A Dicotomia Consenso e Desacordo: uma análise da razão pública rawlsiana na aferição da legitimidade da atuação legislativa
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A Dicotomia Consenso e Desacordo - Vanessa Nunes Kaut
superações.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, ao professor e amigo Bruno Camilloto, que é, em muito, responsável pelo caminho trilhado nesta pesquisa acadêmica.
Agradeço aos demais professores e professoras do curso de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto, na figura dos profissionais Roberto Henrique Pôrto Nogueira e Iara Antunes de Souza.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno, Júlio Aguiar de Oliveira, Fernando José Armando Ribeiro, Marcelo Campos Galuppo e Lucas de Alvarenga Gontijo.
Ao meu orientador e supervisor em Estágio de Docência, Prof. Dr. Antônio Cota Marçal.
Às colegas e aos colegas da Pós-Graduação, em especial, Maria Bueno, Natália Lisbôa, Roberta Cerqueira, Wesley Soares, Charles Bahia e Vitor Medrado.
À Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto e à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais.
Aos meus pais, Luiz Roberto e Malena.
À família e às amizades.
Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza.
Edgar Morin (2008, p. 59)
PREFÁCIO
Alguns temas no âmbito da Teoria do Direito são perenes e persistentes. Dado que o Direito se relaciona com o Poder, é impossível não pensar sobre a legitimidade das normas jurídicas, assim como a própria natureza do dever de obediência a elas. A questão da legitimidade do Direito leva à da Justiça. O que é justo dentro de uma sociedade? Quão justa são as normas que regulam os diferentes e diversos comportamentos dos cidadãos? E, ainda, como elaborar de forma legítima normas jurídicas justas?
O livro que o leitor tem em mãos enfrenta sem medo essas questões. Ao entrar nos densos debates da Teoria da Justiça, com muita habilidade discursiva, a autora conduz o leitor pelo campo do pluralismo, articulando os conceitos de consenso e desacordo dialeticamente. Ao mesmo tempo em que apresenta os contornos teóricos da ‘razão pública’, o argumento central do texto vai sendo construído como exercício do jogo democrático de dar e pedir razões na esfera pública. Esse jogo é jogado no ambiente do liberalismo político com a autora demarcando, no campo discursivo, quais são os limites que informam a tradição do constitucionalismo democrático.
Das ideias apresentadas, Vanessa Kaut trabalha, de forma analítica e sistemática, o pensamento de John Rawls, Jeremy Waldron e Samantha Besson, como meio para pensar a legitimidade da atuação política a partir da dicotomia entre o consenso e o desacordo no interior de uma sociedade plural. Anuindo com Rawls, a autora argumenta que o conceito de Justiça deve ser compreendido a partir de uma concepção Política, isto é, a ideia de Justiça é forjada no campo político e, numa sociedade democrática, orientada pelos ideais da razão pública. É nesse contexto que a atuação legislativa deve ter seu referencial, ou seja, caberá ao Poder responsável pela fabricação das normas jurídicas a observação das exigências da razão pública, caso deseje cumprir seu compromisso com a legitimidade democrática. Mas qual o espaço existente dentro do Poder Legislativo para diferentes perspectivas de normatização dos temas controvertidos da Justiça? Os desacordos morais no âmbito do Poder Legislativo são responsáveis pela sua deslegitimação ou, ao contrário, são o próprio fundamento de uma sociedade plural e democrática? Seria o ideal da razão pública uma espécie de camisa de força para ideias que poderiam ser transformadas em normas jurídicas? Valendo-se do pensamento de Waldron e Besson, Vanessa Kaut constrói seu principal argumento: o fundamento da legitimidade legislativa é o desacordo entre as perspectivas morais dos parlamentares.
Com o livro em mãos, o leitor terá a possibilidade de percorrer os caminhos argumentativos que justificam e sustentam a tese defendida e, agora, lançada ao público. Em conclusão comprometida com a honestidade intelectual, a autora apresenta o movimento de seu próprio pensamento em retrospectiva. Dessa forma, o leitor poderá conhecer melhor os pontos de partida e de chegada da argumentação apresentada, concordando ou discordando do argumento defendido no livro. Esse é o convite do texto. Aliás, a marca argumentativa do texto é o desacordo. Desta forma, caberá ao leitor o ônus da explicitação das razões do seu desacordo dentro do ambiente político e democrático de uma sociedade plural. Essa é a provocação de Vanessa Kaut a você, leitor.
Bruno Camilloto
Professor de Direito da UFOP
Doutor em Direito pela PUC-MG
NOTA PRELIMINAR: DA ADOÇÃO DA LINGUAGEM NEUTRA
¹
Ressalta-se a pretensão neste trabalho em assumir um caráter de neutralidade na linguagem, contrário à recorrente manifestação do sexismo observado em seu uso como reflexo social do processo de desenvolvimento da humanidade. Assume-se que, em decorrência da naturalidade do sexismo, onde um gênero é tratado com inferioridade ao outro, injustiças vêm sendo perpetuadas em e por meio da linguagem falada, bem como daquela adotada em textos escritos, nos quais evidenciam-se, principalmente, características androcêntricas.
Vale ressaltar, neste sentido, que as diferenças biológicas entre homens e mulheres se devem à genética, enquanto as demais lhes são atribuídas por meio de uma construção social, a qual se denominou ‘gênero’. A linguagem é, da mesma forma, resultado de uma construção social. Enquanto recurso de expressão do pensamento e de interpretação da realidade, esta contribui para a continuidade da discriminação de gênero como reflexo das desigualdades decorrentes da hierarquização entre gêneros promovida em meio às sociedades.
Conceitos de gêneros são perpetuados pelas diversas instituições que permeiam nossas vidas, começando pela família, passando pela escola, pelas religiões dominantes, e pela sociedade generalizada. O discurso dos ‘papéis de gêneros’, engessados, acompanha toda a trajetória da vida em sociedade e, quase sempre, o não enquadramento nestes gera algum tipo de segregação. Predominante são a conceituações androcêntricas, onde o homem é adotado como referencial de análise.
O androcentrismo² a que se refere se manifesta na linguagem de diversas maneiras, seja pela ordem das palavras (ex.: professores(as), Sr.(a), homens e mulheres), pelo conteúdo semântico de alguns vocábulos (ex.: mundana – substantivo feminino de mundano: meretriz / prostituta; mundano – adjetivo masculino: que pertence ou se refere ao mundo / dado aos prazeres), ou mesmo pelo uso do masculino como genérico para o tratamento de ambos os sexos (ex.: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789).
Cabe frisar que não é a linguagem que é sexista, mas sim o uso que se vêm fazendo dela. Há vários recursos para incluir mulheres e homens no discurso. Estes, no entanto, não são adotados pelo hábito ou pela dificuldade de desenvolvimento de uma neutralidade nesse sentido.
É preciso, contudo, mover esforços para nomear as mulheres (como se faz aos homens). Fazê-lo é dar existência e visibilidade a estas, é uma ação que afirma a liberdade destas, sendo necessário torná-las visíveis, igualmente protagonistas. Tratá-las também na linguagem equitativamente aos homens é uma questão de justiça. Sendo o masculino o masculino e não o neutro, a adoção de uma linguagem neutra deve ser expressa pelo uso de termos neutros quando o vocábulo tiver a intenção de abarcar uma coletividade na qual se inserem tanto homens quanto mulheres.
O presente trabalho pretende, nesses termos, ser uma tentativa de não perpetuar o sexismo e o androcentrismo por meio da linguagem, adotando recursos da linguagem neutra, como a utilização dos termos ‘sujeito’, ‘indivíduo’, ‘profissional’ e ‘pessoa’ para tratar as denominações enquadradas nesta categoria de vocábulos que devem ser utilizados de forma neutralizada, bem como a nomeação do feminino e do masculino, em ordem aleatória, quando a neutralidade não for possível (ex.: homens e mulheres, cidadãs e cidadãos), evitando assim a chamada ‘false gender-neutrality’³.
Alerta-se, finalmente, que as tentativas de utilização da linguagem neutra por vezes restarão infrutíferas, principalmente no que se refere às citações¸ devido ao fato da própria linguagem filosófica e jurídica dificultar o uso de técnicas para garantir a neutralidade na fala e na escrita, bem como devido ao sexismo histórico manifesto nestas áreas de estudo, o qual o presente trabalho aproveita para denunciar.
Agradeço à amiga e ativista feminista Alessandra Cougias Rossini por me alertar para esta realidade.
O termo encontra definição em dicionário de língua portuguesa como: visão do mundo centrada no ponto de vista masculino (ANDROCENTRISMO, 2008-2013). Em enciclopédia virtual alude-se tratar de termo cunhado pelo sociólogo americano Lester F. Ward em 1903, estando intimamente ligado à noção de patriarcado. Não se referiria apenas ao privilégio dos homens
, mas à forma como as experiências masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos e tidas como uma norma universal tanto para homens quanto para mulheres, sem dar o reconhecimento completo e igualitário à sabedoria e experiência feminina
. No que diz respeito à linguagem, destaca-se que a tendência quase universal de se reduzir a raça humana ao termo ‘o homem’ é um exemplo excludente que ilustra um comportamento androcêntrico
(ANDROCENTRISMO, 2015).
Ver: SAUL, 2015.
SUMÁRIO
1 - INTRODUÇÃO
2 - DE UMA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA A UMA CONCEPÇÃO POLÍTICA DE JUSTIÇA
2.1 - UMA TEORIA DA JUSTIÇA POR JOHN RAWLS
2.2 - O LIBERALISMO POLÍTICO E OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DE UMA CONCEPÇÃO POLÍTICA DE JUSTIÇA
2.2.1 - Ideias fundamentais
3 - RAZÃO PÚBLICA E DIREITO: A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA ATUAÇÃO LEGISLATIVA A PARTIR DE UMA CONCEPÇÃO POLÍTICA DE JUSTIÇA
3.1 - RAZÃO PÚBLICA, PRINCÍPIO LIBERAL DE LEGITIMIDADE E A LEGITIMAÇÃO DA ATUAÇÃO POLÍTICA DAS INSTITUIÇÕES DE UM ESTADO
3.2 - A LEGITIMIDADE DAS LEIS A PARTIR DOS CONTORNOS DA RAZÃO PÚBLICA
3.3 - A RAZÃO PÚBLICA E O PAPEL DESEMPENHADO PELAS CORTES CONSTITUCIONAIS
4 - DESACORDO E LEGITIMAÇÃO: O DESACORDO COMO ESTADO PERMANENTE E LEGITIMADOR DA ATIVIDADE LEGISLATIVA
4.1 - O DESACORDO COMO ‘CIRCUNSTÂNCIA DA POLÍTICA’, A LEGITIMIDADE DA ATIVIDADE LEGISLATIVA E O ARGUMENTO DA RAZÃO PÚBLICA
4.2 - A RELAÇÃO ENTRE UM ‘PERSISTENTE E DIFUNDIDO DESACORDO RAZOÁVEL SOBRE A JUSTIÇA’ E AS LEIS
5 - CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
1 - INTRODUÇÃO
É possível que tratar a legitimidade no âmbito da Filosofia Política seja uma das tarefas mais difíceis observadas na história deste campo de investigação, dada a amplitude de fatores que constituem seu exame. Somos representados?, por quem?, por quê? e o que é e por que o é o Direito? são questões para as quais há séculos são ofertadas respostas, de todas as espécies, por estudiosos e estudiosas do Direito, da Filosofia, da Sociologia, das Ciências Políticas e demais áreas relacionadas. Parecem, no entanto, permanecer, na perspectiva dos cidadãos e cidadãs comuns⁴, como ‘indagações suprimidas’. ‘Suprimidas’ porque deixam de ser postas a partir do momento em que se está inserido em meio a uma sociedade na qual as respostas já estariam dadas; na qual questionamentos não mais precisariam ser feitos; cujos sistemas e instituições estariam supostamente prontos e acabados, embora – em realidade – estejam em constante desenvolvimento⁵.
Reflexo dessa posição enigmática, na qual se encontram os cidadãos e cidadãs, é a observação de que nos contextos da vida em sociedade (família, escola, trabalho), não mais parece ser um enfoque o desenvolvimento de uma capacidade reflexivo-cognitiva⁶. No Brasil, isto se torna ainda mais expressivo se analisado o modelo educacional⁷ instituído no País. Correlativamente, é possível observar que tanto nas escolas, como no seio das famílias, empresas e demais instituições privadas e públicas, sociais, políticas e econômicas, pratica-se uma contínua imposição de conceitos e verdades, o que parece conduzir à preservação (aparentemente favorável à realização das intenções dos poderes instituídos⁸) de uma sociedade cercada de preconceitos⁹ irrefletidos¹⁰ e verdades presumidas¹¹.
Um cenário como o retratado coloca em destaque, no âmbito da Política e do Direito, as lutas de coletividades¹² que se compreendem tolhidas em seus direitos por não se adequarem aos padrões recepcionados na sociedade que compartilham.¹³ Tais coletividades é que poderiam referir-se, a título de exemplo, as comunidades indígenas, a comunidade LGBT, os negros e negras, as mulheres, as comunidades religiosas, entre outras.
Contudo, por mais opressora que se mostre a realidade em um determinado momento, seja para a realização da individualidade ou de anseios de um determinado grupo, categoria, classe ou país, enquanto princípio hermenêutico, esta oferece diretrizes para interpretar e compreender o desenvolvimento da vida em sociedade e figura como o palco para a promoção de uma construção compartilhada e continuada da verdade, a partir da experiência vivida e de sua crítica
(MARÇAL, 2010, p. 2). Sendo assim, mostra-se como impulsionadora ao questionamento. Neste sentido destaca o cidadão Antônio Cota Marçal (2010, p. 2):
[...] a verdade passou a ser compreendida como sendo um elemento do reino dos acontecimentos históricos, das práticas sociais, dos costumes e das crenças, da discussão, da comunicação, da pergunta e da resposta, do tornar explícito o que está implícito, do dar e pedir razões, enfim, uma construção a partir da experiência vivida e de sua crítica. Este é o elemento a que se refere o "princípio da realidade, segundo o qual
realidade"