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O Falecido Mattia Pascal - Pirandello
O Falecido Mattia Pascal - Pirandello
O Falecido Mattia Pascal - Pirandello
E-book335 páginas6 horas

O Falecido Mattia Pascal - Pirandello

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Sobre este e-book

Luigi Pirandello foi um escritor e Dramaturgo italiano, autor de obras de enorme sucesso como O Falecido Mattia Pascal e A Excluida.
O Falecido Mattia Pascal, é a história do personagem homônimo que, após sucessivos dissabores na vida, culminando em um matrimônio indesejado, tem a possibilidade de recomeçar a sua vida após ganhar uma fortuna na França e, paralelamente, é dado como falecido em sua cidade natal. Retornando a Itália, decide morar em Roma, onde inicia uma nova vida, com uma nova identidade. Decepcionado com sua existência, sendo desafiado para um duelo, simula uma segunda morte, decidindo, por fim, retomar a sua existência pretérita: uma existência que não possui mais. O Falecido Mattia Pascal foi uma das obras que mais contribuiu para a popularização do autor, tanto dentro da Itália quanto internacionalmente. Em 1934, Luigi Pirandello recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de abr. de 2020
ISBN9786586079241
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    O Falecido Mattia Pascal - Pirandello - Luigi Pirandello

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    LUIGI PIRANDELLO

    O FALECIDO MATTIA PASCAL

    1a edição

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    Isbn: 9786586079241

    LeBooks.com.br

    A LeBooks Editora publica obras clássicas que estejam em domínio público. Não obstante, todos os esforços são feitos para creditar devidamente eventuais detentores de direitos morais sobre tais obras.  Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente solucionadas, bastando que seus titulares entrem em contato conosco.

    Prefácio

    Prezado Leitor

    Luigi Pirandello foi um escritor e Dramaturgo italiano nascido em Agrigento, na Sicília, em 1867 e falecido em Roma em 1936. O seu primeiro grande sucesso foi o romance O Finado Mattia Pascal, escrito nas noites de vigília enquanto cuidava a esposa doente. Em 1925, após a morte da esposa, funda a companhia Teatro d’Arte di Roma com a qual viaja pelo mundo tendo se apresentado até mesmo na Broadway com imenso sucesso de suas comédias.

    O Finado Mattia Pascal, é a história do personagem homônimo que, após sucessivos dissabores na vida, culminando em um matrimônio indesejado, tem a possibilidade de recomeçar a sua vida após ganhar uma fortuna na França e, paralelamente, é dado como falecido em sua cidade natal. Retornando a Itália, decide morar em Roma, onde reinicia uma nova vida, com uma nova identidade. Decepcionado com sua existência, sendo desafiado para um duelo, simula uma segunda morte, decidindo, por fim, retomar a sua existência pretérita: uma existência que não possui mais. Mattia é o indivíduo contra si próprio, um indivíduo em constante insatisfação, alguém em busca do seu real ser.

    O Falecido Mattia Pascal foi uma das obras que mais contribuiu para a popularização do autor, tanto dentro da Itália quanto internacionalmente. Em 1934, Luigi Pirandello recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.

    Uma excelente leitura

    LeBooks Editora

    A mulher sacrifica-se para gostar de um homem, e o homem não pode agradecer o sacrifício, porque não gosta do que ela faz ao sacrificar-se por um homem que ela inventa e que não é ele.

    Luigi Pirandello

    Sumário

    APRESENTAÇÃO

    Sobre o autor e obra

    1 - Premissa

    2 - Premissa. Segunda (Filosófica) Como Desculpa

    3 - A Casa e a Toupeira

    4 - Aconteceu Assim

    5 - Maturação

    6 - Tiquetaque, Tiquetaque...

    7 - Troco de Trem

    8 - Adriano Meis

    9 - Um Pouco de Neblina

    10 - Pia de Água Benta e Cinzeiro

    11 - A Noite, Olhando para o Rio

    12 - O Olho e Papiano

    13 - A Lanterninha Quarenta dias nas trevas.

    14 - As Proezas de Max

    15 - Eu e Minha Sombra

    16 - O Retrato de Minerva

    17 - Reencarnação

    18 - O Falecido Mattia Pascal

    Notas

    APRESENTAÇÃO

    Sobre o autor e obra

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    Romancista, contista e dramaturgo, Luigi Pirandello é um dos maiores artistas da Itália e de seu tempo. Prêmio Nobel de Literatura de 1934 por sua "brilhante e corajosa renovação do drama e da cena’, foi ao longo da vida um prolifero escritor que, renovando seu próprio estilo, passou do naturalismo regionalista de seus primeiros trabalhos para o ante tradicionalismo do Teatro Grotesco (que se define como uma combinação de fantasia e realidade), à auto reflexão que concretiza no teatro sem teatro, para finalmente chegar ao simbolismo que transparece em suas últimas obras. O pessimismo, a loucura, a irrealidade, a impossibilidade de se conhecer a verdade sobre as pessoas, a simpatia pelos oprimidos, o repúdio às convenções, o caráter fictício dos personagens teatrais marca as bases essenciais do pensamento pirandeliano.

    Segundo o crítico Eric Bentley, um dos pontos básicos de seu pensamento — a múltipla personalidade — esconde um profundo humanismo, que se refugia no isolamento e na solidão. O homem pirandeliano não permanece apenas isolado dos amigos, mas de si mesmo. De certa forma, o homem pirandeliano pode ser visto a partir de uma visão existencialista. A vida é um absurdo, quase sempre preenchida com náusea, medo e angústia. Embora o homem continue a lutar, a odiar e a desafiar, a vida é um contínuo improviso. De certa maneira, sua psicologia naturalista vai ao encontro das descobertas de Freud, pois, ao dissecar seus personagens, traz à luz a personalidade inconsciente que dificulta em profundidade a apreensão racional do comportamento humano. Representante típico da burguesia regional que promoveu a unificação italiana, Pirandello submete a vida do país à severa crítica.

    A crítica incluída nos contos e romances, mais ontológica do que social, é melhor desenvolvida nas peças teatrais, onde analisa o homem enquanto homem, examinando suas motivações individuais com ironia amarga e realista.

    Tendo nascido na região do Agrigento (Sicília), a 28 de junho de 1867, Luigi Pirandello era filho de uma família de antigos sicilianos que se envolvera profundamente na luta pela unidade da Itália. Seu pai, um próspero comerciante de enxofre, pretendia que o filho estudasse Direito, mas desde cedo Pirandello mostrou uma forte inclinação para a Literatura. Aos dezesseis anos já tinha prontos dois manuscritos de poesia. Depois de um breve período em que estudou Comércio pela Universidade de Palermo, transferiu-se para a Universidade de Roma, onde concluiu o curso de Filologia. Em 1891, concluiria o doutoramento em Bonn, Alemanha, ao dissertar em alemão sobre os efeitos do som na formação do dialeto de sua região natal. Depois de um curto intervalo em Agrigento, onde tenta sem êxito o comércio, Pirandello volta para Roma, em 1893, e passa a conviver no meio literário e artístico. Casa-se no ano seguinte com Antonietta Portulano, amiga da família e rica herdeira de uma mina de enxofre. Com a ajuda financeira dos pais e o dinheiro da esposa, passa a se dedicar inteiramente à literatura. Todavia, em 1903, um incidente na mina de enxofre faz a mulher de Pirandello perder a fortuna e a razão. A partir daí, Pirandello passa a viver de forma obscura, passando anos amargos, em companhia da mulher, escrevendo e lecionando.

    Seu primeiro sucesso, O Falecido Mattia Pascal (I Fu Mattia Pascal, 1904), e dois volumes de ensaios, Arte e Scienza e L’Umorismo (1908), foram o resultado de sua mudança de vida. Anteriormente ele já havia publicado uma tradução da novela de Goethe, As Afinidades Eletivas, um poema narrativo em verso, quatro volumes de contos, que mais tarde seriam incorporados a outros numa coleção em dois volumes (Novelle per un Anno) e uma comédia em um ato, La Morsa. Depois disso, até o início da Primeira Guerra Mundial, passou a escrever principalmente contos e romances.

    Os primeiros anos de guerra lhe foram muito difíceis. Seus dois filhos foram feitos prisioneiros de guerra e os problemas mentais da mulher se agravaram. A produção de sua primeira peça teatral em três atos, Se non Cosi, posteriormente intitulada La Ragione degli Altri (1921), marca seu primeiro fracasso em Roma, ao passo que, no ano seguinte, Seis Personagens à Procura de um Autor (Sei Personaggi in Cerca d’Autore) faria extraordinário sucesso em Milão. Num curto período, Pirandello escreve e vê encenar dezesseis peças, quatro das quais em dialeto siciliano. O sucesso das encenações de suas peças em Paris e Nova York marcam uma nova fase na vida de Pirandello. O frequente e intenso contato com o mundo teatral, tanto da Itália como do exterior, o anima a tentar a produção e a direção. Em 1924, funda sua própria companhia, inaugurando no ano seguinte o Teatro de Arte de Roma, que conta com apoio financeiro do governo. O Prêmio Nobel, em 1934, dois anos antes de sua morte, que ocorre em Roma a 1° de dezembro de 1936, seria o corolário natural de uma carreira brilhante e renovadora.

    Das sete novelas escritas por Pirandello, A Excluída (L’Esclusa, 1901) é digna de nota pelo tratamento não convencional que dá ao tema do adultério e, historicamente, pelo modo sutilmente corrosivo com que aceita as normas do Naturalismo. Ele procura um caminho próprio para o gosto naturalista da época. Marta, a heroína do romance, é injustamente acusada de adultério por seu marido. Este encontrara uma platônica carta de amor assinada pelo intelectual do lugar, Armand d’Alvignani.

    Rejeitada pela família, Marta se muda para Palermo, onde consegue emprego como professora. Mais segura e independente, está pronta para o amor e tornar-se presa fácil de Armand. Convencido da inocência de Marta, o marido a procura novamente, mas é tarde. Embora o romance seja narrado num estilo frio e contido, como ê peculiar ao Naturalismo, sua capacidade de misturar situações e a vida da heroína fazem prever, por seu aspecto equívoco, toda uma galeria de personagens pirandelianos.

    Seu tema inicial foi a Sicília. As tragédias da ilha arcaica são narradas de maneira naturalista, apresentando traços do verismo de Verga. O primeiro sucesso, a novela O Falecido Mattia Pascal, traça de forma psicológica os conflitos do personagem central, cuja tentativa de retorno à Sicília encobre o desejo de recomeçar tudo de novo. Aí, Pirandello manifesta pela primeira vez suas dúvidas quanto à identidade do gênero humano, tema que iria reaparecer em quase todas as suas obras posteriores.

    O problema psicológico de Mattia Pascal iria ser resolvido de maneira sociológica em Os Velhos e os Jovens (I Vecchi e i Giovani). Essa obra, talvez seu romance mais bem realizado, apresenta um quadro desolador da Sicília de 1890, feudal e decadente. Outras significativas novelas de Pirandello, no período, são fragmentados caleidoscópios narrados na primeira pessoa. Quaderni di Serafino Gubbio (1915), com seu esquema de enredo sem enredo, já prenuncia suas futuras peças dramáticas. Por seu ataque contra "a máquina que mecaniza a vida’’ — concretizado no movimento de uma câmara de cinema que o protagonista opera — e pela forma como trata a alienação, esse livro não perdeu até hoje sua atualidade. Uno, Nessuno e Centomila (1915), todavia, com seus curtos e contínuos capítulos, com títulos coloquiais e humorísticos, é a contrapartida estrutural da gradativa descoberta, por parte do protagonista, de sua múltipla personalidade e de sua rejeição final a toda forma de repressão social e autoritarismo.

    Contudo, é nos contos de Pirandello que aparecem os mais sugestivos textos da língua italiana desde Boccaccio. Ainda que negligenciados por certos críticos, são considerados, por outros, superiores a suas peças dramáticas. O mais antigo deles, Capa netta, escrito em 1884, ê uma composição siciliana à maneira de Giovanni Verga e faz parte da fase regionalista do autor, cujas histórias são caracterizadas por heróis populares, tipos tragicômicos, enredados nas situações mais embaraçosas.

    Outros contos conhecidos de Pirandello são aqueles que seriam posteriormente trabalhados como peças de teatro ou que tinham sido previamente planejados para o palco, como La Giara e La Patente. Neles vamos encontrar a figura do narrador, que prefigura a narrativa típica do pirandelismo. Há, também, um grupo de contos urbanos, como L’Eresia Catara, em que um professor está tão obcecado com sua pesquisa esotérica que esquece de tomar conta dos alunos de sua classe; ou La Carriola, no qual um tranquilo advogado se guarda contra a loucura ao se permitir todos Os dias um bem dosado ato de irresponsabilidade. Há, finalmente, os vigorosos e inquietantes contos que escreveu no fim da vida, nos quais a ação e a violência se dão mais ao nível psicológico. Em La Distruzzione deiluomo, um homem enlouquecido pela miséria mata a esposa grávida; em Soffio, cujo protagonista percebe que tem o dom de vida e morte sobre outros homens; ou ainda Cinci, no qual um rapaz mata um amigo e simplesmente esquece o que fez.

    No entanto, é no teatro que Pirandello ganharia fama e fortuna. Suas mais antigas obras teatrais refletem diferentes tendências do teatro contemporâneo. II Dovere dei Medico (1912) mostra os conflitos da burguesia durante o final do século XIX; Lumie di Sicilia e La Giara pertencem ao teatro regional; Airuscita é um mistério profano; enquanto Liolà combina motivos sicilianos com temas frequentes no universo pirandeliano: o triunfo do irracionalismo, a destruição da máscara auto -elaborada do indivíduo e o conflito entre a aparência e a realidade.

    A primeira peça de importância fundamental na obra de Pirandello seria Assim é, se lhe Parece (Cosi è), uma parábola que se utiliza do meio burocrático provincial para demonstrar a relatividade da verdade e defender o direito de os homens terem cada um o seu ''fantasma" — criando para si mesmos uma perfeita ilusão, na qual vivem em perfeita harmonia. Em Tutto per Bene (1920), o autor mantém a tendência de dissociar os fundamentos realísticos — refletidos na forma como os elementos da trama são narrados — e o sentido particular de vida que dão a suas histórias um valor universal.

    Enrico IV (1922) é, sem dúvida, sua maior criação teatral. Aqui a alienação alcança as dimensões da loucura: de início, verdadeira, mais tarde, fingida. Essa é, para ele, a única solução possível para proteger seu espectro do mundo da corrupção, do egoísmo e do vício que pesa sobre ele. Nessa obra, a pressão da vida, que marca uma das mais fortes características de Pirandello, é dada com todo o seu impacto destruidor.

    Na trilogia teatro-sem-teatro — Seis Personagens à Procura de um Autor, Ciacuno a suo Modo e Esta Noite se Improvisa (Questa Sera si Recita a Soggetto) —, o foco se desloca da angústia do protagonista para a angústia do caráter na procura do ser, e mostra em que medida isso repercute no processo de criação da arte. Ao mesmo tempo, relaciona ostensivamente a interação de caráter, ator e espectadores na realização da ilusão da vida sobre o palco — na verdade, eles devem ser vistos apenas como uma divertida, embora brilhante, experiência teatral. Dentro dessa colocação, podemos observar que, para Pirandello, o teatro era a única forma de expressar seu conceito de arte.

    Uma segunda trilogia — La Nuova Colonia (1928), Lazzaro (1929) e I Gigante delia Montagna (1939) — descrita pelo próprio Pirandello como Os Mitos, marca o estágio final de sua carreira de autor. Nela o quadro de referência já não é o indivíduo, cuja experiência é universalizada, mas a própria sociedade. I Gigante delia Montagna, inacabado pela morte de Pirandello, está entre suas obras-primas. Na figura do mágico Cotrone, que vive com seus refugiados do mundo real numa cidade abandonada que projeta num mundo de fantasia, Pirandello cria uma última projeção de si mesmo como um modesto artista que percebe em torno de si uma abundante vida que nunca termina.

    O FALECIDO MATTIA PASCAL

    1 - Premissa

    Uma das poucas coisas, talvez a única, que eu sabia com certeza era esta: que me chamava Mattia Pascal. E tirava partido dela. Todas as vezes que algum dos meus amigos ou conhecidos demonstrava haver perdido o juízo, a ponto de vir me procurar, em busca de conselhos ou opiniões, eu erguia os ombros e respondia:

    — Eu me chamo Mattia Pascal.

    — Obrigado, meu caro. Eu já sei.

    — E acha pouco?

    Para ser sincero, eu também não achava muito. Porém, naquela época, ignorava o que significa não saber sequer isso, ou seja, não poder mais responder, em caso de necessidade, como antigamente:

    — Eu me chamo Mattia Pascal.

    Com certeza, alguém vai desejar condoer-se comigo (custa tão pouco), imaginando a dor cruel de um infeliz ao qual ocorra, de repente, descobrir que... sim, nada, enfim: nem pai, nem mãe, nem como foi ou deixou de ser; e também vai desejar indignar-se (custa ainda menos) da corrupção dos costumes, dos vícios e da malvadeza dos tempos que podem causar tamanha desgraça a um pobre inocente.

    Pois bem, fique à vontade para fazê-lo. Mas é meu dever avisá-lo de que não se trata exatamente disso. Poderia aqui expor, numa árvore genealógica, a origem e a descendência da minha família e provar que não apenas conheci meu pai e minha mãe, mas também todos os meus antepassados e seus atos, durante um longo período, nem todos, na verdade, louváveis.

    E então?

    Aí está: meu caso é bem mais estranho e diferente, tão diferente e estranho que vou logo contá-lo.

    Fui, durante dois anos, não sei se caçador de ratos mais do que guardador de livros na biblioteca que um certo monsenhor Boccamazza, ao falecer, em 1803, houve por bem deixar para o nosso município. É evidente que o monsenhor devia conhecer pouco a índole e os hábitos de seus concidadãos; ou talvez alimentasse a esperança de que seu legado deveria, com o tempo e a comodidade que representava, despertar no espírito deles o amor pelo estudo. Até aqui, posso testemunhá-lo, não despertou; e o digo em louvor dos meus concidadãos. O município, aliás, mostrou-se tão pouco agradecido a Boccamazza que nem sequer quis lhe erguer ao menos um meio-busto e deixou os livros empilhados, durante muitos e muitos anos, num amplo e úmido depósito, de onde, depois, os tirou, podem imaginar em que estado, para guardá-los na igrejinha, fora de mão, de Santa Maria Liberal, dessagrada não sei por que razão. Ali os confiou, sem o menor critério, a título de benefício e como sinecura, a algum vadio bem recomendado, que, por duas liras ao dia, ficando a olhar para eles ou, mesmo, sem os olhares, suportasse, durante algumas horas, seu cheiro de bolor e velharia.

    Essa sorte coube também a mim; e, desde o primeiro dia, concebi tão escassa estima pelos livros, quer impressos, quer manuscritos (como eram alguns, antiquíssimos, da nossa biblioteca) que jamais teria começado a escrever, como o faço agora, se, como disse, não considerasse meu caso realmente estranho e capaz de servir de ensinamento a algum leitor curioso que, por acaso, tornando-se finalmente realidade a antiga esperança de monsenhor Boccamazza, viesse a esta biblioteca, à qual deixo meu manuscrito, com a obrigação, no entanto, de que ninguém possa abri-lo senão cinquenta anos depois da minha terceira, última e definitiva morte.

    Porque, no momento (e Deus sabe quanto o deploro), já morri, sim, duas vezes, mas a primeira, por engano, e a segunda... ficarão sabendo.

    2 - Premissa. Segunda (Filosófica) Como Desculpa

    A ideia, ou melhor, o conselho de escrever veio-me do meu reverendo amigo padre Eligio Pellegrinotto, o qual, presentemente, tem a seu cuidado os livros de monsenhor Boccamazza e a quem confiarei o manuscrito, logo que o tiver terminado, se algum dia o terminar.

    Escrevo-o aqui, na igrejinha dessagrada, à luz que me chega da lanterna, lá em cima, da cúpula; aqui, na abside, reservada ao bibliotecário e fechada por uma baixa grade de madeira em balaústres, enquanto padre Eligio fica bufando na tarefa, que heroicamente tomou a si, de colocar um pouco de ordem nessa verdadeira babel de livros. Temo que nunca chegue a dar conta do recado. Ninguém, antes dele, se preocupara em saber, nem mesmo por alto, dando de relance uma olhadela nas lombadas, que tipos de livros aquele monsenhor havia doado ao município: pensava-se que todos ou quase todos deviam tratar de assuntos religiosos. Ora, Pellegrinotto descobriu, para seu maior consolo, uma enorme variedade de matérias na biblioteca do monsenhor; e, como os livros foram apanhados aqui e acolá, no depósito, e arrumados ao acaso, tal como vinham às mãos, a confusão é indescritível. Por motivo de vizinhança, estreitaram-se, entre esses livros, as amizades mais singulares: padre Eligio Pellegrinotto disse-me, por exemplo, que não lhe foi nada fácil separar de um tratado muito indecente, Da Arte de Amar as Mulheres, em três volumes, de Anton Muzio Porro, do ano de 1571, uma Vida e Morte de Faustino Materucci, Beneditino de Polirone, que Alguns Chamavam Bem-Aventurado, biografia editada em Mântua em 1625. Por causa da umidade, as encadernações dos volumes se haviam fraternalmente colado uma à outra. Note-se que no segundo volume daquele tratado indecente, fala-se longamente da vida e aventuras monacais.

    Muitos volumes curiosos e de agradabilíssima leitura, padre Eligio Pellegrinotto, trepado o dia todo numa escada de acendedor de lampiões, andou pescando nas estantes da biblioteca. Toda vez que encontra um deles, atira-o do alto com elegância, para a grande mesa que fica no meio, fazendo a igrejinha retumbar. Levanta-se uma nuvem de pó da qual fogem espavoridas duas ou três aranhas; eu corro para a abside, pulando a grade; primeiro, com o próprio livro, dou caça às aranhas, por cima da grande mesa empoeirada; depois, abro o livro e começo a folheá-lo.

    Dessa maneira, aos poucos, tomei gosto por esse tipo de leituras. Agora, padre Eligio me diz que o meu livro deveria seguir o modelo desses que ele vai desencantando na biblioteca, ou seja, ter o especial sabor que eles têm. Eu dou de ombros e respondo que não é tarefa para mim. E outra coisa ainda me retém.

    Todo suado e empoeirado, padre Eligio desce da escada e vem respirar um pouco de ar fresco, na pequena horta que conseguiu fazer nascer aqui, atrás da abside, protegida em toda a volta, por fasquias e puas de madeira.

    — Ora, meu reverendo amigo — digo-lhe, sentado na mureta, o queixo apoiado no castão da bengala, enquanto ele cuida de suas alfaces. — Atualmente não me parece mais tempo de escrever livros, nem por brincadeira. No que diz respeito à literatura, como a tudo o mais, devo repetir meu habitual estribilho: Maldito seja Copérnico!.

    — Oh, oh, oh, o que Copérnico tem a ver com isso?! — exclama padre Eligio, erguendo o busto, o rosto afogueado sob o grande chapéu de palha.

    — Tem, sim, padre Eligio. Porque, quando a Terra não girava...

    — Mas ela sempre girou!

    — Não é verdade. O homem não sabia disso e, por conseguinte, era como se não girasse. Para muitos, ela continua a não girar também agora. Eu falei que girava, outro dia, a um velho camponês; sabe o que ele me respondeu? Que era uma boa desculpa para os bêbados. Aliás, o senhor também, tenha paciência, não pode pôr em dúvida que Josué fez o sol parar. Mas deixemos isso. Digo que, quando a Terra não girava e o homem, vestido de grego ou de romano, nela fazia boa figura, formando tão elevado conceito de si e comprazendo-se tanto com sua própria dignidade, acredito perfeitamente que pudesse ter acolhida favorável uma narração minuciosa e repleta de inúteis detalhes. Lê-se ou não se lê em Quintiliano, como o senhor me ensinou, que a História devia ser feita para narrar e não para demonstrar?

    — Não discordo — responde padre Eligio —, mas, também, é verdade que nunca se escreveram tantos livros, tão pormenorizados, ou melhor, tão carregados das mais secretas minudências, como desde quando, no seu modo de dizer, a Terra começou a girar.

    — Está bem: o senhor conde levantou-se cedo, às oito horas e meia em ponto... A senhora condessa pôs um vestido lilás, ricamente guarnecido de rendas no pescoço... Teresinha estava morrendo de fome... Lucrécia consumia-se de amor... Oh, meu Deus do céu! Que importância isso pode ter para mim? Estamos ou não estamos num invisível pião, para o qual um fio de sol serve de chicote, num grãozinho de areia enlouquecido que gira e continua a girar, sem saber por quê, sem chegar nunca ao seu destino, como se achasse muito divertido girar assim, para fazer- nos sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e, no fim, fazer-nos morrer (com frequência, com a consciência de ter cometido uma série de pequenas tolices), após cinquenta ou sessenta giros? Copérnico, Copérnico, meu caro padre Eligio, estragou a humanidade irremediavelmente. Agora, todos já nos adaptamos, aos poucos, à nova concepção da nossa infinita pequenez e a nos considerarmos menos do que nada, no Universo, com toda a nossas lindas descobertas e invenções. Que importância quer, então, que tenham as notícias, já não digo das misérias privadas, mas das nossas calamidades gerais? Histórias de minhocas, as nossas, agora. Leu a respeito daquele pequeno desastre nas Antilhas? Nada de importante. A Terra, coitada, cansada de girar, como quer aquele cônego polonês, sem nenhuma finalidade, teve um pequeno movimento de impaciência e soprou um pouco de fogo por uma de suas muitas bocas. Sabe-se lá o que foi que lhe agitou essa espécie de bílis! Talvez a estupidez dos homens, que nunca foram tão aborrecidos como agora. Resultado: vários milhares de minhocas torradas. E toca para a frente! Quem fala mais nisso?

    Padre Eligio Pellegrinotto, contudo, faz-me observar que, por mais esforços que empreguemos no cruel propósito de arrancar, de destruir as ilusões que a previdente natureza criou para o nosso bem, não o conseguimos. Por sorte, o homem distrai-se facilmente.

    Isso é verdade. Nosso município, em certas noites marcadas na folhinha, não manda acender os lampiões e, amiúde, se o tempo é nublado, nos deixa no escuro.

    E isso quer dizer, no fundo, que nós, ainda hoje, acreditamos que a lua esteja no céu apenas para nos dar luz à noite, tal como o sol de dia, e as estrelas, tão só para nos oferecer um

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