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Rousseau e o Evangelho dos Direitos do Homem
Rousseau e o Evangelho dos Direitos do Homem
Rousseau e o Evangelho dos Direitos do Homem
E-book526 páginas7 horas

Rousseau e o Evangelho dos Direitos do Homem

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Sobre este e-book

Como emerge historicamente a concepção de direitos do homem? É essa a questão fundamental que procuramos enfrentar, centrando os esforços na obra de Rousseau. Sustentamos que a ideia de direitos humanos inicia sua trajetória como parte de uma nova sensibilidade em relação ao homem, fundamento sobre o qual se pôde edificar a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão proclamada em 1789. Procuramos mostrar como esse novo sentimento em relação aos direitos dos homens está ligado a um processo mais amplo de ressignificação da religião cristã e a uma nova leitura, feita por Rousseau, de temas centrais do cristianismo como pecado original, divindade de Cristo, milagres e revelação. Defendemos que, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, a ideia de direitos do homem que emerge nas décadas de 1750 e 1760 não é um mero desdobramento das modernas teorias do direito natural, mas sobretudo mantém relação umbilical com os debates acerca do cristianismo realizados naquele momento. Polemizando com os materialistas e os integrantes das ortodoxias religiosas do Antigo Regime, Rousseau procurará defender um cristianismo mais próximo da mensagem original dos Evangelhos, criticando o modelo religioso hegemônico e seu recorrente apelo ao mistério e postulando uma religião favorável à causa do homem e de seus direitos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de mar. de 2021
ISBN9786559561834
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    Rousseau e o Evangelho dos Direitos do Homem - Eduardo Luís Leite Ferraz

    http://rousseaustudies.free.fr/.

    Capítulo 1. Um vigário e uma profissão de fé

    1.1 Rousseau: demônio encarnado

    ⁸²

    A Corte ordena que o dito livro impresso seja rasgado e queimado no pátio do Palácio, ao pé da grande escada, pelo Executor da Alta Justiça; intimando todos aqueles que tenham exemplares para trazê-los à secretaria da Corte para serem suprimidos.⁸³ Assim se manifestava o Parlamento de Paris acerca do Émile de Jean-Jacques Rousseau em arresto publicado em 09 de junho de 1762. Um mês e pouco depois, o arcebispo da cidade, Cristophe de Beaumont, lançava sobre o escrito semelhante condenação: condenamos o dito livro como contendo uma doutrina abominável, própria a derrubar a lei natural e a destruir os fundamentos da religião cristã.⁸⁴ Ambas as instâncias de poder manifestavam assim seu julgamento em relação a um autor que então vinha gozando de prestígio crescente ante a opinião pública europeia, de modo particular a francesa.

    O Parlamento dizia ser o objetivo do Émile conduzir todos à religião natural [...]. ⁸⁵ Pensava ser necessário, portanto, intervir de modo incisivo para impedir a divulgação das ideias daquele que desenvolvia este sistema criminal. ⁸⁶ O crime da religião natural exigia dos aparelhos do Estado uma resposta à altura. O Parlamento proíbe então todos os livreiros de imprimir, vender, produzir o dito livro⁸⁷ e todos os vendedores, distribuidores ou outros de o vender ou distribuir, sob pena de serem extraordinariamente julgados e punidos segundo o rigor das Ordenações. ⁸⁸

    O termo de arresto do Parlamento ordenava ainda que J. J. Rousseau, nominado no frontispício do dito livro, fosse preso e conduzido às prisões da conciergerie do palácio, para ser ouvido e interrogado perante o dito Conselheiro-relator, sobre os fatos do dito livro e responder às conclusões que o procurador-geral pretendia tomar contra ele.⁸⁹ Um exemplar do Émile deveria ser depositado no greffe da Corte para servir de instrução ao processo. ⁹⁰

    A ortodoxia católica e o Estado francês prezavam para que os desvios fossem prontamente reprimidos, principalmente os advindos do suspeito grupo dos philosophes, livres-pensadores e homens de letras refratários à religião oficial. As ideias consideradas perniciosas não poderiam se expandir pelo corpo social. O arcebispo ordena que seu Mandement condenatório do Émile seja lido no sermão das missas paroquiais das igrejas da cidade, subúrbios e diocese de Paris e proíbe expressamente todas as pessoas [da diocese] de ler ou possuir o referido livro, sob as penas da lei.⁹¹

    O arcebispo de Paris faz questão de prevenir os fiéis de sua diocese quanto aos erros contidos no Émile. Começa seu Mandement condenatório citando São Paulo, que na segunda carta a Timóteo adverte sobre os sinais dos últimos tempos, dias perigosos em que os homens serão egoístas, gananciosos, soberbos, blasfemos (2 Tm 3, 1-8). Aos olhos do bispo, o século das Luzes se enquadrava plenamente nas palavras proféticas de Paulo: e em que tempos infelizes essa predição cumpriu-se mais literalmente que nos nossos?⁹²

    A incredulidade – certamente a mais recente estratégia do inimigo – insinuava-se nas mentes pela futilidade (Sb 4,12) e revestia-se de um estilo leve, agradável, frívolo. Daí, segundo o bispo, tantos romances, igualmente obscenos e ímpios, cuja finalidade é distrair a imaginação para seduzir o espírito e corromper o coração.⁹³Uma das estratégias da incredulidade – interpretada pelo bispo como entidade metafísica – era confundir as pessoas misturando linguagens diversas, o sério ao divertido, máximas puras a obscenidades, grandes verdades a grandes erros, a fé à blasfêmia; em uma palavra, tenta conciliar as luzes e as trevas, Jesus Cristo a Belial.⁹⁴ Aos olhos do arcebispo de Paris, Jean-Jacques encarnava bem essa incredulidade leve, sedutora, cuja finalidade era seduzir o espírito e corromper o coração.

    Rousseau havia ganhado certa projeção social com a publicação de La Nouvelle Héloïse, um dos romances mais lidos do século XVIII.⁹⁵ Autor de romance e portador de um belo estilo, Rousseau mereceu a desconfiança da parte dos homens da Igreja. Os romances de modo geral eram vistos como perigo moral, especialmente quando abordavam o amor e seus leitores eram senhoritas.⁹⁶ O poderoso arcebispo Beaumont certamente sabia do sucesso editorial e do perigo representado pelos textos saídos da pena daquele autor.⁹⁷ Em seu Mandement, ele trata Rousseau como um homem cheio da linguagem da filosofia sem ser verdadeiramente filósofo.⁹⁸

    O abade Claude-Yvon, ativo participante da Encyclopédie, acusa Rousseau de ter escrito o Émile pelo desejo da glória.⁹⁹ Argumenta que Jean-Jacques pretendia imitar Montesquieu na carreira literária contra a religião instituída, o que lhe proporcionaria grande projeção.¹⁰⁰ La Nouvelle Héloïse, na visão do abade, não seria outra coisa senão a imitação das Lettres Persanes, e o Contrat Social, um outro Esprit des Lois.¹⁰¹ O belo estilo de Rousseau estaria a serviço de uma vaidade digna de repreensão. O genebrino necessitava, ainda segundo Yvon, de ideias picantes que permitissem a ele se vingar de uma ordem social hierárquica que não lhe era vantajosa.¹⁰²

    Para Beaumont, Rousseau saía do seio do erro; cuidava-se de mente dotada de uma abundância de conhecimentos que não o esclareceram e que espalharam as trevas por outras mentes.¹⁰³ Os fiéis, tal como ovelhas sujeitas ao lobo, poderiam ser vítimas desse homem cuja intenção secreta era o desejo de ser conhecido por todo o mundo.¹⁰⁴ Daí toda a gravidade das advertências episcopais.

    O grande centro intelectual do Reino da França, a Faculdade de Teologia de Paris (Sorbonne), também não deixou de condenar o Émile. Numa Censure pública¹⁰⁵, a instituição diz que o autor dessa obra

    não tendo outro plano ao escrever que inspirar o desprezo pelos costumes antigos, e de fazer, às custas da felicidade pública, eu não sei que reputação, esforça-se pouco para escrever coisas verdadeiras, ao passo que progride nas novas e extraordinárias: homem absolutamente indefinível e incompreensível.¹⁰⁶

    Rousseau é representado pela Sorbonne como um homem contraditório: «inimigo e partidário das letras; legislador e destruidor da sociedade; panegirista perpétuo da honestidade, sem ter sido senão mestre eloquente da libertinagem."¹⁰⁷ Sua obra é considerada diabólica porque, com efeito, não chamaríamos senão diabólico isso que no seu livro este autor sacrílego vomita de uma boca ímpia contra Deus, contra a lei natural [...]. ¹⁰⁸ O livro diabólico, no entanto, estava sendo vivamente procurado: ora, este livro [...], senhores, todo cheio de venenos mortais, que deveriam inspirar um horror eterno, é procurado com o mais vivo entusiasmo. ¹⁰⁹

    Em 26 de outubro de 1763, o papa Clemente XIII felicita a Sorbonne pela condenação do Émile: "quod attinet ad censuram in librum de educatione, vestrum defendendae christianae Religionis studium vehementer laudamus.¹¹⁰ No Bref emitido por Roma, Rousseau é comparado a Berruyer.

    Após a condenação e queima do Émile pelo Parlamento de Paris, Jean-Jacques tinha a esperança de ver sua obra acolhida pelos homens da sua querida cidade natal, Genebra. Os protestantes, contudo, não tiveram atitude distinta da do mundo católico. Já em 19 de junho de 1762, dez dias apenas da condenação do Parlamento parisiense, o Procurador-Geral da República de Genebra, em nome do Pequeno Conselho, pronunciava a condenação do Émile e do Contrat Social, ordenando que fossem lacerados e queimados pelo executor da alta justiça, na porta do Hotel de Ville.¹¹¹

    Nas Lettres écrites de la campagne – publicadas em outubro de 1763 – o Procurador-Geral, Jean Tronchin, julga o Émile temerário e escandaloso.¹¹² Chama este e o Contrat de livros tão sedutores¹¹³, que tinham feito muito sucesso e causado muito escândalo.¹¹⁴ A Europa testemunha seu escândalo, diz o Procurador.¹¹⁵ O estilo rousseauniano é também posto em evidência: reconhece-se a beleza e o calor de seu estilo, a ousadia dos seus paradoxos, a licença e azedume de suas censuras.¹¹⁶ A matéria dos dois livros em questão deveria receber o adequado tratamento criminal: o livro é criminoso e encarado como corpo de delito.¹¹⁷

    As ortodoxias religiosas – católica e protestante – então fortemente vinculadas à estrutura do Estado, mobilizavam o aparato público contra os subversivos. O desvio em matéria religiosa é no Antigo Regime um caso de polícia. Jean-Jacques é visto pelas autoridades como um filósofo, alguém mais ou menos ligado ao combatente grupo dos philosophes, francamente contrários à religião oficial. A Sorbonne representa Rousseau como um autor infeliz¹¹⁸, pertencente ao grupo dos

    novos filósofos, que estão às vezes no campo dos nossos inimigos, estes homens bárbaros que, bem menos soldados que salteadores e assassinos, não pensam senão em roubar, massacrar, tolher, devastar com violência e mediante fraude, para aliviar sua maldade, e satisfazer a inclinação natural que eles têm de prejudicar.¹¹⁹

    As autoridades de Paris certamente não desconheciam os vínculos de Rousseau com os homens da Encyclopédie, aquele punhado de homens livres e iguais que d’Alembert diligentemente defendia das ameaças externas dos grandes, dos mecenas, dos poderes sociais e políticos, que Diderot inspirava desde dentro [...].¹²⁰ Conheciam a experiência inglesa do século XVII e sabiam bem dimensionar os potenciais perigos do deísmo e as possibilidades de subversão da ordem pública. O deísmo ou religião natural, a religião dos livres-pensadores, acarretaria a quebra da hegemonia da religião oficial e um relativismo inaceitável aos poderes dirigentes.

    O motivo central para a revolta das autoridades constituídas é o desrespeito que, a seus olhos, Rousseau presta à religião cristã. O arcebispo de Paris é enfático no seu Mandement quanto à existência no Émile de máximas contrárias à moral evangélica e

    um grande número de proposições respectivamente falsas, escandalosas, plenas de ódio contra a Igreja e seus ministros, transgressoras do respeito devido à santa Escritura e à tradição da Igreja, errôneas, ímpias, blasfematórias e heréticas.¹²¹

    Para o bispo, Rousseau representa a novidade que quer, a todo o custo, derrubar os alicerces do cristianismo. Suas máximas atingem os elementos centrais do catolicismo: a Igreja e seus ministros, a Escritura e a tradição.

    O abade Claude-Yvon também representa o genebrino como alguém que quer aniquilar o cristianismo. Mas Jean-Jacques lançava mão, na visão do abade, de um procedimento não utilizado pela maioria dos livres-pensadores: estes combatem abertamente os postulados da religião, expõem-se no projeto de luta contra a religião institucional; Rousseau, ao contrário, quer aniquilar as bases da religião tradicional de modo sorrateiro. Finge grande devoção, presta homenagem ao cristianismo, mas no fundo pretende extirpá-lo da face da Terra, tal como todos os outros. O seu discurso em defesa da religião, seu belo estilo e sua eloquência são armadilhas usadas para alcançar o seu objetivo.

    Claude-Yvon pretende denunciar o procedimento desse homem fingido e hipócrita: ele presta homenagem [ao cristianismo] mais ou menos como os assassinos de César, que se prostram a seus pés para degolá-lo mais seguramente.¹²² Numa outra passagem de suas Lettres, chama o genebrino de serpente perigosa.¹²³ Rousseau é aí também o criminoso da religião natural: descolando a fé de seus dogmas, ele a transforma numa religião puramente natural.¹²⁴

    O arcebispo de Paris mostra aos seus fiéis um Rousseau destruidor dos dogmas do Evangelho.¹²⁵ A mesma perspectiva é adotada pelos protestantes do Pequeno Conselho de Genebra, que encaram Rousseau como alguém que maquina contra a santa religião reformada, procurando provar em dois livros sedutores, que o puro Evangelho é um absurdo em si mesmo.¹²⁶

    E Rousseau, como vê a si mesmo? Como se posiciona em relação à condenação episcopal? Jean-Jacques se concebe como um protestante que faz objeções à Igreja Romana. Tal como muitos outros, vê-se como alguém que faz críticas a alguns abusos cometidos por Roma e pela fé aí professada. É isso o que responde ao arcebispo de Paris.¹²⁷

    O Parlamento de Paris, segundo ele, não deveria se pronunciar sobre a matéria de seu livro, já que foi escrito por um protestante e publicado num país igualmente protestante, com uma história de tolerância e liberdade religiosa.¹²⁸ Argumenta Rousseau que o Parlamento de Paris deve ter estranhas ideias sobre sua jurisdição e se acreditar o legítimo juiz de todo o gênero humano.¹²⁹

    Diante do arcebispo, Jean-Jacques expõe o lugar de onde fala. Não é um livre-pensador, mas um protestante, que como tal mantém discordâncias em relação a Roma. O abade Claude-Yvon reage: você protestante! E porque Genebra então se apressou em vos rejeitar de sua comunhão?¹³⁰ Um protestante certamente veria suas teses aceitas pela República protestante de Genebra; a condenação indica que não se trata de qualquer protestante, mas de um adepto da religião natural, um deísta. E o abade complementa:

    A máscara de cristão que você tem colocado sobre vosso rosto não enganou ninguém. Não é o herético que perseguimos em você, mas o hipócrita deísta, que sob o véu sagrado de uma religião que parece respeitar, trata de a abalar até nos seus fundamentos.¹³¹

    O arresto do Parlamento de Paris fala sobre os princípios ímpios e detestáveis ¹³² do Émile, e que Jean-Jacques, submetendo a religião ao exame da razão, não estabelece senão uma fé puramente humana [...].¹³³

    Rousseau procurou se defender dessas acusações com um documento redigido pelo pastor de Môtiers, local onde ele se instalou após a decretação da prisão pelo Parlamento de Paris. Nas Lettres écrites de la campagne, o procurador-geral da República de Genebra faz referência a esse atestado, no qual o pastor diz que Rousseau admitiu se unir do fundo de seu coração à comunhão dos fiéis.¹³⁴ Na carta ao arcebispo de Paris, Jean-Jacques também diz: feliz por ter nascido na religião mais razoável e mais santa que há sobre a Terra, permaneço indissoluvelmente ligado ao culto de meus pais.¹³⁵

    As teses de Rousseau tinham sérias implicações políticas e jurídicas. A crítica da religião instituída significava nesse momento inevitavelmente a do governo e a do direito estabelecidos. Para as autoridades políticas e religiosas de Paris e Genebra, o Sr. Rousseau é um criminoso digno das mais rigorosas sanções por parte do Estado. Seus escritos, em especial o Émile, haviam tocado em pontos sensíveis a respeito da religião e do

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