Todos os lugares são de fala
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Sobre este e-book
Sim, este livro denuncia a cultura woke, PIM! Mas acima de tudo, este livro louva e incita ferozmente à liberdade de expressão, à liberdade da fala.
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Todos os lugares são de fala - Paulo Nogueira
TODOS OS LUGARES SÃO DE FALA
Título: Todos os Lugares São de Fala – Manifesto Pela Liberdade de Expressão
Autor: Paulo Nogueira
© Autor e Guerra e Paz, Editores, Lda., 2022
Reservados todos os direitos
A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.
Revisão: André Morgado
Design: Ilídio J.B. Vasco
Isbn: 978-989-702-731-4
Guerra e Paz, Editores, Lda
R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.
1150-105 Lisboa
Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489
E-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt
www.guerraepaz.pt
À ESPERA DOS BÁRBAROS
O que esperamos nós em multidão no Fórum?
Os Bárbaros, que chegam hoje.
Dentro do Senado, por que tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?
É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.
Por que o Imperador acordou tão cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?
Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para o receber. E até já preparou
um discurso em pergaminho, em que pôs,
dirigidos a ele, títulos e nomes imponentes.
E por que saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de togas escarlates e bordadas?
E por que levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E por que levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?
Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.
E por que não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?
Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.
Por que, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos tornaram-se sérios!
E por que esvaziam-se tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa ensimesmados?
Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E pessoas recém-chegadas da fronteira
dizem que não há já sinal de Bárbaros.
E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.
(«À Espera dos Bárbaros», de Konstantinos Kaváfis)
Índice
Introdução
1. Para que serve essa tal liberdade de expressão?
2. O evangelho segundo as redes sociais
3. Considere-se um zombie
4. Campus minado: microagressões e macrovitimizações
5. O pós-modernismo e o blackout do iluminismo
6. Livros? Livra…
7. Que sei eu?
Conclusão
Bibliografia
Nota do autor
Este livro nasceu de uma sugestão do meu amigo Manuel S. Fonseca para escrever sobre questões que nos fascinam e preocupam. E obras que vêm ao mundo a partir de uma amizade – ainda por cima uma amizade intercontinental – têm no mínimo um álibi.
Em tempo: o livro é uma tentativa de interpretação. Nele menciono apenas os livros ou artigos que me foram mais directamente úteis. As obras e autores citados estão na bibliografia.
Introdução
Localizado no Hide Park, no coração de Londres, o speakers corner é, há pelo menos século e meio, um ícone e oásis planetário da liberdade de expressão (existem congéneres na Austrália, Trinidad e Tobago, Singapura, Holanda e EUA).
Lá, qualquer pessoa pode vender o seu peixe e fazer discursos criticando qualquer um. Para arengar os transeuntes, tudo o que o orador precisa é de se empoleirar num caixote ou cadeira (dado que a levitação não é para todos), pois, segundo a tradição britânica, se o cidadão pisar o solo inglês estará submetido às leis nacionais (que proíbem, por exemplo, ofensas à família real).
Daí que inúmeras manifestações foram convocadas ou terminaram no speakers corner, e lá peroraram rebeldes inflamados, de Karl Marx a Vladimir Lénine. O primeiro grande protesto realizado no speakers corner aconteceu em 1855, e foi saudado por Marx – com a sua proverbial imprecisão profética – como o estopim da revolução socialista inglesa. O próprio George Orwell enalteceu o local como «uma das mais pequenas maravilhas do mundo».
Bem, na era da cacofonia estridente das guerras culturais, aquele santuário da liberdade de expressão parece ter os dias contados. Em Agosto de 2021, Hatun Tash, ex-muçulmana convertida ao cristianismo, foi ali esfaqueada e teve sorte de escapar com ferimentos relativamente leves. Quando conversava cordialmente com um interlocutor que fizera o percurso contrário (do cristianismo para o islamismo), Tash foi atacada por um homem encapuzado, que cortou o seu rosto e um braço, deixando-a coberta de sangue, prostrada no chão. «O atacante não me disse o que fiz de errado», balbuciou ela.
Tecnicamente, nada. Recentemente, o speakers corner degenerou no enésimo campo de batalha entre legionários da justiça social. Uma das principais armas das guerras culturais do século xxi é precisamente o cancelamento: a obliteração do interlocutor, a mordaça digital. Na realidade virtual, o linchamento é electrónico – na realidade física, pode descambar em execução biológica.
Para tanto, nem é necessário cometer o pecado da blasfémia sacrílega. Para disparar retaliações fanáticas, basta professar o que até ontem eram singelos truísmos e tautologias, como «as mulheres menstruam». Paradoxalmente, a contemporaneidade militante redime baboseiras arcaicas, como «gordura é formosura», proclamando o sacrossanto direito dos obesos de serem obesos. Outro paradoxo é que na época da subjectividade universal (e vivam os oximoros) tudo é politizado – portanto, nada é de facto íntimo nem privado: no melhor estilo totalitário. Até um vírus se torna ideológico, de esquerda ou de direita, assim como a respectiva vacina (embora, como veremos, a politização da ciência não seja inédita, atestada tragicomicamente por Trofim Lysenko, o agrónomo charlatão de Estaline, com a sua «genética proletária»). Por outro lado, valores como a compaixão, a empatia, a boa vontade, a tolerância e o perdão já não interessam nem ao Menino Jesus (agora um millennial queixinhas, que não pediu para nascer por obra e graça do Espírito Santo).
Define o Merriam Webster, um dos melhores dicionários do mundo: «Ódio: hostilidade e aversão intensas geralmente decorrentes de medo, raiva ou sensação de ofensa.» Em contrapartida, realça o Plano de Acção da ONU Contra o Discurso do Ódio, de 2019: «Incitação ao ódio: qualquer tipo de comunicação na fala, escrita ou comportamento que ataque ou use linguagem pejorativa ou discriminatória com referência a uma pessoa ou grupo com base em quem eles são. Ou seja, a sua religião, etnia, nacionalidade, raça, cor, descendência, sexo ou qualquer outro factor de identidade.»
A contradição prática, inopinadamente, reside em que a salvaguarda radical de identidades cada vez mais solipsistas está a gerar… discursos de ódio. E ostracismos. E segregações. Como confessou recentemente o dramaturgo britânico Tom Stoppard: «As pessoas andam com cautela, nas pontas dos pés, têm cuidado com o que dizem. Caso contrário, perdem a reputação, ou possivelmente o ganha-pão. Pessoalmente, estou obsoleto em relação ao que é permitido dizer e pensar».
Stoppard é um autor famoso, estabelecido e rico – assim como J. K. Rowling, que também melindrou a nova inquisição política. Ou, digamos, o cantor Roger Daltrey, que é a contra a nova ortodoxia. Será hoje a liberdade de expressão um luxo sibarita dos que podem falar o que lhes dá na cabeça – isto é, uma ínfima elite, aliás em extinção? Mas, nesse caso, ainda prestará para alguma coisa?
Como chegamos a esse ponto? Existirão marchas-atrás ou bifurcações – e serão aconselháveis? Para que serve afinal o raio da liberdade de expressão? Ela alguma vez realmente existiu? É humanamente possível ou não passa de uma confortável ilusão? (Quem, em algum momento, não odiou algo ou alguém?) Existem verdades objectivas fora da psique individual? A ciência reduz-se a uma maquinação diabólica urdida por homens brancos, ocidentais e cis (o que já exclui, por exemplo, o honorável Ibn al-Haytham, o primeiro cientista experimental – sem falar na Bayt al-Hikma, a Casa da Sabedoria, fundada pelo califa Harun al-Rashid na Bagdade do século ix –, e o desditoso Alan Turing, para não mencionar madame Curie)? E quais os limites adequados para a liberdade de expressão naquilo que, na conflagração entre minorias cada vez mais tribais e atomizadas, pode – quem sabe? – consumar o mito hobbesiano da guerra de todos contra todos; e salve-se quem puder?
Eu, se fosse vocês, não perdia os próximos capítulos.
1. Para que serve essa tal liberdade de expressão?
Não, as palavras não são vestais, até porque nas sociedades humanas, definidas exactamente pela linguagem – no princípio é sempre o Verbo, o Logos, embora nunca apenas ele –, tudo passa pelas palavras, da escravidão ao entretenimento, do amor ao ódio. A nossa civilização, como qualquer civilização, é uma conversa – de preferência, mais diálogos do que monólogos ou solilóquios, mais horizontal do que vertical. Por isso mesmo, como realça Jonah Goldberg, «a ruína da nossa civilização só será inevitável se as pessoas que estão a conversar e a argumentar pelas coisas certas pararem de falar».
Se é possível que já tenha existido a opressão absoluta (as sociedades totalitárias, arcaicas e modernas), é improvável que tenha existido ou venha a existir a liberdade absoluta (excepto nas fantasias adolescentes, nos mitos edénicos das idades de ouro e nas abstracções utópicas que tendem a descambar em distopias), pelo menos a nível comunitário (certos indivíduos, quem sabe, talvez consigam cartografar na intimidade a sua Ilha dos Amores, mesmo no triângulo das Bermudas do devir). Acontece que o advento histórico do Estado, um mal menor que é o salvo-conduto da civilização, corresponde sempre a uma barganha, mais ou menos voluntária, entre o cidadão e a respectiva pólis (que se apropria do direito à violência, tornando-o um monopólio para instaurar a ordem interna, e em contrapartida negando o direito à violência privada). Mas a barganha processa-se também horizontalmente, entre nós e os outros, pois se o Inferno são os outros, o Céu também o é.
Como observa Todorov: «Se nada vem regulamentar esta vida, apenas contará a força. Mas a liberdade do mais forte significa a ausência de liberdade para os mais fracos: é sempre a história da raposa livre no galinheiro. Ou, para voltar às diversas formas de expressão: se meu vizinho tem a liberdade irrepreensível de me caluniar, eu não tenho mais a de sair à rua sem corar. Se os anunciantes das redes de prostituição têm a liberdade de cobrir os muros de minha cidade com cartazes mostrando mulheres amarradas ou simplesmente reduzidas a objectos de consumo, eu não tenho mais a liberdade de sair para passear sem vê-las ou de impedir os meus filhos de interiorizar estas imagens.»
O grande jurista norte-americano Oliver Wendell Holmes escreveu que a Constituição deve defender não «a liberdade de pensamento para aqueles que concordam connosco, mas sim a liberdade para o pensamento que detestamos». A pensadora marxista Rosa Luxemburgo explicita: «A liberdade é sempre a liberdade de quem discorda de nós.» As nações democráticas comprometem-se a tolerar uma miscelânea de pontos de vista, incluindo os selvagens, incoerentes e loucos. Ainda assim, também é de Wendell Holmes a célebre frase: «A protecção mais rigorosa da liberdade de expressão não protegeria um homem a gritar fogo falsamente num teatro apinhado e a causar pânico.» E o mesmo ponderado autor questionou: «Ter a certeza não é garantia de estar certo. Quantas vezes já não tivemos a certeza absoluta de coisas que não eram o que pensávamos?»
Na epígrafe do livro The Captive Mind, o polaco Czesław Miłosz, Nobel da Literatura de 1980, citou esta máxima, atribuída a «um velho judeu da Galícia»: «Quando alguém está, honestamente, 55 % do tempo certo, isso é muito bom e não faz sentido discordar. Se estiver 60 % certo, isso é maravilhoso, sinal de boa sorte, e essa pessoa deve agradecer a Deus. Mas e se estiver 75 % certo? Os sábios diriam que é suspeito. Bom, e que tal 100 % certo? Quem quer que diga que está 100 % certo é um fanático, um criminoso e o pior tipo de patife.»
Sim, o ser humano tem interesses egoístas, mas eventualmente é capaz de superá-los: cada um de nós sabe a diferença entre o lucrativo e o bom, a sinceridade e a hipocrisia. Não é porque o papel e a impressão surgiram na China que a Alemanha nazi fez bem em queimar livros; não é porque os direitos do homem foram formulados na Europa que não devemos exigir o seu respeito no Afeganistão. Karl Popper destacava que o facto de que a verdade tenha, ou possa ter, uma existência relativa, não significa que a verdade seja sempre relativa. A verdade é precária, porque a ciência e a consciência são falíveis, como os seres humanos que as exercem – mas tem também uma existência independente da mente humana. Por isso, a precariedade não quer dizer que a verdade seja quimérica. Quer dizer que, para chegarmos a ela, temos de ser obstinados e diligentes na verificação e na crítica, nas experiências que testam a verdade – e cautelosos quanto tivermos chegado a certezas, abertos a revisões e rectificações, e flexíveis diante dos que contestam as verdades estabelecidas.
Por outras palavras, a viabilização da liberdade de expressão numa sociedade democrática – e só nestas aquela é possível – é (ou deve ser) inerente e concomitante à sua demarcação. Daí que os dois lados da barricada (ou quantos lados quisermos), ao longo da história, se tenham acusado mutuamente de censura e obscurantismo, puxando a brasa para as respectivas sardinhas. Libertários fogosos já brandiram o disparate: «É proibido proibir!» (Ou, como antecipou jocosamente Baudelaire: «Se é proibido, é bom!»). No tribunal de Nuremberga, Julius Streicher, director