Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A CABANA DO PAI TOMÁS
A CABANA DO PAI TOMÁS
A CABANA DO PAI TOMÁS
E-book357 páginas5 horas

A CABANA DO PAI TOMÁS

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Não há muitos livros que tenham causado tanto impacto como "A Cabana do Pai Tomás" escrito por Harriet Beecher Stowe.  Publicado entre 1851 e 1852 sob a forma de folhetim, num jornal antiescravagista  e recusado pelos primeiros editores a quem foi proposto sob a forma de livro, "A Cabana do Pai Tomás" acabaria por ser editado nesse formato em 1852. O livro vendeu 300.000 exemplares no primeiro ano, um numero espantoso para a època. É o relato comovente da cruel separação da família e da vida repleta de sofrimento que o personagem Pai Tomas teve de enfrentar que faz desta obra um verdadeiro manifesto contra a escravatura; numa história de fé, coragem,  perseverança e luta. A Cabana do Pai Tomas,  foi o primeiro romance americano a vender mais de 1 milhão de exemplares, além de ser considerada por muitos como a obra de ficção mais influente já escrita. Ao ponto de ter sido proibida em vários estados sulistas e de ter inspirado muitos líderes da abolição. Um grande clássico que merecidamente faz parte da famosa coletânea "1001 livros para ler antes de morrer".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de jul. de 2020
ISBN9786587921105
A CABANA DO PAI TOMÁS

Relacionado a A CABANA DO PAI TOMÁS

Ebooks relacionados

Clássicos para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de A CABANA DO PAI TOMÁS

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A CABANA DO PAI TOMÁS - Harriet Beecher Stowe

    cover.jpg

    Harriet Beecher Stowe

    A CABANA DO PAI TOMÁS

    Título original:

    Uncle Tom's Cabin

    1a edição

    img1.jpg

    Isbn: 9786587921105

    LeBooks.com.br

    A LeBooks Editora publica obras clássicas que estejam em domínio público. Não obstante, todos os esforços são feitos para creditar devidamente eventuais detentores de direitos morais sobre tais obras.  Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente solucionadas, bastando que seus titulares entrem em contato conosco.

    Prefácio

    Prezado Leitor

    A Cabana do Pai Tomas, escrito em 1852 pela autora americana Harriet Beecher Stowe foi o primeiro romance americano a vender mais de 1 milhão de exemplares, além de ser considerada por muitos como a obra de ficção mais influente já escrita. Harriet foi estimulada pela Lei dos Escravos Fugitivos de 1850 a escrever o que o poeta Langston Hughes considerou oprimeiro romance americano de protesto.

    O virtuoso escravo Pai Tomás, tendo vivido quase toda a vida com proprietários bondosos, é vendido por razões financeiras no início do romance. Recusando-se a fugir, Pai Tomás reage com tolerância e perdão cristãos, conservando a fé até sua morte brutal. Embora Pai Tomás tenha se tornado sinônimo da sujeição dos negros à opressão branca, para Harriet suas virtudes cristãs e sua morte como a de Cristo fazem dele o exemplo moral principal do romance. Além do sofrimento emocional e físico dos escravos, a autora enfatiza como a escravidão solapa a moralidade e a humanidade dos próprios donos de escravos. O elenco diversificado de mulheres fortes, negras e brancas, mostrou como as mulheres também podiam ajudar a obter a abolição.

    Harriet com certeza atingiu seus objetivos políticos com o sucesso fenomenal do romance, que viria a desempenhar um papel importante na Guerra Civil americana, inspirando o ativismo abolicionista e hostilizando fortemente a posse de escravos.

    A Cabana do Pai Tomás faz parte da famosa coletânea: 1000 Livros para ler antes de morrer

    Uma excelente leitura

    LeBooks Editora

    As lágrimas mais amargas derramadas sobre os túmulos são pelas palavras que não foram ditas e coisas que não foram feitas.

     —  Harriet Beecher Stowe

    Sumário

    APRESENTAÇÃO

    Capítulo I

    Capítulo II

    Capítulo III

    Capítulo IV

    Capítulo V

    Capítulo VI

    Capítulo VII

    Capítulo VIII

    Capítulo IX

    Capítulo X

    Capítulo XI

    Capítulo XII

    Capítulo XIII

    Capítulo XIV

    Capítulo XV

    Capítulo XVI

    Capítulo XVII

    Capítulo XVIII

    Capítulo XIX

    Capítulo XX

    Capítulo XXI

    Capítulo XXII

    Capítulo XXIII

    Capítulo XXIV

    Capítulo XXV

    Capítulo XXVI

    Capítulo XXVII

    Capítulo XXVIII

    Capítulo XXIX

    Capítulo XXX

    Capítulo XXXI

    Capítulo XXXII

    Capítulo XXXIII

    Capítulo XXXIV

    Capítulo XXXV

    APRESENTAÇÃO

    Sobre a autora

    img2.jpg

    Harriet Beecher Stowe nasceu em 1811, nos EUA. Era filha do pregador evangelista Lyman Beecher e durante alguns anos trabalhou como professora. A sua primeira publicação foi um livro sobre geografia para crianças. Em 1836, casou-se com um professor de teologia, Calvin Stowe.

    Durante a vida, Harriet escreveu poemas religiosos, livros de viagens, histórias para jornais locais, romances para crianças e para adultos. Conheceu e correspondeu-se com Lady Byron, Oliver Wendell Holmes e Mary Ann Evans.

    A Cabana do Pai Tomás, seu livro mais conhecido tornou-se um poderoso símbolo de liberdade: a exaltação de princípios contra a escravidão contribuiu para precipitar a Guerra Civil Americana. Após a publicação deste livro, Harriet foi convidada para falar sobre a escravatura na América e na Europa. Em 1856, publicou uma segunda novela sobre o tema, Dred.

    Tendo nascido numa família fervorosamente religiosa, filha do mais famoso pregador evangelista da sua geração e casada com um professor de teologia, Harriet viveu toda a vida num ambiente de extrema devoção e firmes convicções antiescravagistas, alicerçadas numa veemente fé cristã na igualdade de todos os homens.

    Antes de A Cabana do Pai Tomás a sua reputação como escritora era inexistente e a sua carreira nesse domínio resumia-se a alguns textos morais e bucólicas descrições campestres. Terá sido a aprovação da Lei dos Escravos Fugitivos, em 1850 (que tornava um crime dar ajuda ou refúgio a estes escravos e que foi acatada por alguns estados do Norte), que levou Harriet Beecher Stowe a escrever romance. Isso e uma visão que teve um dia depois da comunhão, em que à frente dos seus olhos viu desfilar o martírio e morte do Pai Tomás.

    A abolicionista Harriet Beecher Stowe morreu com 85 anos, em 1896, em Hartford Conneticutt.

    Sobre a obra

    Não há muitos livros que tenham causado tanto impacto como A Cabana do Pai Tomás. Publicado entre 1851 e 1852 sob a forma de folhetim, num jornal antiescravagista moderado, The National Era, e recusado pelos primeiros editores a quem foi proposto sob a forma de livro, A Cabana do Pai Tomás acabaria por ser editado nesse formato a 20 de Março de 1852. O livro vendeu dez mil exemplares na primeira semana de vendas nos Estados Unidos e 300.000 exemplares no primeiro ano. Na Grã-Bretanha, no primeiro ano de edição, venderia um milhão e um segundo milhão nas suas várias traduções em diversos países.

    Segundo as suas próprias palavras, Harriet Beecher Stowe esperava ganhar com a obra o suficiente para comprar um vestido novo, mas os primeiros três meses de vendas renderam-lhe a soma de 10.000 dólares - uma pequena fortuna. Em 1861, nas vésperas da Guerra Civil Americana (1861-1865), a autora era a mais famosa escritora do mundo e o livro atingia fabulosos 4,5 milhões exemplares vendidos. Um número espantoso para a época, principalmente se considerarmos que muitos dos estados do Sul dos Estados Unidos o tinham proibido e que havia contra ele uma intensa campanha política. Sem contar que dos cinco milhões de escravos que integravam os 32 milhões de americanos de então a imensa maioria era analfabeta.

    Na época, havia um exemplar de A Cabana do Pai Tomás em cada família americana não militantemente escravagista, o que o tornava o livro mais difundido depois da Bíblia, da qual era companheiro de estante frequente.

    Depois da Guerra Civil americana, da qual é apontado como uma das causas diretas (a lenda reza que Abraham Lincoln, durante uma visita de Harriet Beecher Stowe à Casa Branca, em 1862, lhe teria chamado a pequena senhora que inspirou esta grande guerra), o livro foi caindo gradualmente no esquecimento e só voltaria ao primeiro plano após a Segunda Guerra Mundial, para conquistar um lugar cativo no panteão dos grandes romances americanos.

    Misto de romance e panfleto, A Cabana do Pai Tomás está cheio de interpelações e fervor religioso que datam o texto e podem tornar a leitura cansativa para alguns leitores.  Apesar disso, a viva caracterização dos seus personagens que se exprimem de forma intensa fazem do livro uma obra poderosa, que se lê com inevitável adesão. Edmund Wilson, o mais famoso crítico americano escreveu que os personagens se exprimem muito melhor do que o autor

    Ao contrário do que por vezes se pensa, o livro de Harriet Beecher Stowe não é de forma alguma um libelo acusatório do Norte contra o Sul. A autora denuncia com igual afinco todos os que aceitam, defendem ou lucram com a escravatura e não deixa de invectivar a hipocrisia dos nortistas que fazem negócio com os escravos no Sul, assim como a própria Igreja cristã, que tem uma conta pesada para pagar. A alma negra do livro é, aliás, um homem do Norte, da Nova Inglaterra, e abundam na obra pessoas do sul que são exemplos de virtude.

    O livro que despertou a consciência de tantos homens e mulheres para a iniquidade da escravatura e que teve um papel tão relevante na libertação dos escravos nos Estados Unidos seria considerado, ironicamente, a partir dos anos 60 (por dirigentes do movimento pelos direitos cívicos e pela emancipação dos negros americanos), como uma obra racista e perpetuadora da submissão dos negros.

    A razão está principalmente no seu protagonista, Pai Tomás. Uncle Tom é, nos EUA, um insulto que se pode lançar a um negro, uma vez que o personagem não um líder revoltoso, um Spartacus, como desejaria o movimento negro americano, mas um mártir, dócil e piedoso, que aceita todos os castigos como penitências e que perdoa a todos os seus inimigos.

    No entanto, Tomás é um homem de extrema nobreza, sem uma réstia de servidão, com uma coragem física e uma abnegação suprema, que reconhece a ignomínia da escravatura e que não a aceita de forma alguma, mas que recusa a violência como forma de resistência e que é incapaz de mentir mesmo ao mais vil dos homens - não por medo, mas por respeito a si próprio.

    Tomás é um santo, quando os negros americanos do século XX buscavam um herói. É evidente que esta passividade não iria merecer a aprovação política dos militantes, da mesma forma que os retratos de negros feitos por Harriet Beecher Stowe, com toda a sua benevolência e angelização, não podiam deixar de ser denunciados como paternalistas. Mas poucos livros se podem gabar de ter tido uma influência tão grande na vida de tantos milhões de pessoas e na própria história dos Estados Unidos.

    Nas telas

    O romance de Harriet Beecher Stowe conheceu, desde o início da história do cinema, diversas adaptações. Logo em 1903, Edwin S. Porter dirigiu uma curta-metragem de 13 minutos. Onze anos depois, William Robert Daly volta à história de A Cabana do Pai Tomás, com Sam Lucas no papel principal e Walter Hitchcock como George Shelby, em mais um filme mudo. Em 1927, estreia-se uma grande produção, desta vez dirigida por Harry A. Pollard. O filme acabou por ser criticado por dar uma visão demasiado romântica e pouco credível do tema da escravatura. A Cabana do Pai Tomás deu ainda origem a uma série brasileira com argumento de Walter Campos e Régis Cardoso (1969) e a um telefilme dirigido por Stan Lathan (1987).

    Capítulo I

    Onde o leitor trava conhecimento com um homem

    Ao cair da tarde de um fresco dia de fevereiro, dois senhores estavam sentados em frente de uma bebida, numa casa de jantar bem mobilada, na cidade de P., no Kentucky. Não havia ninguém em volta, e os dois senhores muito perto um do outro, pareciam discutir qualquer assunto com grande interesse.

    Por delicadeza, empregamos até aqui a palavra senhores. Mas um deles quando observado com atenção, não parecia merecer este título. Era baixo e gordo, tinha feições grosseiras e vulgares, e o seu ar ao mesmo tempo pretensioso e insolente revelava o homem de condição inferior que quer vencer na vida e abrir caminho à custa de empurrões. Vestia com exagero: colete de cetim brilhante e colorido, gravata azul salpicada de pintas amarelas, com o nó empolado, absolutamente de acordo com o aspecto do dono. Tinha as mãos curtas e grossas cobertas de anéis e usava uma corrente de relógio de ouro, com um molho de berloques gigantescos que, no entusiasmo da conversa, fazia tilintar com evidente satisfação. A sua maneira de falar era um constante e audacioso desafio à gramática de Murray, ornamentada de vez em quando com termos bastante profanos, que o nosso interesse em sermos exatos não nos permite contudo transcrever.

    O seu companheiro, o Senhor Shelby, tinha, pelo contrário, todo o aspecto de um cavalheiro, e a disposição e os arranjos da casa indicavam uma vida desafogada e até opulenta. Conforme já dissemos, os dois homens travavam uma animada discussão.

    — É assim que tenciono resolver — dizia o Senhor Shelby.

    — Dessa maneira, não posso, Senhor Shelby, não posso! — respondeu o outro, levantando o copo para ver o líquido através da luz.

    — Mas, Haley, o fato é que o Tomás não é um homem vulgar; vale esse dinheiro em qualquer parte: é fiel, competente, e dirige a minha propriedade como um relógio.

    — Honesto! Quer dizer, até onde um negro pode ser honesto — continuou Haley, servindo-se de mais brande.

    — Não! Quero dizer verdadeiramente honesto, organizado, inteligente e religioso. Converteu-se há quatro anos, quando passou por aqui uma missão itinerante. E eu acredito que a sua fé seja sincera. A partir desse dia, confiei-lhe tudo quanto possuo: dinheiro, casa, cavalos, e deixo-o andar à vontade pela região. Sempre me deu provas de que é seguro e fiel. Tenho pena de me separar de Tom, confesso... Vamos, Haley, ficam saldadas as nossas contas... Será assim... se o senhor tiver um pouco de consciência.

    — Tenho tanta consciência como qualquer outro homem de negócios. A suficiente para poder jurar sobre ela — disse o mercador em ar de graça —, e por isso estou pronto a fazer tudo o que seja razoável para agradar aos amigos... mas os tempos estão difíceis, muito difíceis.

    O negociante suspirou com ar compungido, e serviu-se novamente de brande.

    — Então, Haley, quais são as suas últimas condições? — perguntou o Senhor Shelby, após uns instantes de silêncio embaraçoso.

    — Não tem qualquer coisa, um rapaz ou uma rapariga, que pudesse fazer um lote com o Tom?

    — Hum! Em todo o caso, ninguém que eu possa dispensar. Para ser franco, só uma grande necessidade me obriga a vender. Não gosto de me separar dos meus ajudantes, esta é a verdade.

    Nesse momento a porta abriu-se, e um rapazinho mestiço, de quatro ou cinco anos de idade, entrou na sala. Era extraordinariamente bonito e simpático. O cabelo preto, fino como seda, caía em caracóis reluzentes em volta do rosto redondo, com covinhas nas faces; dois grandes olhos negros, cheios de ternura e brilho, miravam através das pestanas fartas e longas. Olhou com curiosidade em redor da sala. Vestia uma túnica de xadrez amarelo e vermelho, cortada com esmero e justa ao corpo, de maneira a pôr em relevo todos os pormenores da sua beleza de mulato; junte-se a isto um certo ar de segurança cômica, misturada

    de timidez, que revelava bem ser ele o favorito mimado do seu senhor.

    — Anda cá, mestre Corvo — chamou o Senhor Shelby, dando um assobio e atirando-lhe um cacho de uvas... — Vá! Apanha!

    O rapaz saltou com toda a força dos pequenos membros, e agarrou a presa, enquanto o senhor ria.

    — Agora, Jim Corvo, mostra a este senhor como sabes cantar e dançar.

    A criança começou uma daquelas canções grotescas e selvagens, bastante comuns entre os negros. Tinha a voz clara e timbrada, e acompanhava o canto com movimentos muito cômicos, das mãos, dos pés, e de todo o corpo, ao ritmo exacto da música.

    — Bravo! — exclamou Haley, atirando-lhe um quarto de laranja.

    — Agora, Jim, imita o andar do velho Cudjox quando está com reumatismo.

    No mesmo instante, os membros flexíveis do garoto contorceram-se e deformaram-se, ao mesmo tempo que lhe aparecia entre os ombros uma corcunda, e, pegando na bengala do seu senhor, coxeou pela sala, mimando no rosto infantil a velhice dolorida, cambaleando da esquerda para a direita como um octogenário.

    Os dois homens riam à gargalhada.

    — Agora, Jim — disse o senhor —, mostra como canta o velho Eldec Bobbens na igreja.

    A criança alongou desmedidamente a cara redonda, e com uma gravidade imperturbável, começou uma ladainha fanhosa.

    — Viva! Bravo! Que rapaz tão engraçado! — disse Haley. — Está resolvido — E pondo a mão no ombro do Senhor Shelby, acrescentou:

    — Levo este rapaz, e fica o assunto arrumado... Não sou uma pessoa condescendente, hã?

    Naquele momento a porta abriu-se devagar, e uma jovem escrava mestiça, com cerca de vinte e cinco anos, entrou na sala. Bastava uma rápida comparação entre ela e a criança, para se ficar com a certeza de que eram mãe e filho.

    Tinha os mesmos olhos pretos e brilhantes, com as mesmas pestanas compridas; os mesmos cabelos negros e sedosos... O traje, de um asseio impecável, fazia realçar toda a beleza da sua elegante figura. As mãos delicadas, os pés pequenos e os tornozelos finos não podiam escapar aos olhos sagazes do negociante.

    — O que há, Elisa? — perguntou o senhor, quando ela parou e ficou a olhar com hesitação...

    — Desculpe, senhor, vinha à procura do Harry...

    A criança correu para ela, mostrando o prêmio que juntara no regaço da sua túnica.

    — Então leva-o — disse o Senhor Shelby. Ela saiu rapidamente, levando o filho nos braços.

    — Por Júpiter! — exclamou o mercador —, isto é o que se chama um bom artigo! Com esta rapariga pode fazer uma fortuna em Orleans quando lhe apetecer! Já vi contar notas de mil por raparigas que não davam pelos calcanhares desta.

    — Não preciso de fazer fortuna à custa dela — respondeu secamente o Senhor Shelby. E, para mudar de conversa, abriu outra garrafa de brande e perguntou ao companheiro que tal achava a qualidade.

    — Excelente! De primeira ordem! — disse o negociante. Depois, voltando-se e batendo familiarmente no ombro do Senhor Shelby, acrescentou: — Vamos, quanto quer pela rapariga? Prefere que eu ofereça, ou prefere pedir?

    — Senhor Haley, a rapariga não é para vender. A minha mulher não a dispensava nem pelo seu peso em ouro.

    — Eh, eh As mulheres dizem sempre isso porque não sabem fazer contas. Mas mostrem-lhes quantos relógios, plumas e berloques poderão comprar com o peso em ouro de uma pessoa, e mudam logo de opinião, aposto.

    — Repito, Haley: não vale a pena falar do assunto. Digo que não, e está dito! — respondeu Shelby com firmeza.

    — Então ceda-me o rapaz — disse o mercador. — Concorde que bem o mereço...

    — Mas, para que quer o garoto? — perguntou-lhe Shelby.

    — Tenho um amigo que se dedica a esse ramo de negócio. Precisa de rapazinhos engraçados para os tornar a vender. São artigos de fantasia: as pessoas ricas pagam-nos bem. Nas grandes casas, gostam de ter um rapazinho bonito para abrir a porta, servir à mesa, para os recados. E este diabrete, comas suas músicas e imitações, serve à maravilha.

    — Preferia não o vender — respondeu o Senhor Shelby, pensativo.

    — O fato é que sou um homem de sentimentos: não gosto de tirar um filho à mãe, sabe?

    — Ah, é isso? Histórias! Chamam-lhe a voz do sangue... Compreendo: há ocasiões em que é muito aborrecido lidar com as mulheres. Sempre embirrei com aqueles gritos e lamentos... São muito incômodos. Procuro sempre evitar essas situações. Se fizer desaparecer a rapariga um dia... ou uma semana, já facilita as coisas. Quando ela voltar, não há mais problemas... A sua mulher pode oferecer-lhe uns brincos, um vestido novo, ou qualquer outra bugiganga como compensação.

    — Receio que não dê resultado!

    — Bem sabe que estas criaturas não são como os brancos. Fazem o que a gente quer se forem bem dirigidos. Dizem para aí — continuou Haley, tomando um ar inocente, e em tom confidencial — que este gênero de negócio endurece o coração; mas eu não acho. A verdade é que eu não faria como fazem certas pessoas. Vi alguns que arrancavam à força um filho dos braços da mãe para o venderem E a pobre mulher gritava como uma doida... É mau sistema... Dá cabo do artigo, e às

    vezes deixa-o impróprio para consumo. Mais vale fazer as coisas com humanidade, senhor. Foi a experiência que me ensinou.

    O mercador inclinou-se para trás no cadeirão e cruzou os braços, dando todos os sinais de uma virtude irrepreensível.

    Havia qualquer coisa de tão curioso e original nestas demonstrações de humanidade, que o próprio Senhor Shelby não pôde conter o riso.

    O riso do Senhor Shelby encorajou o negociante a continuar.

    — É na verdade estranho, mas não consegui meter isto na cabeça das pessoas. Tom Liker, sabe, o meu antigo sócio, na região dos Natchez: era um rapaz esperto, lá isso era, mas um verdadeiro carrasco para os pretos. Devia ser uma questão de princípios, porque nunca vi melhor coração entre os filhos de Deus. Eu costumava dizer-lhe: Então Tom, quando estas raparigas estão tristes e choram, que ideia é essa de lhes bateres e dares murros na cabeça? É ridículo, e nunca resulta. Deixa-as gritar! E a natureza! E se a natureza não se satisfaz de uma maneira, satisfaz-se de outra. Além disso, Tom, dizia-lhe eu outra vez, estragas-me as pequenas; adoecem, e às vezes ficam horríveis, principalmente as mulatas; e depois é o diabo para as fazer voltar ao que eram. Não podes convencê-las de outra maneira? Falar-lhes com mais suavidade? Pensa nisso, Tom. Um pouco de humanidade rende mais do que todos os teus murros e socos. Vale bem a pena. Pensa nisso, Tom! Mas o Tom não tinha emenda. Estragou-me tanta mercadoria que eu tive de correr com ele, apesar de ter um bom coração e dedo para o negócio.

    — E acha que o seu sistema é preferível ao dele? — perguntou o Senhor Shelby.

    — Acho, sim senhor. Posso prová-lo. Sempre que posso, evito os aborrecimentos. Se tenciono vender uma criança, afasto-a da mãe, e sabe: longe da vista, longe do coração. E quando está feito e não há mais remédio, elas acabam por se conformar. Não é como os brancos, que são educados na ideia de conservarem os filhos, as mulheres e tudo o mais. Um preto que foi domesticado como deve ser, não conta com isso, e torna-se tudo mais fácil.

    — Nesse caso, creio que os meus não foram domesticados convenientemente.

    — Acredito. Vocês, os de Kentucky, estragam os vossos pretos. Tratam-nos bem de mais. Afinal, isso não é ser bom. Pegue num preto. Foi feito para girar de mão em mão, para ser vendido a Pedro, a Paulo, sabe-se lá a quem! Não é conveniente meter-lhe ideias na cabeça, dar-lhes esperanças, para ele depois sofrer misérias e maus tratos que lhe custam mais a suportar. Acho que mais valia os vossos pretos serem tratados como os das outras plantações. Sabe, Senhor Shelby, toda a gente pensa sempre que está dentro da razão, e eu penso que trato os pretos da única maneira que eles devem ser tratados.

    — Deve sentir-se muito satisfeito com isso — respondeu o Senhor Shelby, encolhendo os ombros, sem poder esconder uma desagradável impressão.

    — Então — perguntou Haley após alguns segundos de silêncio, que responde?

    — Vou pensar no assunto e falar com a minha mulher — respondeu Shelby.

    Entretanto Haley, se quer que este negócio seja feito com a discrição de que falou, não deixe transpirar nem uma palavra na vizinhança; espalha-se a notícia entre a minha gente, e garanto-lhe que depois não será fácil acalmá-los.

    — Oh, certamente! Nem uma palavra, claro! Mas por outro lado, juro-lhe que tenho uma pressa dos diabos, e que preciso saber o mais cedo possível com o que posso contar — disse ele levantando-se e vestindo o capote.

    — Procure-me esta tarde, entre as seis e as sete — disse o Senhor Shelby —, e dou-lhe uma resposta.

    O mercador pediu licença e saiu.

    — Não poder eu atirá-lo pela escada abaixo! — pensou o Senhor Shelby quando viu a porta fechar-se completamente. — Que grande patife! Sabe os trunfos que tem na mão. Ah, se alguém me tivesse dito que um dia eu era obrigado a vender o Tom a um destes amaldiçoados mercadores, eu teria respondido: Um criado é algum cão para o tratarmos assim?" E agora vou fazê-lo, não há mais remédio. E o filho da Elisa! Vou ter de ouvir a minha mulher por causa disso e por causa de Tom. Para pagar as dívidas! O patife sabe as suas vantagens e aproveita-se.

    O Senhor Shelby era um homem de caráter, uma natureza condescendente e terna, indulgente para com todos os que o rodeavam. Não esquecia nada que pudesse contribuir para a saúde e bem-estar dos negros dentro da sua propriedade. Mas lançara-se em especulações audaciosas; comprometera-se em somas consideráveis. O seu dinheiro estava nas mãos de Haley. É esta a explicação do diálogo que relatamos antes.

    Elisa, ao aproximar-se da porta, ouviu o suficiente para compreender que o mercador

    estava a fazer ofertas por um escravo qualquer. Tinha querido ficar atrás da porta a ouvir, mas nesse instante a senhora chamou-a e teve de se ir embora.

    Pareceu-lhe, porém, que se tratava do filho. Estaria enganada? Sentiu o coração bater-lhe com mais força. Apertou involuntariamente a criança contra o peito com tanta força que o pequeno olhou para ela muito espantado.

    — Elisa, que tens tu hoje, minha filha? — perguntou a senhora ao vê-la trocar um objeto por outro, fazer tombar a mesa de costura, e dar-lhe uma camisa de noite em vez do vestido de seda que ela pedia. Elisa parou de repente.

    — Oh, minha senhora — disse ela, levantando os olhos ao céu. Depois numa crise de choro, deixou-se cair numa cadeira, soluçando.

    — Então, Elisa, minha filha! Vamos, que tens tu?

    — Oh, minha senhora, minha senhora! Esteve cá um negociante a falar na sala com o senhor. Eu ouvi.

    — E depois, minha tonta? Que tem que estivesse?

    — Ah, minha senhora, acredita que o senhor era capaz de vender o meu Harry?

    E a pobre mulher atirou-se de novo sobre a cadeira, soluçando convulsivamente.

    — Vendê-lo? Não, minha tonta! Sabes perfeitamente que o senhor não faz negócios com os mercadores do Sul, nem costuma vender os seus escravos enquanto eles se portarem bem E depois, minha tonta, quem podia querer comprar o teu Harry, e para quê? Julgas que ele vale para toda a gente o mesmo que para ti? Vamos, enxuga as lágrimas e abotoa-me o vestido. Agora penteia-me o cabelo para cima, como te ensinei o outro dia, e não tornes a escutar às portas.

    — Prometo, mas, minha senhora, a senhora não consentia que... que...

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1