Suplemento Pernambuco #191: Morangos mofados
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Suplemento Pernambuco #191 - Jânio Santos
CARTA DOS EDITORES
Acender e apagar: gesto dos vaga-lumes, gesto de quem fuma cigarros. Ligar o abajur que não ilumina tudo. Na primeira capa do Pernambuco de 2022, uma fruta apodrece à meia-luz - vamos falar de Caio Fernando Abreu (1948-1996) e daquele que é seu livro mais conhecido, Morangos mofados . A obra completa 40 anos. As leituras do crítico Italo Moriconi e da escritora Natalia Borges Polesso evidenciam o texto como representação dos dilemas geracionais de um grupo de pessoas que se torna adulto durante a ditadura, e também trabalham sua reverberação às meias-luzes de hoje. Os diálogos entre solidões que marcam Morangos mofados mostram a insistência na vida doce/azeda no início dos anos 1980, um movimento que não soará estranho ao leitor de 2022. As imagens criadas por Juliano Soares figuram os objetos que, nas ficções de Caio, possibilitam o contato entre as pessoas e ofertam metáforas sobre o trânsito dos viventes.
Nos seus demais momentos, esta edição prioriza uma diversidade de discussões que se situam entre a literatura e questões do contemporâneo. Marina Farias discute como Eliana Alves Cruz trabalha o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, como um espaço que permite romper os impossíveis da história do escravagismo e do racismo no Brasil; André Santa Rosa pensa a nova página no bestiário que Chacal vem criando com sua carreira, o livro Brotou capivara; Ana Rüsche constela as narrativas true crime, grande sucesso de seriados e podcasts, em sua relação com a literatura sobre crimes; João Moraleida pensa como crônicas de Ronaldo Correia de Brito permitem leitores abrir mais janelas e portas para a ficção do autor de Dora sem véu; e o escritor Cristhiano Aguiar compartilha uma das ficções que compõem seu livro Gótico nordestino (Alfaguara, no prelo).
No 3º texto do especial A ciência como ela é, o escritor Tiago Ferro pensa os caminhos e os interesses do matemático Tiago Pereira da Silva, que pesquisa, entre outros objetos, a taxa de transmissão da covid-19 em salas de aula. Da infância no futebol de várzea, passando pela entrada no mundo do trabalho, pelos estudos e pela sua atenção a qualquer tipo de jogo, o texto humaniza o cientista e deixa ver o afeto que pode existir por trás de um trabalho científico.
Um ótimo começo de ano a todas e todos!
COLABORAM NESTA EDIÇÃO
Ana Rüsche, escritora, autora de A telepatia são os outros; André Santa Rosa, jornalista e poeta; Carol Almeida, edita a série A ciência como ela é; Cristhiano Aguiar, escritor, autor de Gótico nordestino; João Moraleida, geógrafo e livreiro; Laura Erber, poeta, autora de A retornada; Márcio Bastos, mestrando em Comunicação (UFPE); Marina Farias Rebelo, doutoranda em literatura brasileira (UnB); Matheus Mota, ilustrador de A ciência como ela é; Reginaldo Pujol Filho, escritor, autor de Não, não é bem isso; Tiago Ferro, escritor, autor de O pai da menina morta; Wander Melo Miranda, crítico, autor de Os olhos de Diadorim
EXPEDIENTE
Governo do Estado de Pernambuco
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
Vice-governadora
Luciana Barbosa de Oliveira Santos
Secretário da Casa Civil
José Francisco Cavalcanti Neto
Companhia editora de Pernambuco – CEPE
Presidente
Ricardo Leitão
Diretor de Produção e Edição
Ricardo Melo
Diretor Administrativo e Financeiro
Bráulio Meneses
Superintendente de produção editorial
Luiz Arrais
EDITOR
Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
DIAGRAMAÇÃO E ARTE
Hana Luzia e Janio Santos
ESTAGIÁRIOS
André Santa Rosa, Guilherme de Lima e Rafael Olinto
TRATAMENTO DE IMAGEM
Agelson Soares e Sebastião Corrêa
ReVISÃO
Dudley Barbosa e Maria Helena Pôrto
colunistas
Diogo Guedes, Everardo Norões e José Castello
Supervisão de mídias digitais e UI/UX design
Rodolfo Galvão
UI/UX design
Edlamar Soares e Renato Costa
Produção gráfica
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino e Sóstenes Fernandes
marketing E vendas
Giselle Melo e Rosana Galvão
E-mail: marketing@cepe.com.br
Telefone: (81) 3183.2756
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Vai lá e tenta o supra sonho de outras vidas
Das bricolagens que reordenam nosso mundo ferido e vivo
Laura Erber
HANA LUZIA
As paredes têm ouvidos, mas os muros falam, alguns parecem ser até um pouco sábios. Vai lá e tenta
foi escrito sobre um muro de Tiradentes (MG). Bem perto, alguém escreveu Supra Sonho
. Um cavalo ostenta o cansaço do século, faz um calor tórrido, mais tarde pode ser que chova, pessoas em câmera lenta sobem até a Matriz de Santo Antônio. Sabem que nem tudo que reluz é ouro, mas as vezes é.
As frases anônimas deixadas pela cidade não são só mensagens primárias dos que não têm voz, são modos de desafiar a ausência e a distância, tal como o desenho na lenda do velho Plínio. Na entrada das grutas pré-históricas na região de Lagoa Santa, desenhos rupestres se confundem com marcas mais recentes, bem banais. Numa delas lê-se AMORZÃO. Outra, em letra cursiva, do século XIX, marca a presença de um certo Francisco Oliveira pela gruta onde nossos ancestrais desenharam capríneos e répteis. Um certo INDIO 68 também disseminou ali sua assinatura. Tudo acaba por nos comover de um modo demasiado humano.
Quando passaram pela Lua, os astronautas também deixaram marcas. Pasolini, o cineasta, comentou a fotografia em que ficavam visíveis: Vejo a famosa fotografia das marcas dos pés humanos sobre o solo da Lua (…). Não sei dizer o que sinto. (…) Ocorre-me escrever ‘intermitências do coração’ citando Proust. (…) Pobre velho homem, ainda quase animal, que deixava marcas na terra! Tua passagem neste mundo era testemunhada por uma ninharia. Uma pegada, precisamente, ou um sinal deixado pela tua grande, bestial e já laboriosa mão. Poucas coisas nos conciliam mais com o homem do que suas marcas mais ínfimas e mais modestas. (…) O que comove, no passeio tão prosaico e até mesmo um pouco estúpido dos norte-americanos na Lua, não é o futuro, mas o passado: o destino de todo futuro que é o de se tornar passado, se já não o é.
Nos anos 1970, foram descobertos 11 desenhos na gruta de Sorèze, na França, a gruta era o que restou de uma mina cuja atividade foi interrompida no início do século XII. As figurações ali encontradas foram realizadas com carvão e são tidas como exemplo raro de desenhos medievais feitos por crianças. As análises arqueológicas sugerem que as crianças trabalhavam nas minas e teriam se autorretratado realizando gestos que evocam o trabalho da mineração. São imagens singelas, bonecos de palito que comovem porque religam o gesto da criança medieval ao tempo de outras infâncias sequestradas.
Dentro das galerias subterrâneas de Sorèze havia uma estrutura de pontes, escadas, marcas de tochas e pegadas, estas correspondiam ao tamanho de pessoas muito pequenas para serem adultos.
O procedimento de datação por carbono-14 acabou revelando que a mina teria sido desativada no século XII e que o material que dela se extraía era um tipo de minério de ferro. As 11 imagens encontradas nas galerias foram realizadas com a ponta de tochas de madeira. Arqueólogos depois concluíram que os desenhos foram realizados não por uma, mas por um grupo de crianças. Na ausência de letra ou palavra acompanhando os desenhos supõe-se que não tenham sido alfabetizadas. É como se cada criança tivesse desenhado a si mesma, em vez de inscreverem seus nomes, elas se desenharam trabalhando. Quase me ocorre citar Proust, mas com a voz de Pasolini: intermitências do coração.
Se hoje, hoje mesmo, me pedissem para deixar uma frase escrita sobre os muros daqui, escreveria versos de Marília Mendonça: Ninguém vai sofrer sozinho/ Todo mundo vai sofrer.
Adília Lopes dizia em versos que é preciso enterrar os mortos e cuidar dos vivos e dos feridos. O que mais importa nesse seu poema não é a proposta de cuidado, mas a conexão entre vivos e feridos, que, para ela, são mais ou menos a mesma coisa.
Começar um texto, sentir