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Retórica, Seletividade e Criminalização: um estudo sobre a teoria da argumentação e os limites do direito penal
Retórica, Seletividade e Criminalização: um estudo sobre a teoria da argumentação e os limites do direito penal
Retórica, Seletividade e Criminalização: um estudo sobre a teoria da argumentação e os limites do direito penal
E-book336 páginas3 horas

Retórica, Seletividade e Criminalização: um estudo sobre a teoria da argumentação e os limites do direito penal

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Sobre este e-book

Esta obra explora as relações entre o direito penal e a leitura de seus discursos de legitimação através da teoria da argumentação de Chaïm Perelman. A pesquisa é movida pelo desafio de se compreender a possibilidade de um direito penal que respeite as limitações impostas pelo Estado Democrático de Direito num contexto em que a dogmática jurídica em geral (um universo no qual do direito penal se insere) vem se afastando dos postulados positivistas que têm servido de molde contra os abusos do direito de punir. As reflexões que a obra pretende provocar passam pela introdução de conceitos relativos à teoria da argumentação e seu instrumental de leitura do discurso jurídico em geral e do discurso jurídico penal em particular, colocando em relevo as interlocuções entre a seletividade penal, a retórica e a construção do discurso punitivo. Ao enfrentar, através da Teoria da Argumentação o manejo dos discursos jurídicos penais como instrumentos centrais da seleção criminalizante, o presente trabalho procura elucidar as possibilidades de sobrevivência de um direito penal democrático em um cenário em que o positivismo já não tem servido de baliza limitadora desse poder. E com esse horizonte é que lança um olhar sobre a ampliação desmedida que os discursos penais obtiveram através de conceitos indeterminados, do repúdio às possibilidades de discussão e da manipulação das certezas. Como proposta, a integração do direito penal ao cenário da teoria da argumentação, em que o discurso penal é construído em torno da crítica ao poder punitivo, fazendo parte do alinhamento entre os atores de uma sociedade -- para usar a consagrada expressão de Karl Popper -- aberta.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de mar. de 2021
ISBN9786559563241
Retórica, Seletividade e Criminalização: um estudo sobre a teoria da argumentação e os limites do direito penal

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    Retórica, Seletividade e Criminalização - Fabricio de Oliveira Campos

    28.

    CAPÍTULO 1 - DA RETÓRICA À NOVA RETÓRICA: A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO COMO REDIMENSIONAMENTO DO RACIONAL E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O DIREITO

    1. 1 POR QUE A RETÓRICA?

    A retórica retomou o seu curso, ainda não definitivo, sobre o estatuto de racionalidade das ciências humanas, ainda que seu campo de atuação, seus limites e sua própria definição para a época pós-moderna ainda estejam em construção. A história das ciências (ou melhor, a história dos discursos científicos) registra que a retórica tem períodos de obscurecimento contrastados com retomadas em movimentos pendulares, quando, como anota Michel Meyer, precisa-se levar adiante a racionalidade em face da fragmentação das ideologias: sempre nos momentos em que os velhos modelos intelectuais, e portanto culturais, desmoronam, é que a retórica renasce.

    Mas, à aparição da Retórica como inserida num sistema de ensino e de pensamento seguiu-se a cruzada platônica em prol da filosofia e da verdade, fundando assim pela primeira vez a distinção entre o pensar filosófico e o pensar sofístico, identificado então com o pensamento que faz enganar e entorpecer.

    De modo análogo ao projeto platônico de redefinição da razão, opondo a filosofia (da retidão, da verdade) ao sofisma (que cabia, em geral, à retórica), não foram poucas as retomadas do pensamento que determinaram-se como pontos de ruptura com um pensar mais ou menos identificável com a retórica e sua herança cultural. Embora impregnado da retórica em todos os níveis de comunicação, o século XX e mesmo o século XXI presenciam, paradoxalmente, essas rupturas, quando modos de argumentar em ciências sociais são identificados, em última análise, com uma evidência científica contra a qual não cabe discussão senão num sentido muito estreito. Para lançar mão de um simples exemplo, vejamos que na abertura da Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen anuncia que a liberação da ciência jurídica de elementos a ela estranhos significa o único caminho para seu princípio metodológico fundamental, e Isto parece-nos algo de per si evidente.

    Mas a racionalidade calcada na evidência não poderia resistir ao esfacelamento progressivo, que começa no século XX, dos gigantescos projetos filosófico-políticos que se embatiam num pós-guerra maniqueísta. O mundo contemporâneo é o mundo da erosão das explicações monolíticas e das vias alternativas, fragmentadas em direções diversas. E se por um lado, para muitos, e desde suas origens, a retórica tem má-fama⁶, por outro ela está impregnada em todas as atividades em que se identificam atos de comunicação, seja como mecanismo de manipulação, seja como modo de identificar as manipulações. Seja para viabilizar em certo sentido os regimes totalitários, seja para deles nos libertar.⁷

    O século XX e por herança também o século XXI, acabam presenciando um outro momento, digno de monta, do ressurgimento da retórica: ressurgimento notável a ponto de fazer com que o discurso filosófico voltasse a ela como preocupação central, re-inaugurando-a como metalinguagem.

    Ao contrário de outros pesquisadores, como Emmanuelle Danblon⁸ e mesmo Chaïm Perelman, que reduzem os pontos de retomada retórica à Antiguidade e ao Século XX, Michel Meyer⁹ indica na história do pensamento ocidental que a renascença testemunhou um interesse particular na retórica, muito embora nela se detectasse também o estabelecimento do paradigma oposto, onde o discurso cartesiano livra a racionalidade dos estudos retóricos.

    A principal compilação sobre a retórica na Antiguidade foi a obra de mesmo nome atribuída a Aristóteles, o que não chegou a ofuscar as posteriores influências das reservas de Platão. Na renascença, mais uma vez, a retórica ganha fôlego com o advento de um novo humanismo até deparar-se com a ruptura reivindicada pela ciência moderna, conforme Descartes anuncia em seu Discurso do Método e, finalmente, num terceiro momento, o racionalismo e o empirismo do século XX deixam à retórica um espaço ínfimo, de onde foi resgatada pelas filosofias da linguagem ordinária e, em especial, pelo Tratado da Argumentação, de Chaïm Perelman.

    De todo modo, é nessa última encruzilhada, registrada no século XX que a nova sistematização da retórica chama a atenção, pelo modo como funcionará como instrumental de leitura para o próprio discurso das ciências sociais, incluindo aí sua inclusão no difícil debate em torno do estatuto de cientificidade do direito. Nesse aspecto é através da obra de Chaïm Perelman que se estabelece o contraponto à ditadura da evidência no discurso científico (em especial a evidência, no direito, do discurso positivista). Numa etapa mais avançada, enfim, a retórica passará a ser definida como um modelo de reaproximação entre os seres pela redução de suas diferenças, conforme a chamada problematologia de Michel Meyer¹⁰.

    1. 2 OS PRIMEIROS REGISTROS DE UMA RETÓRICA AUTÔNOMA: UM MITO FUNDADOR?

    O exercício explicativo de uma história da retórica consiste na enumeração sintética de um desenvolvimento geral da noção ao longo da história do pensamento. Os significados dessas definições certamente podem passar pelas interferências das leituras contemporâneas ou da necessidade de se apropriar de um ou outro sentido com o propósito de amoldar uma concepção moderna da retórica. Em comum, as concepções de uma história da retórica envolvem sua relação com a ruptura de sistemas de pensamento ou de determinados modelos políticos, de modo que os momentos de preocupação intelectual com a retórica coincidem no mais das vezes com a perda de sentido de grandes contextos explicativos da sociedade, da política, do direito e do mundo. Assim na gênese, assim nas retomadas, assim em suas versões contemporâneas.

    Com efeito, parte significativa das obras que procuram traçar um conceito moderno de retórica (adotando-a como importante para a figuração da racionalidade contemporânea) passam pela linha de desenvolvimento de uma conferência feita por Roland Barthes sobre a retórica antiga.

    Roland Barthes situa a aparição da Retórica como disciplina autônoma a partir dos conflitos fundiários que tiveram lugar na Sicília após o fim de um período de usurpação tirânica. Foram organizadas tribunas populares, onde a deliberação quanto à vitória dependia da escolha do melhor discurso¹¹, situação que deu margem à profissionalização dessas tarefas, com rápida expansão para Atenas. A tese de Barthes é referenciada sob certo consenso em monografias sobre a retórica e a filosofia. Seguem esse traçado Michel Meyer¹², Manuel Maria Carrilho¹³, Olivier Rebul¹⁴, Philippe Breton e Gilles Gauthier¹⁵. Necessário acrescer que, ao tempo em que escreveu sua apostila sobre retórica, Barthes apontava não haver qualquer estudo sistemático sobre a história do tema até então¹⁶, o que deixa antever que o registro histórico poderia não caber na precisão esperada de um resgate empírico.

    De fato, nos apontamentos de Barthes não se faz menção ao fato de que esse surgimento da retórica como elemento apaziguador e gestor de conflitos, após a queda dos tiranos na Sicília, encontra-se numa menção indireta feita por Cícero, atribuindo o conhecimento daquelas origens a uma obra de Aristóteles. A citação se alonga para o destaque, necessário, feito por Cícero a respeito dos vínculos entre a retórica e a estabilidade político-econômica:

    A eloquência é a serviçal da paz, criada da prosperidade e da tranquilidade e encarregada do legado de uma constituição bem estabelecida e livre. Aristóteles, por isso, informa-nos que quando os tiranos foram expulsos da Sicília, e a propriedade privada (após um longo período de servidão) foi atribuída através de julgamentos públicos, os sicilianos Corax e Tisias (que para sua gente, em geral, eram rápidos e perspicazes e tinham uma inclinação natural para a controvérsia) tentaram pela primeira vez escrever preceitos sobre a arte de falar. Antes deles, diz ele, não havia ninguém que falasse através do método e pelas regras da arte, embora houvesse muitos que discursavam bem sensivelmente e geralmente a partir de anotações. ¹⁷

    Daí pode-se perceber mais a fundo o quão imprecisas são as fontes dessa trajetória. Aparentemente, o legado de Cícero na confecção de um apanhado histórico já em seu tempo esteve associado a quase todas as versões que afirmam abrigar o verdadeiro fundamento histórico da retórica no ocidente. Por sua vez, o Brutus, de Cícero, conecta-se a uma diversidade de outras fontes, em especial nas referências dos atualmente desaparecidos textos de Aristóteles do Synagògé Technôn.¹⁸ Seria desse texto desaparecido que parte a referência dada por Cícero de que Córax e Tísias teriam sido os pioneiros na sistematização da retórica para uso prático no contexto dos processos judiciais na Sicília, embora a experiência decorrente dessa sistematização tenha ficado soterrada entre a versão de Cícero e o fragmento desaparecido de Aristóteles. Segundo George Kennedy, apesar das imprecisões, o alegado resgate da origem da retórica encontra-se no contexto da justificação de que o conhecimento dessas técnicas realiza um papel democrático atrelado ao discurso público:

    Cícero talvez tenha escrito a partir de informações de segunda mão ou pela memória e pode não ter reportado com precisão o que constava de Aristóteles e (...) é provável que Corax e Tísias sejam na verdade a mesma pessoa. Entretanto, a passagem, tomada em conjunto com narrativas posteriores parecem indicar que Aristóteles associou tentativas de descrever a técnica do discurso público com a emergência da democracia e pensou que aspectos daquilo que era chamado retórica em seu tempo poderiam ser encontrados em manuais e discursos do quinto século (a.C), existindo ainda antes em composições discursivas cuidadosas e ordenadas direcionadas à persuasão, embora não codificadas como um método.¹⁹

    Moisés de Lemos Martins²⁰ reenvia essa noção histórica fundamental ao conceito de mito fundador, na esteira da percepção de Christian Plantin onde o recorte da explicação genética sobre as origens da retórica como disciplina autônoma guarda paralelismo com o nascimento da geometria, como conta Heródoto, para quem ela nasce a partir da necessidade de se restabelecer limites territoriais após as cheias naturais do rio Nilo, no Egito. Num e noutro caso, tais disciplinas nascem com o propósito de estabelecer limites, de convencionar fronteiras e espaços: a matemática designa o restabelecimento da desordem natural e a retórica constrói a ordem após o desastre humano. E conclui Martins: O que é feito pelas palavras, é por elas desfeito.²¹ Barthes espanta-se que essa arte tenha sido originada da socialidade mais nua e crua, afirmada na brutalidade mais fundamental, a da posse da terra²², justo porque a prosa, em nível de arte, somente iria angariar tal estatuto mais tarde. Portanto, a teorização da prosa (a palavra fingida) é dominada pela medição conflitual. E essa necessidade de delimitar, de dar-se a cada um o que lhe pertenceria através de um espaço de discussão destaca justamente aquilo que Meyer, em sua síntese, afirma ser o papel da retórica: a gestão da separação entre os seres afastados pelo problema.

    O aspecto mais importante dessa correlação histórica, ao menos para os propósitos da exposição, não se encontra propriamente no alcance empírico da constatação pela qual os sofistas e a retórica teriam surgido em certo tempo e em certo lugar. O que se capta de essencial neste consenso é sobretudo a vinculação da palavra discutida com um momento de ruptura política, que vai da tirania à democracia, da decisão fora do alcance de qualquer objeção à responsabilidade que a situação de liberdade impõe, que é a de designar as ações pela persuasão e não pela força. E se, tratando a gênese da retórica como mito fundador, é possível combiná-la com a presença restauradora da geometria, como cálculo a recompor a tirania da natureza, a retórica tem a sua fundação voltada para a recomposição da tirania humana, com os cidadãos entregues ao uso responsável das leis que promovem e discutem. Emmanuelle Danblon, preconizando que a retórica encontra-se na vivência dessa ruptura que vai do mito à razão (e portanto marco fundamental de uma sociedade aberta, nos termos trazidos de Popper), aduz que A descoberta do mundo humano é a descoberta da liberdade e de seu difícil corolário: a responsabilidade.²³ O trânsito do pensamento mítico à racionalidade discursiva associada às discussões públicas da polis encontra-se profundamente comprometido com as raízes da produção de parte de uma cultura jurídica.

    O saber jurídico, por sua vez, pode ser associado ao trânsito do mito à racionalidade e, às vezes, da racionalidade ao mito, em perspectivas nem sempre identificáveis de modo óbvio. É que a adaptação às estratégias retóricas se encontra arraigada, sob um consenso pouco contestado, na supressão do pensamento mítico, embora por vezes o reingresso da palavra mágica esteja conectado com o suporte de determinadas relações de poder. Enfim, ao menos numa perspectiva geral e consonante com o projeto que se compromete em associar a retórica com a racionalidade discursiva, fala-se em vínculos estáveis entre o uso da palavra na polis, a vida activa (apropriado, no sentido harendtiano, da ação) e a democracia e que, na medida em que se tem por aceita uma estrutura jurídica que viabilize o acesso à discussão, a produção judiciária estará de alguma forma de acordo com uma construção racionalmente democrática e compartilhada das leis e de seu

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