentemente e venho repetindo quase como um mantra. Outro dia, aconteceu o evento Paladar. Fui o principal chef do evento, porque é um acontecimento pensado para a cozinha brasileira e a aula de fechamento é a minha. Logicamente, eles colocaram um jornalista de O Estado de S.

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