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Vala de Perus, uma biografia: como um ossário clandestino foi utilizado para esconder mais de mil vítimas da ditadura
Vala de Perus, uma biografia: como um ossário clandestino foi utilizado para esconder mais de mil vítimas da ditadura
Vala de Perus, uma biografia: como um ossário clandestino foi utilizado para esconder mais de mil vítimas da ditadura
E-book278 páginas4 horas

Vala de Perus, uma biografia: como um ossário clandestino foi utilizado para esconder mais de mil vítimas da ditadura

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Sobre este e-book

Em 1990, o Brasil já estava sob a presidência do seu primeiro governo civil eleito após mais de duas décadas de Ditadura Militar. O presidente do país era um civil, mas representava muitas da forças que participaram ativamente do período de arbítrio. Assim seguia a "transição democrática", e grande parte do passado de violência e crimes dos agentes da ditadura permanecia escondido.

Foi neste ano, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, que uma das mais importantes revelações sobre a política de perseguição, extermínio e ocultação de cadáveres pela ditadura veio à tona. Uma vala coletiva foi localizada no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, na região noroeste da capital paulista.

A existência da vala clandestina, sem qualquer indicação no mapa do cemitério e nos registros da prefeitura, era um dos grandes segredos da ditadura. Ali foram encontrados mais de mil sacos com ossadas de militantes políticos perseguidos pelo DOI-Codi, a terrível força paramilitar organizada pelo Estado brasileiro para perseguir opositores, e de indivíduos enterrados como indigentes, muitos deles vítimas da ação violenta de policiais e de grupos de extermínio.

A descoberta da vala abria a perspectiva de localizar corpos de pessoas desaparecidas, ali enterradas de forma inapropriada, sem a menor preocupação de informar familiares e/ou amigos da morte. Esse trabalho, fundamental para garantir os direitos dos mortos e de seus familiares, no entanto, foi iniciado nos anos 1990, interrompido pouco depois e apenas recentemente foi retomado, por uma equipe de pesquisadores da Unifesp, depois de muitos anos em que a busca da verdade esbarrou em uma resistência do aparelho de Estado. Durante esses anos todos, foram identificados apenas cinco mortos enterrados ilegalmente na vala.

Recontar a história dessa vala, construída em meados dos anos 1970 e que guarda um dos momentos mais sinistros da história do país, foi uma missão a que o jornalista Camilo Vannuchi dedicou-se com afinco, numa série de reportagens especiais agora organizadas em livro. O Instituto Vladimir Herzog teve a iniciativa de produzir esta pesquisa, publicar a história da vala em capítulos no portal Memórias da Ditadura e participar agora da edição deste livro, rompendo a mordaça que silenciou para a opinião pública as barbáries que a cova procurou ocultar.

São esses capítulos da nossa história que recebem agora uma edição que consolida, numa narrativa de fôlego, uma trajetória infelizmente trágica, que precisa ser revertida, em nome dos direitos humanos e da democracia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de ago. de 2021
ISBN9786559660506
Vala de Perus, uma biografia: como um ossário clandestino foi utilizado para esconder mais de mil vítimas da ditadura

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Vala de Perus, uma biografia - Camilo Vannuchi

fronts

expediente

Instituto Vladimir Herzog

Presidente

Clarice Herzog

Presidente do Conselho

Ivo Herzog

Diretor Executivo

Rogério Sottili

Memória, Verdade e Justiça

Lucas Paolo Vilalta (Coordenador)

Verônica Tavares de Freitas

Débora Rocha Pontes

Comunicação

Cristina Fernandes de Souza (Coordenadora)

Carolina Vilaverde

Educação em Direitos Humanos

Ana Rosa Abreu (Diretora)

Jornalismo e Liberdade de Expressão

Giuliano Galli (Coordenador)

Administrativo

Sandra Faé (Coordenadora)

Conselho Editorial

Ana Paula Torres Megiani

Eunice Ostrensky

Haroldo Ceravolo Sereza

Joana Monteleone

Maria Luiza Ferreira de Oliveira

Ruy Braga

Copyright © 2021 Camilo Vannuchi

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Edição: Haroldo Ceravolo Sereza / Joana Monteleone

Editora assistente: Danielly de Jesus Teles

Projeto gráfico e diagramação: Danielly de Jesus Teles

Capa: Camilo Vannuchi

Assistente acadêmica: Tamara Santos

Revisão: Alexandra Colontini

Imagem da capa: Fotografia de Marcelo Vigneron, 1990

CIP-BRA­SIL. CA­TA­LO­GA­ÇÃO-NA-FON­TE

SIN­DI­CA­TO NA­CI­O­NAL DOS EDI­TO­RES DE LI­VROS, RJ

___________________________________________________________________________

V343v

Vannuchi, Camilo

 Vala de Perus, uma biografia [recurso eletrônico] : como um ossário clandestino foi utilizado para esconder mais de mil vítimas da ditadura /  Camilo Vannuchi. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2021.

recurso digital 

For­ma­to: ebo­ok

Re­qui­si­tos dos sis­te­ma:

Modo de aces­so: world wide web

In­clui bi­bli­o­gra­fia e ín­di­ce

ISBN 978-65-5966-050-6 (re­cur­so ele­trô­ni­co)

        1. Cemitério Dom Bosco (São Paulo, SP) - História. 2. Perus (São Paulo, SP). 3. Pessoas desaparecidas - Brasil. 4. Livros eletrônicos. I. Título.

20-66512 CDD: 981.04

CDU: 94(81)18 

____________________________________________________________________________

Alameda Casa Editorial

Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista

CEP 01327-000 – São Paulo, SP

Tel. (11) 3012-2403

www.alamedaeditorial.com.br

A Paulo Vannuchi, meu pai. Resistente. Ontem e hoje.

Sumário

Apresentação

Rogério Sottili

Prefácio

Caco Barcellos

A Vala, trinta anos depois

1. A abertura

2. A origem

3. O inquérito

4. Primeiras análises

5. A luta por verdade e justiça

6. A retomada

Caderno de imagens

7. Os desaparecidos que reapareceram

8. Violência de Estado hoje

Pessoas entrevistadas

Obras consultadas

Apresentação

Rogério Sottili

A vala de Perus é um desses episódios monstruosos da história recente do Brasil, tais como o genocídio de milhares de pessoas na colônia psiquiátrica de Barbacena (MG), a prática criminosa de tocar fogo em aldeias indígenas, o massacre do Carandiru ou o genocídio de quase quinhentos jovens sem antecedentes criminais nos chamados crimes de maio de 2006. É também um episódio inaceitável, como a revelação de que bebês, crianças e adolescentes foram sequestrados pela ditadura militar brasileira, assunto de outro livro-reportagem publicado pela Alameda em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, Cativeiro sem fim, do também jornalista Eduardo Reina.

Essas histórias reais, que nenhum autor de ficção seria capaz de inventar com tamanha crueldade, precisam ser lidas e contadas, hoje e sempre. Não apenas para que tais atrocidades nunca mais aconteçam, como se diz, mas principalmente para que deixem de se repetir, nos casos em que nem o tempo e a Justiça foram capazes de interferir e inaugurar novos caminhos.

Registrar fatos ainda obscuros de violência de Estado e outras violações de direitos, de ontem e de hoje, tem sido uma espécie de fio orientador da atuação do IVH. Nosso compromisso de nunca passar pano para quem oprime, censura, persegue ou agride renova-se como um imperativo ético, para que nenhuma tirania seja aceita, nenhuma truculência seja tolerada, nenhum mal seja banalizado.

É neste sentido que a história da vala clandestina de Perus, passados trinta anos desde a revelação de que mais de mil ossadas foram deliberadamente ocultadas no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, numa trama sórdida que envolveu a esfera federal, por meio do Dops e do DOI-Codi, a estadual, por meio dos IMLs e da polícia que mata, e a municipal, responsável pela administração daquele cemitério, ainda nos causa indignação e revolta. Indignação, porque sabemos que a vala serviu para decretar não apenas a morte, mas também o desaparecimento de vítimas da polícia militar, dos grupos de extermínio, dos centros de tortura e até de um surto de meningite que acometeu a cidade de São Paulo na primeira metade dos anos 1970. Revolta, porque ainda convivemos com a tortura e com o desaparecimento forçado, dois crimes contra a humanidade condenados no sistema internacional, e até hoje a justiça brasileira foi incapaz de condenar aqueles que torturaram, mataram e sumiram com os corpos de suas vítimas, seja nas usinas, nos sítios, na Baía de Guanabara ou na vala de Perus.

A interpretação da Lei de Anistia por setores do Judiciário, inclusive o STF, tem impedido passos importantes no direito à memória e na justiça de transição. Onde estão os desaparecidos políticos? De quem são as ossadas de Perus? Quem ordenou que aquelas ossadas fossem escondidas numa vala clandestina? Por que até hoje ninguém foi condenado e punido?

Este trabalho contribui para jogar luz sobre os crimes de tortura, execução política, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres e nos alerta para o fato de que essa história ainda está viva. Cada ossada passível de identificação é uma pedra no sapato dos torturadores, estupradores, assassinos e ocultadores. Como na canção Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, esses remanescentes ósseos, que se tentaram ocultar, e que se levantaram do chão para seguir denunciando o arbítrio e o terrorismo de Estado, são resistentes que, mesmo depois de mortos, estão por aí, perturbando a paz e exigindo troco. O mérito é sobretudo das mães, irmãs, companheiras e filhas que se perfilaram nas comissões de familiares – ontem, a dos mortos e desaparecidos políticos dos anos 1960 e 1970; hoje, as Mães de Maio que denunciam o arbítrio dos anos 2000. São elas, e também os pais, irmãos, companheiros e filhos, que jamais deixaram de cobrar explicações e seguem fiscalizando os trabalhos de análise e identificação das ossadas, cinquenta anos após o assassinato de seus familiares.

Com o espírito de impedir que os desaparecidos desaparecessem pela segunda vez, agora no âmbito da memória, trabalhei intensamente para que as análises das ossadas de Perus fossem retomadas quando estive à frente da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, nos primeiros três anos da gestão Fernando Haddad. Era a primeira vez que o município tinha uma pasta de Direitos Humanos. Ali, instituímos uma coordenação dedicada especificamente a construir políticas voltadas para o direito à memória e à verdade, liderada por Carla Borges, mestre em educação e minha chefe de gabinete, e ajudamos a colocar a vala de Perus novamente no centro da pauta.

Uma oportuna confluência de gestões sensíveis aos temas de direitos humanos e justiça de transição, com Dilma Rousseff na Presidência da República e Fernando Haddad na Prefeitura, possibilitou não apenas a retomada das análises, mas também a formação do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense da Unifesp, pioneiro nesse tipo de trabalho, como a leitora e o leitor conhecerão nas próximas páginas.

Enquanto construíamos uma agenda de memória e verdade para a cidade, o jornalista e escritor Camilo Vannuchi integrou a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, instituída para apurar, registrar e denunciar as violações de direitos humanos praticadas pela própria Prefeitura Municipal durante a ditadura. E também para recomendar ao poder Executivo ações e políticas públicas que ajudem a impedir a repetição daquelas violações ou a prevalência de crimes semelhantes. Tal comissão foi coordenada pela ex-vereadora Teresa Lajolo, que em 1990 fora a relatora da CPI da Câmara Municipal que investigou a vala de Perus e os desaparecimentos políticos. Desta vez, coube a Camilo Vannuchi o papel de relator.

Além de denunciar os meandros do aparato repressivo que resultou na construção da vala, o relatório final daquela comissão sugeriu medidas a serem adotadas pela Prefeitura, pelo Serviço Funerário, pelo Instituto Médico Legal e pela Secretaria de Segurança Pública a fim de garantir aos familiares dos desaparecidos políticos o direito de retificar os assentos de óbitos e velar seus mortos, mas também com o objetivo de coibir a prática dos crimes de desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres, qualificados como de lesa-humanidade pela ONU e ainda noticiados no Brasil.

Naquela comissão, mas sobretudo no jornalismo e na literatura, Camilo Vannuchi tem se revelado um autor prolífico, fortemente comprometido com os direitos humanos, e um militante incansável da luta por memória, verdade e justiça. Para nós do Instituto Vladimir Herzog, é uma honra poder apresentar este livro, uma reportagem de fôlego, escrita com maestria e urgência numa época em que parte significativa da população brasileira, sobretudo a juventude preta e periférica, ainda é vítima de uma política de Estado genocida, e num momento em que o bom jornalismo, a educação e os direitos humanos têm sido frequentemente atacados com requintes de autoritarismo que fazem lembrar os tempos sombrios da exceção e do arbítrio.

Rogério Sottili é diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog

Prefácio

Caco Barcellos

Comecei a investigar a vala de Perus no dia em que encontrei uma pista no meio de milhares de papéis envelhecidos, sujos de sangue, amontoados numa grande sala do Instituto Médico Legal de São Paulo. Eu estava pesquisando aqueles arquivos com o propósito de identificar todas as pessoas mortas pelas PMs ao longo de toda a sua história, sobretudo as execuções decorrentes das ações da Rota, uma tropa de elite da PM paulista criada em 1970 como força auxiliar de oficiais do Exército, alguns deles envolvidos em episódios de tortura e morte de opositores da ditadura militar.

Uma das coisas que encontrei ali foram os exames necroscópicos. Um indivíduo, quando morre por causa violenta, passa por um exame e é feito um laudo que recebe a assinatura de um médico legista. Observei que, de 1970 a 1972, em alguns desses laudos, os médicos haviam feito uma marca, uma letra T escrita em vermelho. Descobri depois que, para eles, era T de terrorista. Esses documentos tinham duas coisas em comum: os corpos nunca eram reclamados pelos familiares e seu destino era sempre o Cemitério Dom Bosco, em Perus.

O cemitério de Perus começou a fazer parte do meu roteiro de fim de semana. Eu ia para lá na tentativa de encontrar parentes das vítimas da Rota e, dessa maneira, identificá-las. Com a ajuda de um amigo, um grande pesquisador, Maurício Maia, conseguimos confirmar que esses corpos tinham sido registrados nos livros de entrada do cemitério e, ao lado de cada registro, havia uma anotação com o número da respectiva sepultura. Ao procurar essas ossadas nas covas, elas não estavam mais lá.

O mistério só foi resolvido no dia em que conheci o administrador do cemitério. Toninho Eustáquio é uma pessoa imprescindível, essencial para se conhecer mais a história da repressão política no Brasil. Ele me contou que, em meados da década de 1970, ossadas de aproximadamente 1.500 pessoas tinham sido exumadas de suas sepulturas e colocadas numa grande vala, aberta de forma clandestina.

O cemitério de Perus era também o destino preferencial dos corpos das vítimas da Rota, também enterrados como indigentes, por isso eu ia muito lá. Fizeram uma mistura daquelas ossadas, as dos desaparecidos políticos com as dos mortos da PM, puseram dentro dessa grande vala com outras ossadas, de indigentes, de vítimas dos esquadrões da morte e de pessoas não identificadas, e cobriram. Nunca mais se falou disso.

Perguntei ao Toninho se ele tinha falado sobre essa vala para mais alguém. Sim, contei para um engenheiro, irmão de um desaparecido político, ele disse. Fui atrás, localizei o engenheiro Gilberto Molina, irmão de Flávio Molina, e o entrevistei no Rio de Janeiro. Molina repetiu o relato do Toninho. Emocionado, disse mais:

Caco, eu pedi para ver o conteúdo da vala e o Toninho escavou alguns metros até encontrar os primeiros sacos com ossos, relatou. Constatei que, onde deveria haver uma pequena ficha com o nome do cadáver ou o número de identificação de desconhecido, esse pedaço de papel havia sido comido pelo tempo. Já não havia mais como identificar o irmão que eu tanto procurava.

Bastante emocionado, Molina teria pedido para que Toninho devolvesse os sacos e fechasse aquele buraco novamente.

Para mim, ficou a certeza de que a vala existia. Era uma vala clandestina, não estava em nenhum mapa do cemitério ou da Prefeitura. Ela era clandestina e precisava ser aberta. A sociedade precisava saber disso.

As primeiras pessoas que eu procurei, naturalmente, foram os membros da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, e foi assim que eu conheci a Suzana Lisbôa, que teve uma participação fundamental no processo de abertura e revelação pública da vala, em 4 de setembro de 1990, e em tudo o que aconteceu depois.

Este livro, escrito pelo jornalista Camilo Vannuchi, narra em detalhes a descoberta da vala de Perus, trinta anos atrás. E também os cinquenta anos compreendidos entre a construção do Cemitério Dom Bosco, em 1970, e a recente retomada das análises das ossadas em busca de identificação, trabalho que prossegue em 2020, na Unifesp.

Para mim, o que fica dessa história é que ela continua. Passados trinta anos, ela está mais viva ainda, nunca deixou de estar viva.

Ao longo de 21 anos, a ditadura militar matou mais de 400 opositores, 434 mortos e desaparecidos políticos segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Nunca vamos nos esquecer disso. Pois neste ano de 2020, em plena pandemia, a Polícia Militar de São Paulo matou mais de 500 pessoas apenas no primeiro semestre. No ano passado, só a Polícia Militar do Rio de Janeiro matou quase duas mil pessoas.

A maior diferença está no perfil das vítimas. No passado, os mortos e desaparecidos políticos, categoria que considera somente as vítimas que exerciam alguma atividade de resistência ou oposição à ditadura, eram majoritariamente jovens brancos, de todas as classes sociais, muitos deles estudantes. Hoje, a história se repete. As vítimas são novamente jovens, mas a maioria formada por negros, e todos, absolutamente todos, filhos de trabalhadores de baixa renda. São unidades matadoras de pessoas pobres, que têm as suas histórias sempre desqualificadas moralmente, apresentadas como bandidos.

Temos muito ainda que trabalhar.

Caco Barcellos é jornalista e autor de Rota 66: a história da polícia que mata, entre outros livros.

A vala, trinta anos depois

Conheci o Cemitério Dom Bosco, no distrito de Perus, em São Paulo, no dia 4 de setembro de 2017. Ali, vinte e sete anos antes, dezenas de jornalistas, funcionários da prefeitura e familiares de mortos e desaparecidos políticos assistiram atônitos à deflagração de uma vala clandestina, da qual foram retirados 1.049 sacos repletos de ossos humanos. Aquelas mais de mil ossadas tinham sido deliberadamente ocultadas pelo Estado em meados dos anos 1970. A intenção era que desaparecessem para sempre.

Havia algo comum àquelas ossadas. Seus donos e donas foram vítimas da truculência policial, dos grupos de extermínio, da epidemia de meningite, da negligência do poder público diante da fome e da miséria, e, como logo se observou, de um sistema repressivo perverso, que torturou até a morte muitos dos que ousaram se levantar contra a tirania, a opressão e a censura entre 1971 e 1973.

Depois de matar, as autoridades precisavam desovar aqueles corpos. Tentaram incinerá-los. Na ausência de um forno que desse conta do serviço, quando ainda não havia crematório público em São Paulo, mandaram cavar um buraco na terra, com 30 metros de comprimento e meio metro de largura, e jogaram entre mil e mil e quinhentas ossadas ali dentro em meados de 1976. Nenhuma anotação nos livros de registro, nenhuma indicação nos mapas do cemitério cadastrados na Prefeitura. Nada. Sob a grama, protegida pelo silêncio cauteloso e intimidado dos sepultadores, essa legião de vítimas da violência de Estado permaneceu oculta por catorze anos.

Na manhã de 4 de setembro de 1990, os telejornais puderam cobrir – e revelar – um dos episódios mais graves e escandalosos do já extenso histórico de violações de direitos praticadas pela ditadura militar no Brasil. Vinte e sete anos depois, familiares, ativistas dos direitos humanos e representantes dos poderes Executivo e Legislativo do município reuniam-se para inaugurar uma placa que nós, os membros da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, havíamos elaborado um ano antes.

Somente em 2017, nove meses após a conclusão dos trabalhos da comissão, a placa seria finalmente fixada, listando os nomes de trinta e um mortos e desaparecidos políticos que, em algum momento, tiveram seus corpos enterrados no Cemitério Dom Bosco, conforme levantamento feito pela comissão a partir de pesquisas anteriores, feitas sobretudo pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Presidência da República.

No dia 4 de setembro de 2017, além do descerramento da placa, que eu mesmo tivera a oportunidade de conceber e diagramar, houve a entrega oficial de trinta e um ipês. Rogério Leite, que havia sido o secretário-executivo da nossa comissão e agora pelejava para dar seguimento à agenda de memória e verdade construída na gestão anterior, me estendeu um papelzinho e pediu que eu o pendurasse num dos ipês. No cartão estava escrito o nome de Alexandre Vannucchi Leme. Estudante de geologia na USP e militante da Ação Libertadora Nacional, meu primo em segundo grau tinha 22 anos quando foi torturado até a morte, no DOI-Codi, no dia 17 de março de 1973. Sequestrado e assassinado pela repressão, Alexandre foi enterrado em Perus antes mesmo que sua morte fosse noticiada. Apenas seis dias depois de morto, seu nome apareceu no jornal. Segundo a versão oficial, o terrorista tinha sido atropelado por um caminhão ao tentar fugir da prisão.

O corpo de Alexandre foi enterrado como não reclamado, termo utilizado para se referir ao cadáver identificado, mas que não é buscado por nenhum familiar. Morto numa sala de tortura menos de 24 horas após ter sido aprisionado e num momento em que sequer sua prisão, ilegal e arbitrária, constava dos registros da Secretaria de Segurança Pública, como Alexandre poderia ser procurado por alguém? Um telefonema anônimo, atendido por José Augusto, o caçula dos cinco irmãos de Alexandre, então com 12 anos, trouxe a pista que faltava. O moço disse que o Lê está preso em São Paulo, o menino avisou os pais. Falou pra gente ir procurar no Dops.

Feita na manhã do dia 20 de março, três dias após a morte do estudante, a ligação não chegou a tempo de evitar seu enterro numa vala comum, mas serviu como orientação para que Tia Egle e Tio José pudessem cobrar as autoridades e reivindicar o corpo. Não fosse aquele telefonema anônimo, as ossadas de Alexandre possivelmente teriam alimentado a vala clandestina. Enterrado à revelia da família em 18 de março de 1973, Alexandre teve seus restos mortais transferidos para Sorocaba, sua cidade natal, dez anos depois, em 1983.

Depois de pendurar a etiqueta em homenagem a meu primo, visitei pela primeira vez o monumento projetado por Ricardo Ohtake e construído em 1992, por iniciativa da prefeitura, para homenagear as vítimas da ditadura.

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