Cortes & Cartas: Estudos sobre Automutilação
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Sobre este e-book
É partindo dessa compreensão que Juliana Falcão, em Cortes & Cartas, empreende uma profunda investigação sobre a automutilação, desde suas raízes históricas, que vão de práticas ritualísticas ao contexto dos transtornos mentais, perpassando pela abordagem no campo da psiquiatria, ponto de partida de alguns encaminhamentos de pacientes recebidos pela psicanálise ou pela psicoterapia. Paralela à reflexão teórica, a obra apresenta recortes clínicos da experiência de trabalho da autora no atendimento a adolescentes infratoras que se machucavam em um contexto de privação de liberdade no Distrito Federal.
Ainda, para além da abordagem clínica da automutilação, a autora se lança na análise de produções artísticas relacionadas ao tema, como o filme de Peter Greenaway, O livro de cabeceira, e ainda as chamadas escritas de si – diários, escritos autobiográficos – e sua importante relação com a clínica psicanalítica.
Os quatro ensaios que compõem a obra Cortes & Cartas, com sua linguagem leve e fluida, convidam à reflexão não somente a leitora e o leitor especializados, mas também todos aqueles interessados no tema da automutilação.
Prof.ª Dr.ª Fabricia Walace Rodrigues
Departamento de Teoria Literária e Literaturas
Universidade de Brasília
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Cortes & Cartas - Juliana Falcão
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI
Dedico este livro à minha avó Amparo (in memoriam).
Sem saber que algum dia eu iria publicar um livro, ela me inspirou a conseguir terminar de escrevê-lo.
Agradecimentos
Ao Luiz, meu companheiro de existência, pela construção de uma vida juntos, pelas pausas e palavras de conforto. Por encorajar a publicação deste livro. Pela vida vivida com amor e entusiasmo, por compartilhar sonhos e planos.
Aos meus pais e meu irmão, por serem simplesmente quem são. Pela conexão nos entremeios da distância e do tempo. Pelas apostas e pelos investimentos nas minhas formações pessoal e profissional. Pela transmissão do amor.
Ao Charles Lang, pelas contribuições preciosas ao longo dos anos, por aceitar meu convite para escrever o prefácio deste livro. Sou grata pela parceria nas escritas, pelo apoio. Pela abertura para as interfaces entre psicanálise, desconstrução, literatura. Pela conversa infinita.
À Fabricia Walace, por transmitir um ensino apaixonado pela literatura. Pelas aulas instigantes, por me inspirar. Agradeço pela acolhida ao meu convite para escrever a sinopse deste livro.
À Terezinha Viana, por ter acolhido o meu projeto e orientado a pesquisa de doutorado, que deu origem a este livro. Pelo carinho.
À Franciny, que me ajudou nessa difícil tarefa de transformar tese em livro, academia em prosa, formatação em fluidez. Agradeço pelo diálogo constante e pela generosidade em ler cada parágrafo do meu texto, fazendo comentários, ora carinhosos, ora brutinhos
. Sempre valiosos.
À Maria Ida, pela escuta de tudo o que deu origem a este livro. Por me acompanhar em tantas travessias, pelo acolhimento nos momentos de angústia, pelas construções em análise.
Aos amigos do Studio de Psicanálise, por serem referência, transferência e transmissão da psicanálise. Pela parceria e pelo afeto entre pares ao longo dos anos.
Ao meu grupo de estudos sobre automutilação. Agradeço a cada um dos integrantes, pela partilha desse espaço, pelo interesse, pela empolgação. Pessoas que eu conheci no ambiente virtual, com quem venho tecendo ricas conexões.
Às Amigas da Vida Toda, pela passagem do tempo, que passa, mas não passa. Pelo assistir das vidas se desenrolando e os fios continuando unidos. Pelo incentivo para que eu transformasse as escritas em livro.
Aos pares e colegas de trabalho no Anankê e no Serviço Clínico de Psicanálise. O nosso contato e as nossas trocas fazem com que a experiência de escuta se torne menos solitária e muito mais rica.
À Mírian, Franciny e Camila, pela amizade que a distância geográfica não conseguiu afastar. Por sempre estarem por perto. Pelos ouvidos, pelos livros compartilhados, pelas risadas.
Aos meus pacientes, por me endereçarem suas palavras e construírem um percurso comigo.
Aos colegas da minha equipe de trabalho na Unidade de Internação de Santa Maria, pela vivência interdisciplinar, pelas trocas e parceria no cuidado das adolescentes.
Às adolescentes da Unidade de Internação de Santa Maria. As experiências vividas nesse tempo de trabalho despertaram em mim intensas reflexões sobre a automutilação, sou grata por tê-las escutado.
À Capes e à FAP-DF, por terem financiado partes da minha pesquisa de doutorado, que deu origem a este livro.
À Editora Appris, pelo trabalho cuidadoso com cada etapa deste livro. Pelo compromisso, organização e qualidade nas publicações.
PREFÁCIO
Acompanho as inquietações e interrogações de Juliana Falcão desde a época em que ela me falava de seu desejo de compreender a lógica da fantasia na automutilação. Ao mesmo tempo, ela iniciava sua prática clínica no Serviço de Psicologia Aplicada. Professor, supervisor, logo estava convidado a orientar seu Trabalho de Conclusão de Curso. O passo seguinte foi o mestrado em Psicologia, no qual pude acompanhá-la como professor e orientador. Esses foram anos de infinitas conversas na Universidade Federal de Alagoas.
A mudança de cidade e de universidade permitiu-lhe o início de uma nova etapa de vida e o trabalho com adolescentes infratoras em privação de liberdade. Creio que o ensaio deste livro, no qual ela elabora sua experiência com jovens que se automutilam em situação de confinamento, torna mais significativos os efeitos psíquicos presentes e vindouros do tempo em que, coletivamente, nos vimos obrigados a ficar em casa. Os meses do #fiqueemcasa foram o tempo necessário para Juliana retomar seus textos, principalmente os que ela destinara à banca de qualificação e à banca de defesa de sua tese doutoral. Agradeço novamente à Juliana por ter me convidado a participar como avaliador externo nessas duas ocasiões.
Passou-se quase década e meia para se chegar a este livro, resultado da edição cuidadosa de tantos textos. Os conceitos de espectro e phármakon, ou de indecidível, encontrados em Derrida, são referências para se apreender uma proposta que perpassa tanto a pesquisa quanto a clínica da autora. A forma do livro, em ensaios, antecipa o aspecto inconcluso, complexo e multifacetado da automutilação, apreendido na espectrologia. Descobrimos, num extremo, o corte de cabelo ou mesmo o corte de tecido de uma roupa como elementos chamativos, invocantes, convocantes da atenção e do olhar do outro. No outro extremo, o horror na ingestão de substâncias corrosivas ou nos cortes e queimaduras da própria pele.
A capa de um livro é um corte que separa um conjunto de textos do restante do mundo. Juliana preocupou-se com esse corte, um belo corte. Chegou a um título, um binômio fantástico que prosseguiu na sua escrita. Uma escrita justa, que reverbera uma fala justa. Ambas têm uma ética, um mesmo estilo: a gentileza. E nesses tempos de pandemia, em retiro e
confinada, se ela não estava escrevendo, estava cortando, como aconselhava Tchekhov, o mestre dos contistas.
A aproximação com a literatura e as escritas de si (cartas, autobiografias e diários) atualiza a preferência da autora pela metáfora e pela alegoria para pensar a clínica da automutilação, o modo de acolher e trabalhar com os casos. A poesia e o poético – sinônimos de harmonia e perfeição – são o estranhamento produzido por determinadas coisas que despertam o sentimento do belo e o encantamento estético.
A lenda conta que existe um estranho pássaro que canta uma única vez na vida, suave e mais belo do que qualquer criatura. Um dia ele abandona o ninho e sai à procura de um espinheiro-alvar. Descansa quando o encontra e, então, saltitando entre os galhos, lança-se contra o espinho mais comprido e pontiagudo. Morrendo, agoniza numa dor suprema e despede-se com o canto mais sublime deste mundo. Essa é a alegoria de Pássaros feridos, escrito por Colleen McCullough.
Agonia e dor fazem parte – e permanecem parte – do pesadume do mundo, se não forem trabalhados com a leveza dos binômios fantásticos (pássaro/ferido, espinho/canto e dor/sublime). Segundo Gianni Rodari, binômios fantásticos são formas de bem lidar com a inércia, com a opacidade e o peso do mundo. O binômio fantástico é o caminho poético que desfamiliariza para harmonizar e acrescentar algo sobre o mundo. Cortes/Cartas é o binômio fantástico de Juliana, pois, por meio dessas palavras polissêmicas, ela nos remete a outros mundos e a diferentes campos semânticos, a registros completamente distintos na linguagem.
Rodari não era psicanalista, mas sonhava ser possível reconstruir a lógica da fantasia e do fantástico. Ele trabalhava com fábulas e histórias para crianças. Acreditava que se tivéssemos uma Fantástica, uma lógica da fantasia, assim como temos uma Lógica, descobriríamos a arte de inventar histórias. A Lógica nos ensina a razão, o método, a coerência e o raciocínio sem contradições. A Fantástica compreenderia como a fantasia funciona e nos ensinaria como fazer algo estranho tornar-se conhecido e atraente. Ensinar-nos-ia como nascem as palavras e as histórias que contamos às crianças, e os artifícios utilizados para pôr em movimento as imagens e as palavras. Assim descobrimos que podemos aprender muito, por exemplo, com o diálogo entre uma porta e um jacaré, outro binômio fantástico. A Fantástica ensinaria o caminho para o estranhamento, o indizível contato com o imediato, com tudo aquilo que ignoramos ou afastamos em nome do que se chama viver. Ajudaria a inventar histórias e canções de ninar que permitam o sono profundo e o sonhar.
Cortes & Cartas tem muito a nos dizer sobre isso e sobre as feridas desses pássaros, confinados em suas capas de pele, em suas casas ou apartamentos, em instituições totalitárias, em palavras, aguardando o ouvido que desperte o canto mais sublime do mundo: a voz humana contando uma história.
Prof. Dr. Charles Elias Lang
Psicanalista, analista membro da APPOA.
Professor permanente no PPG em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas.
Referências
McCULLOUGH, C. Pássaros feridos. 26. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
RODARI, G. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.
Sumário
Prólogo 15
Entre cortes e concertinas: memórias 21
Ensaio I
AUTOMUTILAÇÃO: DOS RITUAIS CULTURAIS AOS MANUAIS DIAGNÓSTICOS 31
1.1 Marcas no corpo e cultura: aspectos históricos 33
1.2 Os três elementos do ritual: dor, sangue e marca física 36
1.3 Estética na pele: arte e modificações corporais 41
1.4 Pele e bordas: as fronteiras corporais 44
1.5 Primeiras publicações e manuais diagnósticos 46
1.6 Arranjos pulsionais e masoquismo 55
Ensaio II
CORPOS ENCURRALADOS: MARCANDO A PELE NO CONFINAMENTO 65
2.1 Adolescência e ato 66
2.2 Automutilação em ambientes confinados 70
2.3 Dando sentido para a automutilação 81
2.4 Implicações clínicas, intervenções e prevenção 84
Ensaio III
O CORPO COMO ARQUIVO: MEMÓRIA E CONCRETUDE 91
3.1 Corpo, pele e desamparo 92
3.2 Memórias, impressões e rastros 95
3.3 Sofrimento guardado: automutilação e arquivo 98
Ensaio IV
AUTOMUTILAÇÃO, CORPO E ESCRITA 109
4.1 A escrita: escrever como necessidade 110
4.2 O Livro do Travesseiro (século X) x O livro de Cabeceira (século XX) 116
O Livro do Travesseiro (994-1001) 116
O Livro de Cabeceira (filme de 1996) 118
4.3 Diários, autobiografias e clínica psicanalítica 123
4.4 Automutilação, escrita e endereçamento 129
A quem pertence uma carta? 135
Selando e endereçando... 139
Epílogo 145
Juliana Falcão
Referências 151
Prólogo
A automutilação é uma prática que, como qualquer outra intervenção no corpo, atrai olhares. O que é marcado no corpo pode ser olhado e interpretado de formas variadas. Por automutilação, aqui me refiro ao ato de machucar o próprio corpo, intencionalmente, por meio de cortes, queimaduras, autoespancamento, ingestão de substâncias corrosivas, entre outros. A automutilação costuma despertar sentimentos intensos. Horror, crítica, incompreensão, intriga, curiosidade, aversão, fascínio. Os machucados e cicatrizes no corpo convocam a um olhar de imediato, assim acontece com todas as intervenções corporais, das mais amenas (como um novo corte de cabelo, uma roupa mais chamativa), às cirurgias plásticas que modificam a expressão do rosto. O que está exposto provoca uma reação instantânea.
O sofrimento manifestado por intermédio da automutilação convoca profissionais das mais diversas áreas. Psicanalistas, psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais, professores, pedagogos, conselheiros tutelares. Além dos profissionais, a automutilação é um sintoma que preocupa aqueles que estão no entorno da pessoa que se machuca, portanto, os pais, os amigos, os familiares. O estranhamento deve-se à sensação de que é algo contra intuitivo
pensar que uma pessoa se machuque e se agrida para que possa se sentir melhor.
A inspiração para o título deste livro surgiu por meio do contato que tive com uma crônica de Phillipe Lejeune intitulada A quem pertence uma carta?
¹. A crônica, que reproduzo na íntegra no quarto e último ensaio deste livro, fala sobre autoria e endereçamento. Esses aspectos se conectam com o que formulo a respeito da automutilação ao pensá-la como uma forma de escrita no corpo a partir do momento em que pode ser endereçada a alguém, como uma carta. A carta é o único tipo de texto que pressupõe, necessariamente, um destinatário.
Tenho acompanhado, no decorrer dos últimos treze anos, a automutilação na condição de sintoma clínico e como ela vem sendo abordada nos campos da psicanálise, psicologia e psiquiatria. Os questionamentos que orientam este livro são decorrentes de minha prática clínica psicanalítica, em consultório, juntamente ao trabalho institucional que desempenhei como psicóloga atendendo adolescentes em conflito com a lei. O interesse pela pesquisa da automutilação está presente em minhas experiências acadêmica e profissional desde que me dediquei ao estudo dela no trabalho de conclusão de curso da graduação em Psicologia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), em 2007.
Este livro é uma releitura e, consequentemente, uma reescrita da minha tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília, em 2019. As formulações que desenvolvo aqui apontam para uma interface entre clínica, cultura e instituição. Tanto a clínica quanto as instituições são campos de investigação por meio dos quais podemos ter acesso aos fenômenos sociais e aos discursos que circulam em nossa época.
Espaços em que pessoas interessadas em um mesmo tema podem pensar e construir algo juntas sempre me interessaram muito. No momento, coordeno um grupo de estudos sobre automutilação que me tem feito pensar por ângulos diferentes, com base em relatos, comentários e experiências dos colegas. O próprio ato de organizar o material que vamos discutir coloca-me em um movimento de releitura de materiais que já li anteriormente e de reescrita de textos que escrevi em outros momentos. Cada releitura e reescrita produz novas associações e, algumas delas, estão contidas neste livro. Esse grupo de estudos, Automutilação: teoria e clínica
tem um lugar especial em minhas reelaborações. Lugar de encontro e construção.
Casos de automutilação não chegavam aos consultórios e aos serviços públicos de saúde com tanta frequência quanto têm chegado nos últimos anos. Em geral, as pessoas que se machucam costumam iniciar essa prática durante a adolescência, às vezes, com um caráter de experimentação e com uma curta duração. Em outros casos, a automutilação perdura pela vida adulta.
Percebo que as formas de abordar essa questão têm variado e se ampliado no que podemos visualizar como alguns feixes de um espectro. Em um feixe, existe uma