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Xamanismo: a palavra que cura
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Xamanismo: a palavra que cura
E-book478 páginas6 horas

Xamanismo: a palavra que cura

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Sobre este e-book

Xamanismo: a palavra que cura situa-se no plano da literatura comparada e nas suas articulações pós-modernas com as teorias pós-coloniais. Na perspectiva do confronto e da interpelação, o trabalho de Marcel de Lima serve-se da noção de conflito, no plano metafórico, para configurar o xamã como um guerreiro. "Ele é a encarnação dos poderes da cura mística; para além do alcance da ciência e da medicina, as quais saram, mas não curam; ele age de acordo com os mandamentos dos espíritos da natureza; ele se dirige ao conhecimento como quem vai à guerra, disposto a derramar seu sangue nos campos de batalha." O livro anota com precisão três fases distintas da metamorfose ocidentalizante do xamã. Nos dois primeiros séculos da ocidentalização das Américas, ele é tido como figura diabólica. No terceiro século, ganha os contornos de figura exótica, acusado de charlatão. E, finalmente, na modernidade, é acatado como personagem e fermento do discurso etnopoético, que redefine a poesia em termos de especificidades culturais, com ênfase nas tradições outrora chamada de pagãs, tribais, orais etc. Nessa terceira fase, o xamã não é mais tolerado, é respeitado por todos aqueles que se lançam à compreensão das perplexidades da contemporaneidade. Ele é fator de diálogo e é fundamento da etnopoética. Não há como caracterizar de maneira simples e uniforme as práticas xamânicas entre nós. Além de eterno sobrevivente, ou melhor, além de um lutador pela sobrevivência no interior de "sistemas perversos", o xamã é também, como o deus Proteu, um ator que interpreta vários papéis no correr da história da ocidentalização dos seus povos. O fenômeno do xamanismo tem sido, acima de tudo, um conjunto de práticas em constante transformação, que tem mostrado um grande senso de adaptabilidade em qualquer tipo de encontro multicultural no qual se tenha envolvido.
IdiomaPortuguês
EditoraPaulinas
Data de lançamento11 de abr. de 2013
ISBN9788535634778
Xamanismo: a palavra que cura

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    Pré-visualização do livro

    Xamanismo - Marcel de Lima Santos

    Marcel de Lima Santos

    XAMANISMO:

    a palavra que cura

    www.paulinas.org.br

    editora@paulinas.com.br

    www.pucminas.br/editora

    editora@pucminas.br

    Para Leila, Lelio, Bruno, Isabela e Kali

    Apresentação da coleção

    Acoleção Estudos da Religião traz ao público uma elaborada reflexão multidisciplinar sobre o fenômeno religioso. Como é próprio dessa investigação, serão reunidos títulos com diversas perspectivas, além das já clássicas linhas de pesquisa em Ciências da Religião. Portanto, o leitor encontrará várias abordagens sobre a questão religiosa que poderão abranger pesquisas em Filosofia, Teologia, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Geografia, História e Estudos Comparados, bem como as intercessões entre Ciência, Economia, Direito, Relações Internacionais, Educação e a questão religiosa.

    Para promover esta coleção, o apoio e a parceria de três frentes de colaboradores têm sido essenciais. De um lado, refletindo a pesquisa de mais de trinta anos no Brasil, renomados investigadores da área apresentarão suas reflexões, análises, pensamentos e diagnósticos. De outro, será confiada a novos pesquisadores a tarefa de aproximar o grande público dos resultados de seus recentes estudos. Por fim, este será também um espaço editorial destinado a levar ao leitor uma selecionada coletânea de textos traduzidos que enriquecerão o debate e a pesquisa na área.

    Professor Dr. Flávio Senra Coordenador da coleção pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião PUC-Minas

    Prefácio

    Estamos diante de uma legítima tese acadêmica, que se transformou em livro pouco comum nas estantes da cultura brasileira. São poucas as teses escritas por nossos mestrandos e doutorandos que escapam ao contexto do nacional e às regularidades conferidas por uma dada e eleita disciplina das ciências humanas. São poucos os livros escritos por intelectuais brasileiros que se aprofundam com conhecimento de causa em território geográfico que nos é distante ou estranho. Poucos são também os autores que decidem enfrentar de maneira tão radical o deus da razão e as argúcias das instituições milenares do Ocidente. É claro que, para poder quebrar tantos tabus enraizados no nosso solo cultural, acadêmico e religioso, o livro que irão ler (avisar não machuca) pouco trata do tópico entre nós.

    Marcel de Lima Santos e Xamanismo: a palavra que cura se situa entre os poucos. Dessa nota dissonante tira a maior parte do seu interesse para o leitor brasileiro disposto a entrar em terreno que não lhe é alheio, mas que desde sempre sofreu os imperativos da modéstia, em virtude dos maus-tratos que recebem os indígenas nômades, e do esquecimento, como conseqüência do notável e controvertido trabalho feito pela Companhia de Jesus. Apesar do piparote que foi dado pelos professores estrangeiros que nos visitaram, em geral antropólogos, aos múltiplos aspectos da questão, só mais recentemente estudiosos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, como Eduardo Viveiros de Castro, e da Universidade de Brasília, como José Jorge de Carvalho (para citar apenas dois nomes de uma plêiade de mestres e discípulos), têm pesquisado e escrito sobre assunto tão candente e atual − e tão originariamente nosso. Muitos desses novos estudiosos não só reclamam a multidisciplinaridade, como também se casam, ou apenas flertam com as já hoje canônicas teorias pós-coloniais.

    É certamente no plano da literatura comparada e nas suas articulações pós-modernas com as teorias pós-coloniais que melhor se encaixa Xamanismo: a palavra que cura. Haja vista uma primeira precaução de Marcel. Introduz a questão de gênero (gender, em inglês) logo na primeira página: Sempre e quando eu me referir ao xamã em termos masculinos, entenda-se apenas um recurso de estilo, visto que a figura xamânica não só apreende ambos os sexos, como muitas vezes se faz hermafrodita. Com o correr da tese, o detalhe de uma nota de pé de página vai ganhando dimensões incalculáveis, que poderão ser englobadas sob o lema do(s) excluído(s) que precisa(m) ser incluído(s). A esse respeito, consulte-se, já no segundo capítulo, a admoestação de Robert Duncan:

    Para compor tal conjunto do todo, todas as antigas ordens excluídas precisam ser incluídas. O feminino, o proletariado, o estrangeiro; o animal e o vegetal; o inconsciente e o desconhecido; o criminoso e o fracassado – todos os marginalizados e errantes precisam voltar a ser admitidos na criação daquilo que consideramos como a nossa identidade.

    Haja vista, ainda no tópico referente à literatura comparada e às teorias pós-coloniais, a leitura exemplar do franciscano espanhol Bernardino de Sahagún que, à metade do primeiro capítulo, é feita por Marcel. Ele detecta que na versão em náuatle do texto de Bernardino sobre os astecas, o vocábulo diablo ( demônio, em português) é o único que aparece em espanhol. Leiamos o momento da descoberta: "A palavra demônio, que não pertence à língua asteca, aparece como representação dos valores cristãos de Sahagún, o que pode ser confirmado na leitura do texto em nahuatl, onde a palavra aparece em espanhol (diablo)." Páginas adiante, com a ajuda de John Keber que, por sua vez, se valeu dos princípios da hermenêutica levantada por Hans-Georg Gadamer, explicita a sua metodologia de leitura dos textos propriamente coloniais e colonizadores:

    Portanto, a idéia é a de se utilizar os preconceitos, nesse caso os de Sahagún, bem como sua obra, sob o escopo da hermenêutica, e é a de interpretar palavras dele sob o escopo de sua própria experiência cultural, assim como de seus conceitos religiosos: a visão européia da cultura asteca, a importância da diferença cultural (preconceito) na composição e interpretação do conhecimento.

    Depois de tal leitura é que o autor pode afirmar com convicção que Sahagún foi confrontado por práticas que desafiavam suas crenças cristãs para além da necessidade da conversão.

    É o tópico do confronto e da interpelação que serve para sedimentar o trabalho de Marcel de Lima nos atuais tempos de guerra e conflitos étnicos. É a noção de conflito, no plano metafórico, que lhe serve na configuração do xamã. Marcel o enxerga como um guerreiro:

    Ele é a manifestação dos poderes da cura mística; para além do alcance da ciência e da medicina, as quais saram, mas não curam; ele age de acordo aos mandamentos dos espíritos da natureza; ele se dirige ao conhecimento como quem vai à guerra, disposto a derramar seu sangue nos campos de batalha.

    Guerreiro e visionário, diante da ordem do discurso ocidental, para usar o termo de Michel Foucault, o xamã interpela as múltiplas disciplinas do conhecimento. Suas habilidades − escreve Marcel − vão da política à história, passando pela arte e pela medicina.

    Eis a principal razão por que o xamã vem sendo maltratado pelos ocidentais e pelo nosso saber acadêmico. Desde as grandes descobertas do renascimento europeu, ele vem recebendo variada roupagem destrutiva dos seus estudiosos. Marcel anota com precisão três fases distintas da metamorfose ocidentalizante do xamã, que serão estudadas posteriormente com o devido cuidado. Nos dois primeiros séculos da ocidentalização das Américas, ele é tido como figura diabólica. No terceiro século, ganha os contornos de figura exótica, acusado que foi de charlatão. E, finalmente, na modernidade é acatado como personagem e fermento do discurso etnopoético. Só os artistas, pelo viés do conhecimento do que seja criação, o entendem.

    Nessa terceira fase, o xamã não é mais tolerado, é respeitado por todos aqueles que se lançam à compreensão das perplexidades da contemporaneidade. Ele é fator de diálogo e é fundamento da etnopoética. Sobre esta, diz Jerome Rothenberg, citado por Marcel: A etnopoética se refere a uma redefinição da poesia em termos de especificidades culturais, com ênfase naquelas tradições alternativas que o Ocidente chamou de ‘pagãs’, ‘gentílicas’, ‘tribais’, ‘orais’, e ‘étnicas’.

    A terceira fase só foi possível graças à mediação, entre a primeira fase e a segunda, da droga alucinógena. Lá nos primeiros séculos, como reação ao trabalho dos evangelistas; aqui, desde o século XIX, como moeda corrente entre muitos dos grandes autores românticos europeus. O raciocínio de Marcel teria de ser preciso e contundente, já que atravessava o túnel do paradoxo histórico, em nada evolutivo, no sentido estreito deste adjetivo. Ei-lo:

    Com exceção de seu valor médico, o clero não aprovava o uso de alucinógenos, os quais, com o canibalismo ritual e o sacrifício humano, formavam o triunvirato satânico aos olhos dos evangelistas. E foi precisamente a resistência do complexo alucinógeno, dentro da sociedade colonial, o que poderia domar o sobrenatural cristão e, afinal, revelar as limitações do cristianismo.

    Não há, portanto, como caracterizar de maneira simples e uniforme as práticas xamânicas entre nós. Além de eterno sobrevivente, ou melhor, além de um lutador pela sobrevivência no interior de sistemas perversos, o xamã é também, como o deus Proteu, um ator que interpreta vários papéis no correr da história da ocidentalização dos seus povos. Alerta Marcel: O fenômeno do xamanismo tem sido, acima de tudo, um conjunto de práticas em constante transformação, que tem mostrado um grande senso de adaptabilidade em qualquer tipo de encontro multicultural no qual se tenha envolvido.

    Dispostas as pedras que compõem o alicerce teórico e metodológico da tese, ou melhor, construído o alicerce do tabuleiro em que se passará a jogar com os princípios de uma nova poética, Xamanismo: a palavra que cura sai em busca da análise e interpretação das obras dos grandes autores que trabalharam a ampla, luxuriosa e destemida questão do xamã no mundo ocidental. São três os autores priorizados, são três os casos examinados com a lente da erudição e da admiração: Black Elk e a descrição poética da sua visão xamânica (capítulo III), María Sabina e a (re)descoberta dos antigos cantos de cura trabalhados pelos estudiosos e os poetas ocidentais (capítulo IV) e Carlos Castaneda e as representações alegóricas no seu pensamento mágico (capítulo V). Os exemplos de filósofos, poetas e ensaístas que desde a Antigüidade clássica trabalharam com o assunto poderiam ser multiplicados ao infinito e o são com habilidade no decorrer do segundo capítulo.

    Houve, no entanto, que limitar o corpus. Priorizar a contribuição de Elk, Sabina e Castaneda. Teremos apenas de lamentar, no plano pessoal, que não tenha sido dado papel prioritário à figura do duende (palavra retirada do idioma andaluz), tal como nos poemas e peças de Federico García Lorca, um dos autores de nossa preferência. Mas isso são picuinhas de velho...

    Um prefácio e, em particular, um prefácio de livro tão densamente urdido e orquestrado como é Xamanismo: a palavra que cura terá necessariamente de se confundir com um trailer cinematográfico. Uma hora e meia de espetáculo em uma pílula de alguns poucos minutos. Um épico singularizado em algumas poucas cenas picotadas, que devem perturbar e encantar o espírito curioso. Não há como, em poucas e sucintas linhas, roubar de Marcel de Lima Santos a mise-en-scène das três últimas seqüências, dos três últimos capítulos do livro, onde o erudito passa em revista com maestria os vários aspectos dos três autores acima citados.

    O prefácio serve, portanto, para despertar a curiosidade do futuro leitor, para ganhá-lo, não para si, mas para o verdadeiro autor e seu livro. Neste caso, serve também para fazer o leitor entrar num mundo em que, à primeira vista, os personagens e a trama podem lhe parecer estranhos ou obscuros. E na verdade não o são.

    Missão cumprida.

    Silviano Santiago

    Junho 2006

    Introdução

    ¿Cómo es ser un chamán?

    Es sobre la laguna, y la nieve, y los ríos, de todos los puntos sagrados que dejaron nuestros antepasados, años y años. El caso de ese cerro, o aquel cerro. Los viejos dejaron una representación; esa representación es... es... es para que cuiden, esos sí que son los verdaderos mamos. Los que son mamos ya humanos, son los administradores. Son mamos pero ya como que de segundo plano, me entiendes?¹

    Oxamanismo é o fenômeno que se refere à prática de um xamã, o líder espiritual de comunidades ditas primitivas, ao redor do mundo. ² Dos nativos americanos da América do Norte aos aborígines da Oceania, passando pelas tribos da África, a figura xamânica se faz presente e incorpora uma série de atividades ligadas ao sobrenatural, que vão, dentre outras, da política à medicina, da arte à ecologia.

    Nos atuais tempos de guerra e conflitos étnicos, a figura do xamã, o guerreiro do conhecimento, adquire dimensões insuspeitas ao olhar ocidental. Certamente uma das mais características representações individuais da apropriação religiosa, cultural e política no Ocidente nos últimos quinhentos anos, esta intrigante personagem liminal, símbolo da sobrevivência étnica de tradições assimiladas pela cultura da razão européia, encerra, neste milênio tecnológico que nos abarca, os valores fundamentais à sobrevivência não de determinada cultura ou etnia, mas de toda uma raça: a humana.

    Pode-se dizer que, por um lado, o xamã é o curandeiro ferido pela própria morte, em vida; aquele capaz de restaurar os males mortais com a ajuda do espírito presente nas forças invisíveis da natureza, por ele controladas. Ele é a manifestação dos poderes da cura mística; para além do alcance da ciência e da medicina, as quais saram, mas não curam, o xamã age de acordo aos mandamentos dos espíritos da natureza; ele se dirige ao conhecimento como quem vai à guerra, disposto a derramar seu sangue nos campos de batalha.

    Por outro lado, o xamã é o charlatão, cuja personalidade delirante o faz acreditar alcançar estados de consciência alterada, com os quais ele ludibria toda sua comunidade. Uma figura à beira da esquizofrenia, o xamã exerce seu poder tirânico ao dominar as forças naturais e assim determinar a sorte ou azar de todos ao seu redor. Como a verdadeira personificação da manipulação do conhecimento, o xamã incute o medo nos que não possuem seu grau de sabedoria das forças ocultas.

    As várias definições da figura do xamã, apresentadas nos parágrafos acima, são por demais conspícuas e denominam de forma sucinta as diferentes e ambíguas representações do olhar ocidental sobre as práticas xamânicas. Ao longo dos últimos quinhentos anos, as representações do xamanismo no Ocidente percorreram um caminho que se iniciou no domínio do diabólico, pelos códices preparados pelos missionários espanhóis nos séculos XVI e XVII, passaram pelo exótico, fruto dos relatos de viajantes europeus às remotas regiões da Ásia e da África, nos séculos XVIII e XIX, e veio a desembocar no estético, proveniente da confluência e justaposição de representações, assimilações e apropriações culturais e artísticas do século XX. O recorte apresentado neste livro visa, a partir de uma contextualização histórica do fenômeno do xamanismo, examinar as variantes representacionais, dentre uma vasta gama de textos produzidos no século passado, sobre xamãs e experiências xamânicas. Estes incluem, principalmente, obras literárias, etnográficas, históricas e autobiográficas, as quais estão cuidadosamente colocadas dentro de seus contextos intelectuais e/ou genéricos. Dessa forma, a primeira parte do livro se destina a oferecer um panorama amplo das diferentes atitudes em relação à representação do fenômeno no Ocidente, particularmente nos encontros entre os jesuítas e as culturas nativas americanas e suas práticas religiosas nos séculos XVI e XVII. A seguir, a investigação trata da criação da categoria do xamanismo nos séculos XVIII e XIX, a fim de lidar com as dimensões literárias do interesse nas práticas xamânicas. A partir de então, passa-se a examinar os discursos etnopoéticos envolvidos nos três estudos de casos propostos, baseados em encontros entre figuras xamânicas e a cultura ocidental; respectivamente, Nicholas Black Elk, um xamã Lakota da América do Norte e sua relação com o poeta John G. Neihardt; María Sabina, uma curandeira Mazateca mexicana, e seu tratamento pelo micólogo R. Gordon Wasson; e o antropólogo Carlos Castaneda e a problemática de seu informante Yaqui Don Juan Matus.

    O tema geral deste livro é, portanto, um estudo do xamanismo, visto como um fenômeno poliforme que tem acompanhado a humanidade desde tempos pré-históricos. O termo xamanismo se refere mais estritamente ao fenômeno religioso presente na Sibéria e Ásia Central, mas práticas mais amplas têm sido observadas na maior parte das culturas, tanto em sociedades primitivas quanto em civilizadas, ao redor do mundo. Esse fenômeno envolve a prática de um xamã, ou curandeiro, aquele que incorpora a habilidade e o desejo de alcançar um estado de consciência alterada, freqüentemente à beira de um colapso psíquico, para uma variedade de propósitos que envolvem o sobrenatural.³ Assim sendo, a figura do xamã assume uma posição central na representação da complexidade de tal prática. A figura visionária do xamã na verdade encerra uma gama de habilidades que, em termos ocidentais, vão da política à história, passando pela arte e pela medicina. No que se refere ao recorte aqui apresentado, ou seja, às representações etnopoéticas do xamanismo, pode-se afirmar que a inspiração poética encontra um paralelo nas práticas xamânicas. A preparação do xamã para adentrar o mundo espiritual de fato sugere a mesma liberdade mística que perpassa a criação literária. Segundo Mircea Eliade, a criação poética ainda permanece um ato de perfeita liberdade espiritual… o mais puro ato poético parece recriar a linguagem a partir de uma experiência interior que, como o êxtase ou a inspiração religiosa dos ‘primitivos’, revela a essência das coisas.

    Apesar das práticas xamânicas terem sido indiretamente registradas, e freqüentemente mal reconhecidas, por observadores e escritores ocidentais, é somente a partir do final do século XIX que tais práticas assumem um status particular entre os discursos sobre primitivismo e os debates sobre magia e racionalidade. Isso se deve tanto ao desenvolvimento da antropologia quanto às variações tardias do romantismo na Europa, com sua valorização do oculto e do irracional. O objetivo da investigação foi propiciar a reconceitualização dos debates sobre magia, religião e racionalidade por meio da análise do processo histórico dos mesmos, mostrando, por exemplo, as formas pelas quais determinadas figuras se tornam privilegiadas em termos de autoridade científica e/ou experiencial.

    A idéia desenvolvida neste livro, no entanto, visa às representações das práticas xamânicas no Ocidente nos últimos cem anos. A fim de oferecer um melhor entendimento de tais representações, faz-se necessária uma análise histórica do fenômeno, a partir da qual se torna possível a discussão dos diálogos interdisciplinares, envolvendo fundamentalmente literatura e etnografia, presentes em textos que lidam com as práticas xamânicas. A partir de então, os três casos de estudo, envolvendo encontros entre o homem ocidental e a figura de um xamã, são apresentados a fim de serem introduzidos nos discursos etnopoéticos em direção à formação de uma poética do xamanismo.

    O interesse primordial do livro passa pela discussão e análise de algumas das idéias, experiências e indivíduos que parecem não se adequar às formas usuais de representações etnográfica, histórica e/ou literária. Assim sendo, dá-se ênfase aos xamãs, repositórios sagrados de uma identidade cultural em constante processo de adaptação, e à maneira em que diferentes formas de representação interagem com categorias conceituais como mito, visão, magia e religião, assim como fraude e charlatanismo, ao tentarem representar as figuras xamânicas e suas atividades.

    Ao se enfatizar a questão da representação em vez da precisão fatual, se torna possível reunir uma diversidade de textos em conjunções que revelam instigantes semelhanças e continuidades entre obras de cunho científico/acadêmico e outras que têm operado nas fronteiras da legitimidade. Assim sendo, tento demonstrar que as representações do xamanismo têm se movido da esfera do diabólico para a do exótico, para finalmente chegar à do espiritual e do estético nas Américas, durante os últimos quinhentos anos. É de fato a própria natureza marginal do fenômeno do xamanismo que lhe tem propiciado sua importância discursiva e simbólica dentro do pensamento etnopoético ocidental, o que vem traduzir suas representações em estudos que necessariamente perpassem as fronteiras interdisciplinares.

    A questão da identidade também se faz premente quando da investigação cultural, particularmente a partir do século XX, época na qual as identidades em geral não mais pressupõem a continuidade de culturas e/ou tradições. No mundo globalizado da pós-modernidade, tanto indivíduos como grupos passam a improvisar performances artísticas através de uma busca fragmentária, seja na mídia estrangeira, nos símbolos e/ou na linguagem, a partir do resgate de passados comuns ou aleatórios. A idéia de uma existência que se percebe fragmentária, traduzida pelo processo de ruína cultural e decadência intelectual do mundo moderno, formulada pelo estruturalismo da década de 1950, expressa ainda uma triste verdade: a de que a presumida desintegração de diferenças culturais, em direção a uma insípida vila global, também comece a perder força no nascer do novo milênio, tanto pela questionável posição eurocêntrica de uma visão unificada da história do homem, como pela emergência da representação de novas identidades. Apesar de a maioria das populações indígenas mundiais terem sido dizimadas, senão demográfica pelo menos ideologicamente, o confronto entre as comunidades nativas e a civilização revela um processo no qual muitas vezes a destruição se mistura à invenção. A continuidade das identidades étnicas e culturais dos povos nativos das Américas, nos quais a figura xamânica incorpora como nenhuma outra essa continuidade de tradições e identidades, em constante mutação, tem sido resultado de uma batalha complexa, onde as estruturas de poder se transposicionam no processo histórico de um contínuo fim (exterminação) e renascimento (traduções) das diversidades culturais e suas representações.

    A cultura ocidental como um todo, ao não tolerar o inexplicável (matéria-prima da existência e prática xamânicas), passa à tentativa de uma explicação total dos fenômenos ditos sobrenaturais, até que estes sejam relegados a um plano onde não ofereçam ameaça ao pensamento lógico-racional; em termos literários, poderíamos dizer que nossa cultura tem, ao longo do tempo, concedido muito ao pragmatismo de Sancho Pança em detrimento da imaginação de Dom Quixote. Assim sendo, a figura xamânica, enquanto exploradora do desconhecido e do imaginário – esses enormes campos da experiência humana que são freqüentemente negligenciados pela cultura ocidental –, passa a representar um entre-lugar que fragiliza as falsas separações (tão necessárias e bem-vistas pelo olhar da cultura ocidental em geral) entre o fato e a ficção, o verdadeiro e o falso, a vida e a arte.

    As reflexões aqui apresentadas estão fundamentadas em discursos etnopoéticos desenvolvidos a partir das representações sobre o fenômeno do xamanismo. O termo etnopoética começou a ser usado por um grupo de poetas e pensadores, em meados do século XX, para caracterizar a necessidade de inclusão das representações literárias de tradição fundamentalmente oral de povos ditos primitivos no cânone literário ocidental. O pensamento ocidental há muito vem considerando os povos primitivos como representantes menores da cultura literária em geral, por sua ligação intrínseca com as representações orais em detrimento das escritas. Vários poetas contemporâneos têm procurado mudar esse ponto de vista baseando-se em uma nova poética, a qual representaria mais completamente as culturas humanas ao redor do mundo, incluindo-se aqueles povos cujas obras têm sido marginalizadas pelo escopo exclusivista da tradicional cultura literária do Ocidente. Esse movimento tem se preocupado com uma redefinição complexa de valores culturais e intelectuais que envolvem a idéia de uma etnopoética.

    Essa nova poética, que paradoxalmente pode ser traçada no tempo com origem no Paleolítico, está envolvida com obras experimentais pertencentes ao período histórico do romantismo à poesia moderna contemporânea.⁵ Assim sendo, considera-se que as práticas xamânicas possam ser representadas de forma mais abrangente e menos preconceituosa e/ou marginalizada, sob a luz dessa nova idéia conceitual que conecta a poesia à etnografia. Uma etnopoética poderá de fato permitir às representações artísticas das práticas xamânicas uma reflexão mais completa e interativa das tradições nas quais a arte, bem como a cultura em geral, está intimamente ligada aos valores religiosos como um todo, revelando a complexidade do primitivo em contraste ao civilizado. Epítome viva de valores ditos primitivos pela civilização do conforto, a figura do xamã, o curandeiro ferido – ao representar aspectos fundamentais do homem enquanto ser vivo e participante do movimento cíclico da natureza, onde a criação se faz em harmonia e não com destruição –, confronta e desafia os preconceitos do etnocentrismo ideológico, religioso e cultural do Ocidente, os quais, freqüentemente, atingem os ora vistos delírios belicistas, de proporções assustadoras e imprevisíveis.

    Capítulo I

    Uma avaliação histórica do xamanismo

    1.1. Definindo-se o xamanismo

    Apesar de os primeiros relatos mais abrangentes a respeito do xamanismo, feitos principalmente por naturalistas e exploradores com as comunidades siberianas, terem aparecido no final do século XIX e início do século XX, ⁶ práticas xamânicas têm sido reportadas no Ocidente desde o quinto século antes de Cristo. É interessante observar que, apesar das semelhanças encontradas entre as práticas xamânicas e a Bacanália Dionisíaca, onde se observam certas práticas afins, o xamanismo grego está mais relacionado a Apolo. ⁷ Acredita-se que, de fato, aqueles antigos xamãs chegaram à Grécia, vindos do norte, da região dos Hyperbóreos, terra natal de Apolo. ⁸ Entre as primeiras representações do xamanismo no Ocidente, encontramos, por meio de Heródoto, os feitos dos poetas cízicos ⁹ Aristéas e Abaris. Tanto o vôo mágico do último, como as transformações animais extáticas do primeiro possuem traços típicos de práticas xamânicas tradicionais. ¹⁰ Outras figuras da Grécia antiga que também apresentam traços xamânicos são Hermótimo de Clazomena, que tinha o poder de sair do próprio corpo, Epimenedes de Creta, que interpretava o futuro, e Empédocles, que, inspirado pelos deuses, revelava a verdade aos homens. ¹¹

    Práticas xamânicas foram indiretamente registradas e freqüentemente não reconhecidas durante muito tempo por observadores e escritores ocidentais, e é somente no século XIX que elas adquirem um status particular dentre os discursos ocidentais sobre primitivismo e os debates entre magia e racionalidade. De fato, a obra clássica de Mircea Eliade foi a primeira a fornecer um estudo histórico do fenômeno do xamanismo, sistematizando e unificando as até então espalhadas e escassas fontes etnográficas.¹² Eliade é certamente o principal pesquisador do xamanismo entre os pensadores ocidentais e, em minha opinião, a visão hoje consagrada do fenômeno como um conceito religioso fundamental, isto é, do xamanismo como o ingrediente primordial da religião, é proveniente de sua extensa pesquisa sobre o assunto. Longe de ser uma autoridade neutra, Eliade é por assim dizer o criador da categoria xamanismo. Originário da Romênia, Mircea Eliade lecionou na École des Hautes-Études da Sorbonne e foi Diretor do Departamento de História das Religiões da Universidade de Chicago. Como publicou muitas obras seminais em temas ligados à religião, Eliade foi certamente o primeiro pesquisador ocidental a considerar a problemática do xamanismo e defini-la em sua complexidade. Curiosamente, antes de se tornar um historiador das religiões, dedicando sua vida à reinterpretação investigativa das dimensões sagradas da religião e do pensamento, alinhando-os à dessacralização contemporânea da natureza, Eliade foi um escritor de literatura experimental na Romênia, publicando romances (incluindo ficção oculta), escritos de viagem e filosofia pessoal. O pesquisador romeno se preocupou em definir as características essenciais do fenômeno a fim de identificar seus padrões arcaico-religiosos unificadores, os quais ele acreditava interpretarem um papel primordial na diferenciação entre o xamanismo e outras práticas paralelas também baseadas em estados de transe e/ou possessão.¹³ Entretanto, vale a pena salientar-se que Eliade não foi o único a interpretar o xamã como um especialista na alma humana, visto que outros pesquisadores também começaram a escrever comparativamente sobre o xamanismo, explorando seus sistemas ideológicos essenciais.¹⁴ A partir de então, o xamanismo se torna uma categoria reconhecida nas crescentes ciências sociais. No sentido mais amplo, isso estaria relacionado tanto ao surgimento e desenvolvimento da antropologia quanto às variações tardias do romantismo, com sua valorização do oculto e do irracional.

    O xamanismo é evidentemente uma das mais antigas formas da vocação religiosa, encontrada nas culturas pré-históricas de caçadores da Sibéria, onde o xamã, que também exerce os papéis de mago, curandeiro e poeta, se lança no vôo mágico à sabedoria, cura e clarividência. A manifestação dessa vocação ocorre por meio de uma crise profunda. Seguindo o conceito de Eliade (Shamanism, 1964, p. 4), por uma ruptura no equilíbrio psíquico do xamã, o xamanismo opera como a técnica arcaica do êxtase.

    O fenômeno do xamanismo é primordialmente uma experiência religiosa. No entanto, trata-se de um tipo muito diferente, até mesmo estranho, de religião aos olhos do homem ocidental, que se acostumou a ver as práticas religiosas antes como fundamentalmente comunais e intelectuais do que uma experiência dos sentidos. Os xamãs são pessoas que podem escapar da vida mundana e mergulhar em outros níveis de consciência através do chamado vôo mágico. Entretanto, ao contrário dos médiuns, os xamãs agem conscientemente. Isso significa que eles podem mover-se do mundo racional do conhecimento lógico em direção ao reino mágico do reconhecimento sobrenatural, o qual fornece ao xamã mensagens inalcançáveis pelos níveis usuais de consciência.

    O xamanismo é prática comum entre tribos nômades de tradição caçadora, na qual se verifica uma constante busca de sustentação, em vez da tradição agricultural sedentária.¹⁵ O mundo sofreu mudanças profundas desde o tempo da vida selvagem abundante e na medida em que o sedentarismo aumentou, com as funções sociais crescentemente diferenciadas, as tradições xamânicas passaram também a sofrer algumas mutações. Há somente dez mil anos o homem aprendeu as técnicas agriculturais e passou a viver em cidades, deixando para trás um meio de vida completamente nômade. No entanto, os primeiros indícios da atividade humana datam da era paleolítica (por volta de um milhão de anos atrás). Isso significa que a raça humana passou 99% de sua existência como nômade e esse aspecto não pode ser facilmente apagado de nossa memória coletiva ou até mesmo de nossa herança genética. As evidências de elementos xamânicos na religião dos caçadores paleolíticos têm sido fornecidas, segundo Eliade, por pesquisas recentes, tais como a interpretação de Horst Kirchner do celebrado relevo de Lascaux como uma representação de um transe xamânico.¹⁶ Seguindo esse conceito, Eliade conclui que, em caso de sua aceitação como tal, os feiticeiros pré-históricos já teriam feito uso de tambores comparáveis àqueles dos xamãs siberianos.

    O xamã é tradicionalmente o líder espiritual da tribo. De acordo com Eliade, a figura xamânica exerce um papel importante, senão essencial, em sua comunidade: os xamãs têm assumido uma liderança fundamental na defesa da integridade psíquica de sua comunidade. Eles são proeminentemente os campeões anti-demônicos; eles combatem não somente os demônios e as doenças, mas também a magia negra (Shamanism, 1964, p. 508). Eliade descreve o xamã como um guardião protetor de sua comunidade, um verdadeiro guerreiro que defende os vivos dos ataques da doença, aquele que mantém aceso o fogo simbólico da vida, em constante ameaça pela escuridão da morte: de maneira geral, pode-se afirmar que o xamã defende a vida, a saúde, a fertilidade, o mundo da ‘luz’ em oposição à morte, às doenças, à esterilidade, aos desastres e ao mundo da ‘escuridão’.

    A autoridade xamânica advém não só da capacidade dos curandeiros de se comunicar com o mundo espiritual e assim ter acesso a certas forças misteriosas, como as que comandam as forças naturais da chuva e da colheita, mas também de sua habilidade em controlar essas forças com rituais e sacrifícios conhecidos apenas por eles. Essas práticas xamânicas envolvem o alcance de um estado alterado de consciência do xamã por meio de um desarranjo consciente e extremo da psique, ou seja, de um vôo mágico em direção de um estado extático da percepção. Isso é alcançado por meio de um número de técnicas que, em termos gerais, inclui o jejum, o afastamento solitário e/ou a ingestão de plantas sagradas, assim como a batida incessante do tambor acompanhada de cantos rítmicos e performances dramáticas.

    Uma vez que o estado de consciência alterada ou extática é alcançado, o xamã tem acesso às forças misteriosas do mundo sobrenatural. Ele pode a partir de então exercer uma série de atividades extraordinárias tais como a transformação em animal, a previsão de eventos futuros, a revelação de eventos passados, o comando da chuva, assim como quaisquer outras manifestações climáticas, e tanto cura dos doentes como a infecção mortal dos saudáveis. Eliade vê o xamanismo como o poder da força humana contra as forças sobrenaturais e os xamãs como depositários de tal poder:

    O xamanismo traz a certeza de que os seres humanos não estão sozinhos em um mundo estrangeiro, rodeados por demônios e forças do mal. Semelhantes aos deuses e seres sobrenaturais, aos quais são feitos sacrifícios e orações, os xamãs são especialistas do sagrado, homens capazes de ver os espíritos, de subir aos céus e encontrar-se com os deuses, de descer ao mundo inferior e lutar contra os demônios, a doença e a morte (Shamanism, 1964, p. 509).

    O xamã é um homem de poder e conhecimento cujo transe leva sua alma tanto às alturas do paraíso quanto às profundezas do inferno. Em qualquer dos casos, ele não escapa de seu corpo para um prazer pessoal; viaja com o intuito de ajudar seu paciente, freqüentemente alguém que perdeu contato com seu espírito-guardião há muito tempo. Esse espírito-guardião é a base de poder para o xamã. Michael Harner define o espírito-guardião como um poder animal que não só proteje e serve ao xamã como também se torna sua outra identidade, seu outro ser.¹⁷

    O xamanismo é uma experiência poderosa formidável, que requer um equilíbrio mental e espiritual extremo, na qual xamã e paciente realizam uma viagem emocional, ao transporem o limite de um mundo paralelo, para penetrar no domínio mítico da matéria dos sonhos. De acordo com Joan Halifax:

    O xamã, uma figura mística, religiosa e política que emerge durante o Alto Paleolítico e talvez proveniente do período Neandertal, pode ser descrito não somente como um especialista na alma humana, mas também um generalizador, cujas funções sociais e sagradas cobrem uma extraordinária ampla ordem de atividades. Os xamãs são curandeiros, clarividentes e visionários que dominaram a morte.¹⁸

    Similarmente, para Eliade, esse misterioso poder de viajar no mundo sobrenatural tem de fato colaborado para que o xamã adquira um maior conhecimento da morte: "é como um resultado adicional de sua habilidade de viajar nos mundos sobrenaturais e de ver os seres sobre-humanos (deuses, demônios, espíritos dos mortos etc.) que o xamã tem sido capaz de contribuir decisivamente para com o conhecimento da morte" (Shamanism, 1964, p. 509). Assim, ao se tornar a ponte entre os vivos e os espíritos, os xamãs adquirem um grau de conhecimento da morte não acessível ao homem comum: o desconhecido e aterrorizante mundo da morte assume forma, se organiza de acordo com determinados padrões; finalmente, ele mostra uma estrutura e, no momento apropriado, se torna familiar e aceitável. Os xamãs, pode-se dizer, se relacionam com a morte como se esta fosse sua aliada e não como o reino absolutamente desconhecido, na medida em que eles têm que adentrar o reino espiritual, ou seja, o plano dos mortos. Segundo Eliade, pouco a pouco o mundo dos mortos se faz conhecível e a própria morte é avaliada em primeiro lugar como um rito de passagem para um modo espiritual de existência. Portanto, pode-se dizer que o xamã passa a não ser mais prisioneiro de um dos derradeiros paradoxos da existência do homem — não saber absolutamente nada sobre sua única certeza na vida: a morte.

    Os outros numerosos termos usados para designar tal praticante vêm corroborar a natureza elaborada, ambígua e até mesmo elusiva do fenômeno, o qual tem sido acessado das mais diversas formas. A palavra usada nos dias

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