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A mente cativa
A mente cativa
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E-book313 páginas4 horas

A mente cativa

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Sobre este e-book

Um esforço solitário, como define seu autor, mas também um ensaio, um texto político, por vezes um romance. Certamente um livro essencial para compreender o sovietismo e o que significou, para muitas pessoas, submeter a própria mente ao Método, o Método que é uma poção ou uma pílula «que conseguiu produzir um meio de transmitir "uma visão de mundo" de forma orgânica». É dessa forma – o poeta Czesław Miłosz parece nos dizer com uma prosa cálida, que deixa rastros de luz – que se apagam as dúvidas metafísicas, que se aplaca a sede de conhecimento, que surge uma sensação de serenidade e paz mental capaz de seduzir, entre outros, também os intelectuais. E é assim que a mente, sempre vulnerável, torna-se escrava das doutrinas sociopolíticas – do marxismo-leninismo como do pensamento totalitário em geral –, o espírito se faz servo e o pensamento cede ao canto das sereias do conformismo. O que há na origem dessa mente prisioneira, como se pode aceitar «o terror totalitário em troca de um futuro hipotético»? Que força impulsiona artistas e intelectuais a negociar a sua liberdade artística e de pensamento em troca de um cantinho seguro, a render-se a esse processo de adequação e a continuar desempenhando tal papel sem pestanejar? Justamente desse papel – o Ketman – nos fala o autor, descrevendo a dupla verdade dos intelectuais que, mesmo mantendo internamente suas convicções, em público mostram apenas o que não resulta desagradável ao regime, até identificar-se cada vez mais com o personagem interpretado. Arte perigosa essa do mascaramento constante, uma teatralidade quotidiana de atores conscientes de sê-lo, apaixonados pelas barreiras erguidas ao seu redor. O que resulta daí é o livro comovente de um poeta, um relato inusitadamente próximo de nós, um ensaio capital sobre a capacidade que o totalitarismo tem de ocupar a mente, desfigurando-a, e um convite à lembrança de que «a rebelião interna às vezes é necessária para a saúde e pode ser um tipo especial de felicidade».
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de set. de 2022
ISBN9786559980741
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    Excepcional! Descreve com precisão como a ideologia marxista escravizou a mente dos homens europeus e nos faz entender melhor como continua escravizando o mundo atualmente, principalmente o Ocidente.

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A mente cativa - Czesław Milosz

MURTI-BING

Somente em meados do século XIX os habitantes de muitos países europeus ganharam, geralmente de forma desagradável, a consciência de que livros filosóficos complicados e difíceis demais para a média dos mortais têm influência bastante direta em seu destino. A porção de pão que comiam, seu tipo de ocupação, sua própria vida e a vida de sua família começaram a depender, como poderiam dizer, de uma ou outra decisão nas disputas sobre princípios aos quais, até então, não tinham prestado a menor atenção. Aos seus olhos, um filósofo era uma espécie de sonhador, cujas divagações não tinham nenhuns efeitos reais. Os homens comuns medianos, mesmo passando com grande tédio em seus exames de filosofia, tentavam se esquecer dela, por considerarem que não serve para nada. De acordo com seu ponto de vista, o grande trabalho intelectual realizado pelos marxistas podia, então, servir como mais uma variante de passatempo infrutífero. Somente poucos indivíduos compreendiam o significado dessa indiferença, suas razões e presumíveis consequências.

Em 1932, um livro estranho foi publicado em Varsóvia. Era um romance em dois volumes intitulado Insaciabilidade. Foi escrito por Stanisław Ignacy Witkiewicz,¹ filósofo, pintor e escritor. Esse livro, assim como seu romance anterior Despedida do outono, não podia contar com grande número de leitores. A linguagem utilizada pelo autor era difícil, cheia de neologismos que o próprio Witkiewicz criou, as descrições brutais de cenas eróticas acompanhavam páginas inteiras de discussões sobre Husserl, Carnap e outros epistemólogos contemporâneos. Além disso, nem sempre era possível distinguir a seriedade da palhaçada, e o assunto parecia ser pura fantasia.

A ação do romance ocorria na Europa, mais precisamente na Polônia, em algum momento indefinido no futuro, que, a propósito, poderia ser descrito muito bem como o presente, ou seja, poderia ser nos anos 1930, 1940 ou 1950. O ambiente apresentado era o dos músicos, pintores, filósofos, aristocratas e altas hierarquias militares. O livro todo nada mais era do que um estudo da deterioração: a música louca baseada em dissonâncias, perversões eróticas, o uso generalizado de drogas, o nomadismo do pensamento que busca apoio em vão, falsas conversões ao catolicismo e afecções mentais complicadas. Tudo isso acontecia numa época em que se dizia que a civilização ocidental estava ameaçada e num país exposto ao primeiro ataque de um exército do Oriente: esse exército era o exército sino-mongol, que governava um território que abrangia desde o Oceano Pacífico até o Mar Báltico.

Os personagens de Witkiewicz são infelizes, porque lhes falta qualquer tipo de fé e de senso de propósito em suas atividades. Essa atmosfera de inércia e insensatez se espalha por todo o país. É então que muitos vendedores aparecem nas cidades comercializando secretamente as pílulas de Murti-Bing. Murti-Bing era um filósofo mongol que conseguiu produzir um meio de transmitir «uma visão de mundo» de forma orgânica. A tal «visão de mundo» de Murti-Bing, que, aliás, constituía a força do exército sino-mongol, estava contida em pílulas, numa forma condensada. A pessoa que tomava as pílulas de Murti-Bing mudava completamente, obtinha serenidade e felicidade. As questões com as quais vinha lutando até então eram-lhe subitamente apresentadas como enganosas e indignas de preocupação. Logo olhava para as pessoas que se ocupavam dessas questões com um sorriso de indulgência. Antes de mais nada, isso dizia respeito às dificuldades insolúveis da ontologia (que fascinavam o próprio autor). A pessoa que tomava as pílulas de Murti-Bing tornava-se insensível a quaisquer elementos metafísicos; tratava certos sintomas como os excessos bizarros da arte que experimenta «a insaciabilidade com a forma»; não considerava mais a aproximação do exército sino-mongol como uma tragédia da sua civilização; vivia entre seus concidadãos como um indivíduo saudável cercado por loucos. Cada vez mais pessoas passavam por esse tratamento com as pílulas de Murti-Bing, e a paz de espírito que conquistavam dessa forma contrastava fortemente com a histeria a seu redor.

Em poucas palavras, o epílogo: a guerra irrompeu e isso resultou no encontro entre os exércitos ocidental e oriental. Entretanto, no momento decisivo antes da grande batalha, o comandante do exército ocidental, pessoa de ilimitada confiança, foi ao quartel-general do inimigo e se rendeu, tendo sido, por esse motivo, decapitado com grandes honrarias. O exército oriental tomou conta do país e uma nova vida de murti-binguismo concretizado começou. Os protagonistas do romance, antes atormentados pela «insaciabilidade» filosófica, passaram a servir o novo sistema escrevendo marchas e odes em vez da antiga música dissonante e pintando quadros socialmente úteis em vez das antigas abstrações. Entretanto, como não conseguiam se livrar completamente de sua antiga personalidade, tornaram-se espécimes notáveis de esquizofrênicos.

Apenas isso sobre o romance. O autor expressou muitas vezes a convicção de que a religião, a filosofia e a arte estariam vivendo seus últimos dias e que, no entanto, sem elas a vida não teria nenhum valor (ele foi o criador do sistema ontológico ligado à monadologia de Leibniz). Em 17 de setembro de 1939, ao saber que o Exército Vermelho tinha atravessado a fronteira oriental da Polônia, ele cometeu suicídio ingerindo uma grande dose do barbitúrico Veronal e cortando os pulsos.

A visão de Witkiewicz cumpre-se hoje, nos menores detalhes, em grandes territórios do continente europeu. Talvez a luz do sol, o cheiro da terra, os pequenos prazeres da vida cotidiana e a distração que o trabalho proporciona possam reduzir ligeiramente a tensão de um drama raramente encontrado na história. Mas, sob a superfície da azáfama dos afazeres e dos empenhos diários, perdura a consciência de uma escolha irrevogável. Ou o homem deve morrer — física ou espiritualmente — ou renascer de uma forma predefinida pela ingestão das pílulas de Murti-Bing. As pessoas no Ocidente tendem a considerar o destino dos países convertidos apenas em termos de coerção e de violência. Isso não é correto. Além do medo habitual, além do desejo de se proteger da miséria e da destruição física, atua o desejo de harmonia interior e felicidade. O destino das pessoas completamente coerentes e não dialéticas, como Witkiewicz, é um aviso para muitos intelectuais. Afinal de contas, ele pode ver ao seu redor exemplos dissuasivos: pelas ruas da cidade ainda vagueiam as sombras dos intransigentes, daqueles que não querem participar mentalmente de nada, dos emigrantes internos devorados pelo ódio, a tal ponto que neles nada mais permanece a não ser o ódio, e eles são como nozes vazias. Para compreender a situação do escritor nos países da democracia popular, é preciso falar sobre as razões de suas ações e sobre o equilíbrio que ele mantém com grande dificuldade. Não importa o que digam, a Nova Fé lhe dá grandes oportunidades de uma vida ativa e ocupada. E o murti-binguismo apresenta um atrativo incomparavelmente maior para o intelectual do que para os camponeses ou mesmo os trabalhadores. O murti-binguismo é uma vela em torno da qual o intelectual circula como uma mariposa, para finalmente se lançar na chama e, com o crepitar de suas asas se partindo, sacrificar-se para a glória da humanidade. Esse desejo não deve ser subestimado. O sangue correu em abundância na Europa durante as guerras religiosas, e quem ingressa hoje no caminho da Nova Fé paga a dívida dessa tradição europeia. Essa questão é muito mais séria do que a da violência.

Tentarei apreender esses grandes anseios e falar sobre eles como se fosse realmente possível analisar aquilo que é o sangue morno e o próprio corpo do ser humano. Se eu quisesse descrever as razões pelas quais alguém se torna um revolucionário, é claro que não seria capaz de ser eloquente o bastante ou contido o bastante. Admito que tenho muito respeito por aqueles que combatem o mal — independente de sua escolha de objetivos e métodos estar certa ou errada. Aqui, porém, quero me deter numa categoria em particular: os intelectuais que se adaptam, o que não diminui de modo algum seu recém-alcançado afã e entusiasmo.

Parece-me que existem alguns vínculos fundamentais em seu amadurecimento que os levam a aceitar o murti-binguismo.

Vazio

O ambiente apresentado por Witkiewicz se caracteriza pelo fato de nele já não existir a religião. Nos países da democracia popular, assim como em toda parte, a religião há muito deixou de ser a filosofia de toda uma sociedade, ou seja, de todas as classes. Enquanto as melhores mentes estavam ocupadas com discussões teológicas, era possível dizer que a religião era como um sistema de pensamento de todo o organismo social, e todos os assuntos que mais preocupavam os cidadãos estavam relacionados com ela e eram discutidos em sua linguagem. Mas isso ficou num passado muito distante. Percorrendo fases gradativas, chegamos à falta de um sistema uniforme de noções que ligue um camponês que sulca a terra com um arado puxado a cavalos com um universitário que lida com logística e um trabalhador de uma fábrica de automóveis. Daí o agudo senso de alheamento, de abstração, que oprime a intelligentsia, sobretudo, num grau particular, daqueles que são «criadores de cultura». A religião foi substituída pela filosofia, que, no entanto, tem vagueado por domínios cada vez menos acessíveis aos não especialistas. As conversas dos protagonistas de Witkiewicz sobre Husserl pouco interessam mesmo aos leitores de educação mediana. Enquanto isso, as grandes massas ainda estão associadas à Igreja, apenas de forma emocional e tradicional, porque faltam agudeza e renovação intelectuais. A música, a pintura e a poesia tornaram-se completamente alheias para a maioria dos cidadãos. As teorias difundidas da arte acabaram por indicar claramente o papel de substitutas da religião: os «sentimentos metafísicos» deviam ser expressos nas «tensões da forma pura», de modo que a forma ganhava uma absoluta vantagem sobre o propósito. Chegou-se ao ponto de a arte dos povos primitivos, com seu notável conteúdo, começar a ser interpretada como uma deformação perfeita em si mesma, isolada do contexto histórico e da forma de pensar e sentir das civilizações primitivas.

Estar no meio do povo é o grande desejo dos intelectuais «alienados». Um desejo tão forte que, ao tentar satisfazê-lo, muitos deles passaram das ideias extremamente totalitárias, modeladas na Alemanha nazista, para a Nova Fé. É verdade que os programas totalitários de direita eram meios extraordinariamente míseros. A satisfação que eles podiam proporcionar resumia-se ao entusiasmo coletivo: a multidão gritando com as bocas abertas, os rostos vermelhos, as marchas, os braços levantados carregando bastões. A coisa piorou quando se chegou a uma justificação racional. Nem o culto da Raça, nem o ódio às pessoas de outras origens, nem o embelezamento exagerado das tradições da própria nação foram capazes de remover a sensação de que todo esse programa era uma improvisação para uso temporário e que estava pendurado por um fio. Já o murti-binguismo é diferente; oferece uma base científica e, de uma só vez, joga no lixo os restos das épocas anteriores: 1) a filosofia pós-kantiana, que tinha cada vez menos ligação com a vida das pessoas e, por isso, estava rodeada por um prevalente desprezo; 2) a arte criada para aqueles que não tinham religião e que não queriam admitir para si mesmos que qualquer busca pelo «absoluto» através da composição de cores ou sons é uma falta de coragem de chegar ao fundo da questão; 3) a mentalidade mágico-religiosa dos camponeses. Em vez disso, se apresenta um sistema, uma linguagem de conceitos. O zelador e o ascensorista da editora leem os mesmos clássicos do marxismo que o diretor da empresa e os escritores que trazem seus manuscritos; o trabalhador e o pesquisador de história agora podem se comunicar. É claro que a diferença de nível intelectual que existe entre eles não é menor do que aquela que separava, na Idade Média, o doutor em teologia do ferreiro do vilarejo. Mas os fundamentos são os mesmos. O grande cisma foi derrubado. O sistema do materialismo dialético uniu a todos, e a filosofia (ou seja, a dialética) ganhou outra vez influência na vida e passou a ser tratada tão seriamente quanto o saber e a habilidade, de que dependem o pão e o leite para as crianças, a própria prosperidade e segurança. O intelectual se tornou de novo útil. Ele, que até então se dedicava a pensar e escrever em seu tempo livre do trabalho remunerado no banco ou nos correios, ganhou um lugar na Terra, foi reabilitado junto à sociedade. Aqueles que até agora o consideravam um maluco inofensivo, donos de fábricas que dirigem carros bonitos, aristocratas que valorizam na ciência e na arte somente o que o esnobismo valoriza, comerciantes ocupados apenas em fazer dinheiro — eles são relegados ao esquecimento, ou ficam contentes se lhes for permitido conseguir um emprego em um guarda-volumes e entregar o casaco a seu antigo funcionário, sobre o qual se dizia, na época pré-guerra, «parece que ele escreve umas coisas». A saciedade dessas ambições não deve ser subestimada: é apenas um sinal externo da utilidade social, símbolo do reconhecimento que, a cada passo, fortalece o sentido de reintergração.

Absurdo

Embora nunca se mencionem os motivos metafísicos que podem levar a uma completa mudança de opiniões políticas, esses motivos, ao que parece, atuam e podem ser observados nos mais sensíveis, nos mais inteligentes — e nos mais neuróticos. Imaginemos um dia de primavera numa cidade de um país semelhante ao descrito no romance de Witkiewicz. Um de seus personagens está dando um passeio. Atormenta-o o que se poderia chamar de sucção do absurdo. Qual é a razão da existência de todos esses representantes da espécie Homo, dessa agitação sem sentido, desses sorrisos, dessas transações monetárias, desses divertimentos animalescos e tolos? Com um pouco de perspicácia, é fácil dividir os transeuntes em vários tipos, adivinhando a que classe social pertencem, seus costumes e o que os interessa no momento. A perspectiva do tempo é abreviada: a infância, a maturidade e a velhice dos transeuntes convergem numa só coisa, passam num só segundo, no lugar do transeunte existe apenas o ar. A existência desse transeunte em particular, em vez de outro, examinada no plano fisiológico, não tem nenhum sentido. Mas penetrando em sua mente, nela se descobre uma incrível insensatez. Eles não percebem de modo algum que nada lhes é próprio, que tudo pertence à formação histórica que lhes deu origem: seu tipo de emprego, suas roupas, seus movimentos, seu tipo de sorriso e também suas crenças e pontos de vista. São o poder da inércia personificado, precisamente porque cedem à ilusão de serem eles mesmos, sem, na verdade, ser. Se ao menos fossem almas, como a Igreja ensinava, ou mônadas de Leibniz! Mas essa fé já foi eliminada. O que resta é uma grande aversão à permanência do detalhe, àquela mentalidade para a qual cada fenômeno existe separadamente: comer, beber, ganhar dinheiro, dar uns amassos, ter filhos. E o que vem depois? Esse estado de coisas deveria continuar? Por que deveria continuar? Essa questão é quase equivalente àquilo que se chama de ódio à burguesia.

Que surja um novo homem que não ceda, mas que transforme o mundo e os pensamentos em escala global e crie sua própria formação histórica em vez de ser escravo da história. Somente assim o absurdo de sua existência fisiológica poderá ser redimido. É preciso usar a força e, por meio do sofrimento, obrigá-lo a compreender. Por que ele não deveria sofrer? Ele deve sofrer. Por que não pode servir de adubo enquanto for raivoso e imbecil? Se um intelectual conhece o tormento do pensamento, não precisa poupar desse sofrimento os outros, aqueles que até agora têm dado gargalhadas, bebido, comido e contado piadas estúpidas, vendo nisso a beleza da vida.

Os olhos do intelectual sorriem de prazer ao observar como a burguesia — e a mentalidade burguesa das pessoas — está sendo acossada. Esta é uma copiosa recompensa pela humilhação que ele sentia quando tinha de ser um deles e quando parecia que não havia como sair daquele ciclo de nascimento e morte. Proporcionam-lhe momentos inebriantes os ruborezinhos acanhados dos membros da intelligentsia, nada acostumados ao raciocínio incisivo e rigoroso e subitamente apanhados na armadilha — por exemplo, ao serem impelidos para a solenidade no aniversário da revolução, a solenidade que lhes é odiosa. Os camponeses que enterram as moedas de ouro duramente poupadas e ouvem a rádio estrangeira na esperança de que a guerra os salve de entrarem para os colcozes, certamente, não têm nele um aliado. E, entretanto, ele é terno e bom —é amigo do homem, mas não do homem assim como ele é, e sim de como deveria ser. No entanto, não se pode compará-lo a um inquisidor medieval. Aquele, enquanto torturava o corpo, acreditava que estava trabalhando para salvar a alma individual. Este está trabalhando para a salvação da espécie humana.

Necessidade

A sua característica é o medo de pensar por conta própria. E não apenas porque não queira chegar a conclusões perigosas. Não! É o medo da esterilidade, do que Marx chamou de miséria da filosofia. Ao escrever estas palavras, não estou de forma alguma livre de medo semelhante. O ser humano (adotemos esse pressuposto) pode ser apenas um dos instrumentos da orquestra dirigida pela deusa da História. Somente então a melodia que extrai de seu instrumento significa alguma coisa. Caso contrário, mesmo suas reflexões mais aguçadas continuarão a ser o entretenimento de um esteta. Não é apenas uma questão de como ganhar coragem e de como se pronunciar contra os outros. É uma questão muito mais virulenta que ele coloca a si mesmo: é possível raciocinar corretamente e escrever bem se não se segue a única corrente que é real, isto é, que tem vitalidade por estar em harmonia com o movimento da realidade ou com as leis da História? Os poemas de Rilke podem ser muito bons e, se são bons, significa que houve alguma justificativa para eles na época em que foram escritos. Da mesma forma, poemas dedicados à contemplação não podem surgir nas democracias populares — não porque seria difícil publicá-los, mas porque o impulso de seu autor para escrevê-los se turvaria na própria fonte: faltariam condições objetivas para que tais poemas pudessem ser escritos. É por isso que, no fundo do seu coração, o intelectual em questão não acredita em escrever para a gaveta. Ao se submeter à censura e às exigências detalhistas dos comitês editoriais, ele pragueja e se desespera. Ao mesmo tempo, porém, surge nele uma profunda descrença no valor da literatura que não obtém o imprimatur, pois receber o imprimatur não significa que a editora preze os valores artísticos do livro ou que espere que ele tenha sucesso junto ao público. O imprimatur é um sinal de que o livro está de acordo com a doutrina, ou seja, de que o autor do livro é capaz de permanecer na única corrente fértil, e fértil porque reflete a transformação da realidade com precisão científica. O materialismo dialético (na concepção stalinista) reflete essas transformações e ao mesmo tempo as molda: molda as condições sociais e políticas em que o homem deixa de saber como escrever e pensar de um modo diferente do que precisa, e ao mesmo tempo deve aceitar esse «precisa», uma vez que, além disso, nada de valor pode surgir. Essas são as tenazes da dialética. O escritor se submete não só porque quer salvar a própria pele. Ele teme por alguma coisa mais valiosa — o valor de sua obra, que, desviando-se para o caminho do «filosofismo», torna-se, em maior ou menor grau, uma escrevinhação comum.

Quem se encontra entre as tenazes dialéticas tem de reconhecer que o pensamento de filósofos isolados, não apoiados pelas citações das autoridades, é uma estupidez. Se for esse o caso, todo o esforço deve ser direcionado para permanecer na linha — e já não haverá mais nenhum limite no qual seja possível se deter. Quem disser A tem de dizer B. No entanto, engole-se A com bastante facilidade. Essa é a primeira pílula imperceptível de Murti-Bing, servida nos mais variados pratos que constituem o menu do intelectual contemporâneo. Para perceber isso, é preciso ter uma mente excepcionalmente bem treinada, e mais: é preciso que haja uma ordem interior, e não um vazio. Não sou um filósofo e não é minha ambição examinar esse A.

A pressão de uma máquina estatal organizada não é nada em comparação com a pressão de uma argumentação convincente. Estive na Polônia em convenções de representantes de vários campos da arte, nas quais a teoria do realismo socialista foi discutida pela primeira vez. A atitude da plateia em relação aos apresentadores das comunicações regulamentares foi definitivamente hostil. Todos consideravam o realismo socialista como uma teoria imposta oficialmente, levando a resultados deploráveis, como comprovava o exemplo da arte russa. As tentativas de provocar uma discussão não tiveram sucesso. O auditório ficou em silêncio. Geralmente, aparecia um corajoso que iniciava um ataque cheio de sarcasmo contido, com o apoio silencioso, mas evidente, de toda a plateia. A resposta dos apresentadores esmagava o atacante com uma argumentação muito melhor e, para torná-la ainda mais poderosa, continha ameaças bastante precisas à carreira e ao futuro do indivíduo indisciplinado. Este é o esquema: discutir e criar as condições essenciais pela força. Palha e pederneira. Martelo e bigorna. A faísca desejada vai aparecer. Isso é matematicamente correto. Não era muito fácil decifrar o rosto dos ouvintes nessas convenções, pois a habilidade de disfarçar já havia atingido um grau considerável de perfeição. No entanto, esses rostos eram suficientemente decifráveis para que se notassem as mudanças rápidas de humor. A raiva, o medo, a admiração, a incredulidade e a reflexão vinham em ondas. Tive a impressão de que estava participando de um espetáculo de hipnose coletiva. Mais tarde, nos bastidores, essas pessoas poderiam rir e fazer piadas. Mas o arpão foi atirado e atingiu o alvo. Para onde quer que fossem, carregariam em si o gume afiado. Então quer dizer que a dialética usada pelos apresentadores era incontestável? Sim, era impossível contestá-la se não houvesse uma discussão bastante básica sobre o método. Nenhum dos presentes estava preparado para tal discussão. Provavelmente, teria sido uma discussão sobre Hegel, que o público composto por pintores e escritores não lia. De qualquer forma, mesmo que alguém quisesse se manifestar sobre o assunto, não lhe seria permitido falar. Uma discussão assim sobre esse tipo de tema só é realizada — e isso com temor — nos círculos mais elevados dos sábios.

No exemplo das convenções artísticas, vê-se a desproporção entre o armamento do teórico e daqueles que ele supostamente deveria moldar. É um duelo entre um tanque e um soldado da infantaria. Não que todos os teóricos sejam muito inteligentes e instruídos. No entanto, nas declarações que eles emitem se encontra a rica produção intelectual dos mestres e comentadores. Cada frase tem coesão e precisão — o que não é mérito de um determinado teórico, mas das obras com as quais ele se instruiu. Seus ouvintes ficam completamente indefesos diante dessa máquina. É verdade que eles poderiam construir argumentos obtidos a partir das observações da vida — entretanto, isso é tão desaconselhável quanto aventurar-se em problemas fundamentais reservados aos Superiores. O confronto do teórico com a audiência ocorre em inúmeras reuniões nos sindicatos, nas organizações da juventude, nas salas de recreação, nas fábricas, nos edifícios de escritórios, nas câmaras rurais e em todas as regiões da Europa em processo de conversão. E não há dúvida de que o teórico sai vitorioso dessa luta.

Portanto, não é de surpreender que um escritor ou pintor duvide do propósito da resistência. Se ele tivesse certeza de que o trabalho por ele realizado em desacordo com a linha oficialmente recomendada tem um valor duradouro, ele provavelmente se decidiria e não se importaria em publicar ou participar de exposições, trabalhando em sua obra nos intervalos entre os empregos mais banais, que lhe trazem dinheiro. Entretanto, na maioria dos casos, ele pensa que tal obra seria artisticamente fraca — e não está muito enganado a esse respeito. Como eu disse, não haveria condições objetivas. As condições objetivas necessárias para a realização de uma obra artística são, como sabemos, um fenômeno muito complexo: está aqui em jogo um certo círculo de espectadores, a possibilidade de contato com eles, a atmosfera adequada e, o que é mais importante — estar liberto do controle interno e involuntário. «Não posso escrever como gostaria», admitiu para mim um jovem poeta, «tantos afluentes desaguam no meu riacho, que mal consigo represar um e já sinto o segundo, o terceiro e o quarto chegando. Estou no meio de uma frase e já a estou submetendo à crítica marxista, imaginando o que os teóricos X e Y vão dizer — e termino a frase de um modo diferente do que deveria terminar.»

Essa impossibilidade interior — por mais paradoxal que pareça — convence o intelectual de que a legitimidade está do lado do Método mais perfeito — porque é o único — e porque a experiência o confirma. A dialética é prever que a casa vai pegar fogo e depois derramar

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