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A Política do impossível
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E-book80 páginas1 hora

A Política do impossível

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Sobre este e-book

Stig Dagerman nos obriga a colocar em dúvida as verdades recebidas e a nos olharmos no espelho, como indivíduos, como sociedade, mas sobretudo como seres humanos. Rebelde à injustiça em todas suas formas de manifestação, sua obra preserva uma forte atualidade, assim como sua reflexão política e cultural. A essa faceta do grande autor sueco é dedicada essa antologia de escritos publicados em jornais e revistas literárias e anárquicas. Com uma surpreendente capacidade de ler o próprio tempo e prever o nosso, com sua coerência extrema, Dagerman denuncia as "gaiolas" da moderna democracia, mas sobretudo reivindica o papel da literatura "de mostrar o significado da liberdade", de provocar as consciências para resgatar o homem e seus valores fundamentais: a igualdade, a defesa dos mais fracos, a solidariedade. E confessa seu conflito de escritor dividido entre o empenho social e a inviolável autonomia da imaginação, que deve seguir livremente os próprios caminhos para "tocar o coração do mundo". Se a política é definida como a arte do possível, isto é, dos limites, do compromisso, da renúncia à esperança, Dagerman defende com toda sua força a necessidade de uma "política do impossível".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de mai. de 2021
ISBN9786586683882
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    A Política do impossível - Stig Dagerman

    Sumário

    Corações ardentes

    1943

    Publicado em dezembro de 1943 na revista dos jovens anárquicos Storm.

    Os versos citados no início do artigo foram retirados da poesia Revolusjonens røst (A voz da revolução), do norueguês Rudolf Nilsen (1901-29).

    Como diz o poeta

    Dê-me corações ardentes, que

    jamais mudem e se percam em

    incertezas, mas que encarem cada triunfo e cada derrota com o mesmo invulnerável sorriso.

    Corações ardentes. Quem ainda se interessa por corações? E por poetas? Evidentemente, quem precisa ter um coração preparado e são é o piloto que alça voo para bombardear e espalhar a morte por todo lado, além, claro, daquele que está no comando da metralhadora com a missão de mandar chumbo no peito e no estômago dos outros; esse tipo de homem não pode carregar do lado esquerdo do peito um órgão feito de açúcar. Mas ardentes? Não, meu amigo, se fosse assim teria sido descartado na seleção médica como um morto-vivo. Só de ouvir falar, conheceria o efeito devastador de uma granada, a realidade cruel das nuvens de pólvora de um bombardeamento e o pequeno inferno, talvez não tão pequeno assim, que é estar em um navio vendo o inimigo trazer a morte.

    E imagine como seria, cara srta. Johansson, se você, você mesma, tivesse um coraçãozinho ardente dentro do peito naquela hora. Provavelmente não estaria sentada como está agora, com a testa franzida, anotando impecavelmente em seu caderninho tudo o que diz o sr. diretor. Talvez não estivesse aqui agora. Talvez outras coisas tivessem acontecido. Vai saber. Corações ardentes são tão imprevisíveis. Melhor assim, talvez. Pode ser melhor que seu coração tenha esfriado com o tempo, sr. atirador de bombas, sr. soldado faz-tudo; e o seu também, senhorita com o caderninho. Muitas outras coisas ardem, mesmo quando o coração está apagado.

    E, entretanto, uma pequena objeção tenta emergir com cautela da completa escuridão, um relógio badala, ou talvez não seja um relógio, com batidas firmes e precisas no silêncio uivante. Cale-se, ouviu? Metralhadoras, não, algo ainda mais forte; bombas, não, nem de perto; tiros de canhão, máquinas de escrever, slogans de propaganda, sirenes de ambulância? Nada disso. Não dá para adivinhar. Pense bem. E se fosse aquilo, sim, aquilo que faz os poetas falarem e os outros calarem? Pensem, srta. Johansson e todos vocês aí, se entre o barulho da guerra e o ruído da praça surgisse um som de prata, de flauta, com uma mensagem para seus ouvidos, para suas orelhinhas, sim, justamente para vocês, vocês, você. Sim, tudo pode acontecer. Talvez, uma noite, a lua despedaçada da poesia, fixando com olhar frio a Flandres longínqua, acenda um fogo que não aquecerá dedos dormentes, pés congelados em botas, corpos duros em fardas militares. Não, não um fogo aceso por soldados mortos de frio no meio de uma das grandes florestas da guerra, não uma fogueira feita de palha tomada de um estábulo, mas um fogo de chamas impetuosas e constantes, destinado a durar, capaz de aquecer corpos congelados e corações frios. Um dia talvez o primeiro coração acenda, ou pode ser que já esteja aceso; talvez ardam os corações no gelo dos fronts, na couraça de um submarino ou no arame farpado de uma prisão de guerra sob a solitária lua flamenga. Quiçá já seja assim. Talvez um dia o poeta tenha seus corações ardentes. Talvez o mundo tenha. Sim, o mundo precisará de corações ardentes, de estrelas luminosas e de jovens cheios de disposição e vigor, quando terminar a guerra e se restabelecer a paz. Corações jovens, mentes jovens e corpos jovens farão o mundo jovem novamente.

    «Os teólogos falam e querem ser ouvidos em meio aos estrondos, entre os vermes da guerra que avançam inexoravelmente. E nós, os jovens, escutamos e queremos manter os valores que consideramos os mais elevados, defendemos todos com nossas palavras, pegamos em armas para lutar por eles. Esse é o nosso amor ao próximo e a tudo aquilo que vive, o azul do firmamento e o orvalho que brilha nos campos. Mas nossa vista é ofuscada pelo visor do capacete, cinza como uma tempestade de outono. Não vemos as flores nos campos nem os pássaros, porque queremos individualizar o próximo na mira e abrir fogo naquela maravilha que é um peito vivo, um coração pulsante.» Isso é o que escrevia um garoto, um amigo, em uma revista juvenil. Era um secundarista sueco poupado, se não de vestir o capacete, pelo menos de precisar se exercitar com baioneta e rifles em alvos humanos vivos.

    Muitas outras coisas foram poupadas. Para nós nada aconteceu além de ouvir passos de botas em marcha ou batidas fortes na porta e soldados estrangeiros com vozes duras pulando da cama para subir em caminhões. Nenhuma mão bruta nos jogou em cela de prisão de porta de ferro e paredes grossas nem fomos obrigados a confessar nada sob tortura; temos nossas unhas e nenhum sinal de flagelação nas costas. Ninguém de nós foi raptado na névoa matinal, colocado diante do pelotão de execução e crivado de bala. Não, somos sortudos, ou pelo menos não sofremos nada de mau, foi

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