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Castas: As origens do nosso descontentamento
Castas: As origens do nosso descontentamento
Castas: As origens do nosso descontentamento
E-book637 páginas14 horas

Castas: As origens do nosso descontentamento

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Sobre este e-book

Isabel Wilkerson, jornalista vencedora de Pulitzer, redefine a compreensão das estruturas sociais em que nos inserimos, preferindo o uso do termo castismo ao habitual racismo.
Nesta obra, a autora associa aqueles que considera os três principais sistemas de castas, o do Estados Unidos, o da Índia e o da Alemanha nazi, às respetivas influências culturais, políticas e legais, remontando a pesquisa ao tráfico negreiro e até à diáspora lusitana, da qual, à chegada à Índia, resultou o aparecimento da palavra portuguesa casta, para raça, linhagem.
Com uma impressionante lista de referências a notícias, estudos, documentos, declarações, decisões administrativas e judiciais de vários países e épocas, Wilkerson estabelece um perturbador elo entre os castismos mundiais através de oito pilares estritamente delimitados.

A colonização dos Estados Unidos pelos povos europeus e o que dela resultou para os protocolos de casta e para os contornos políticos atuais em todo o mundo, é revista pela autora num intenso e perturbador desfile de histórias individualizadas de escravatura e insensibilidade, apresentadas com vívido e estonteante detalhe.
Ninguém, onde quer que viva ou que cor tenha na pele, pode dar-se ao luxo de desconhecer uma história do mundo contada assim.

IdiomaPortuguês
EditoraCultura
Data de lançamento16 de jun. de 2023
ISBN9789899039971
Castas: As origens do nosso descontentamento

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    Castas - Isabel Wilkerson

    O homem na multidão

    Há uma famosa fotografia a preto e branco da era do Terceiro Reich. É uma fotografia tirada em Hamburgo, na Alemanha, a operários portuários, uns cem, ou mais, todos virados na direção do Sol. Estão a saudar em uníssono, de braços direitos esticados em lealdade ao Führer.

    Se se olhar com atenção, vê-se um homem no canto superior direito que é diferente dos outros. O seu rosto tem uma expressão tranquila, mas determinada. As reproduções modernas desta fotografia costumam normalmente acrescentar um muito útil círculo vermelho à volta do homem, ou uma seta que para ele aponta. Ele está rodeado por concidadãos enfeitiçados pelos nazis. Mantém os braços cruzados à altura do peito e as palmas esticadas dos outros ficam a apenas centímetros dele. Só ele se recusa a saudar. Ele é o único contra a maré.

    Revendo agora esta imagem, ele é a única pessoa em toda a cena que está do lado certo da história. Todos à volta dele estão trágica, fatal e categoricamente errados. Naquele instante, só ele conseguia vê-lo.

    Acredita-se que o seu nome era August Landmesser. Na altura, ele não poderia saber o caminho homicida ao qual aquela histeria à sua volta iria conduzir. Mas já vira o suficiente para a rejeitar.

    Ele próprio se tinha juntado ao Partido Nazi anos antes. Mas naquela altura, porém, já sabia em primeira mão que os nazis estavam a alimentar os alemães de mentiras acerca dos judeus, os proscritos da era, e que, mesmo naqueles anos iniciais do Reich, os nazis tinham causado terror, dor e disrupção. Ele sabia que os judeus não eram untermenschen, que eram cidadãos alemães, humanos como quaisquer outros. Ele era ariano, apaixonado por uma judia, mas as recentemente implantadas Leis de Nuremberga tornaram-lhes a relação ilegal. Estavam proibidos de se casar ou de ter relações sexuais, qualquer deles sujeito ao que os nazis chamavam «infâmia racial».

    A sua experiência pessoal e a sua relação próxima com a casta tomada como bode expiatório permitiam-lhe ver além das mentiras e dos estereótipos tão apressadamente aceites por membros sugestionáveis — a maioria, infelizmente — da casta dominante. Embora ele próprio ariano, tinha abertura para com a humanidade das pessoas que lhe eram consideradas inferiores e importava-se com o bem-estar delas, sentindo os destinos delas ligados ao seu. Ele via o que os seus compatriotas tinham escolhido não ver.

    Num regime totalitário como o do Terceiro Reich, era um ato de coragem mostrar aquela firmeza contra todo um oceano. Talvez até tenhamos a certeza de que, se fôssemos arianos no Terceiro Reich, sem dúvida que teríamos visto para lá disso. Que nos insurgiríamos, como ele; teríamos sido aquele a resistir ao autoritarismo e à brutalidade da histeria de massas.

    Queremos acreditar que tomaríamos o caminho mais difícil, o de enfrentar a injustiça em defesa do injustiçado. Mas a menos que as pessoas estejam dispostas a ultrapassar os próprios medos, a suportar o desconforto e o ridículo, a sofrer o escárnio de parentes, vizinhos, amigos e colegas de trabalho, a sofrer as reprimendas de todos os nossos amados, conhecidos, companheiros de trabalho e amigos, a sofrer o desfavorecimento de provavelmente toda a gente que conhecemos, a enfrentar a exclusão e talvez até o afastamento, seria numerica e humanamente impossível ser aquele homem. O que lhe terá custado ser ele naquela era? O que lhe custaria ser ele agora?

    Parte Um

    ———

    toxinas no permafrost e o calor a aumentar por toda a parte

    capítulo um

    A sobrevivência dos patogénicos

    No assombrado verão de 2016, uma incomum onda de calor atingiu a tundra siberiana no ponto extremo daquilo que os antigos outrora chamavam «Fim da Terra». Acima do Círculo Polar Ártico, e longe da colisão de placas tectónicas da política americana, o calor aumentou sob a superfície da Terra e também sobre esta, com a temperatura do ar a subir a inconcebíveis 35 °C na península russa de Yamal. Incêndios deflagraram, bolsas de metano borbulharam sob o solo normalmente gelado da região polar.

    Rapidamente, os filhos dos pastores indígenas adoeceram de um misterioso mal que os locais nunca tinham visto e não reconheciam. Um rapaz de doze anos teve febre alta e sentiu dores agudas no estômago, acabando por morrer. As autoridades russas declararam estado de emergência e começaram a retirar de avião centenas de pessoas doentes para o hospital mais próximo, em Salekhard.

    Os cientistas identificaram, então, o que havia afligido os povoados siberianos. O calor aberrante entrara pelo permafrost a uma profundidade muito maior do que o normal e expusera uma toxina que estava soterrada desde 1941, quando o mundo estivera pela última vez em guerra. Era o patogénico antraz, que matara rebanhos inteiros de renas várias décadas antes e que, durante todo esse tempo, permanecera escondido nas carcaças desses animais enterradas no permafrost. Uma carcaça descongelada e contaminada subiu à superfície naquele verão e o patogénico despertou, intacto e tão poderoso como sempre fora. Os esporos do patogénico infiltraram-se na pastagem, infetaram as renas e espelharam-se pelos pastores que cuidavam dos animais e dos quais dependiam. O antraz, tal como a reativação dos patogénicos humanos do ódio e do tribalismo neste século, nunca morrera. Esperou, adormecido, até que circunstâncias extremas o devolveram à superfície e à vida.

    Do outro lado do planeta, a mais antiga e mais poderosa democracia do mundo estava em espasmos a respeito de uma eleição que iria transfigurar o mundo ocidental e causar um surto psicótico na história americana, um que irá provavelmente ser estudado e dissecado durante gerações. Naquele verão, e pelo outono adentro e pelos anos seguintes, entre proibições a muçulmanos, mulheres desagradáveis, muros em fronteiras e nações de merda, era habitual escutar em certos círculos lamentos incrédulos «isto não é a América», «não reconheço o meu país» ou «não é isto que somos». Acontece que este era e é o nosso país e isto era e é o que somos, quer o reconheçamos ou não.

    O calor aumentou no Ártico e em confrontos dispersos espalhados pela América. Mais tarde naquele verão, na cidade de Nova Iorque, um porto sossegado num estado democrata, um homem branco de Brooklyn, um artista, ajudava uma senhora branca de meia-idade a carregar as compras até uma estação de metro pela qual passava um comboio na direção de Coney Island.

    À época, era impossível evitar falar sobre a campanha eleitoral. Fora uma temporada política diferente de qualquer outra. Pela primeira vez na história, uma mulher concorria por um dos principais partidos à presidência dos Estados Unidos. Um nome forte, a candidata era uma figura reconhecida, até com qualificações a mais, no entendimento de algumas opiniões, convencional e quase desinteressante de acordo com os seus detratores, com mão firme preparada para qualquer crise ou questão política que fosse chamada a tratar. O seu oponente era um bilionário impetuoso, um apresentador de reality shows sempre preparado para lidar com toda a gente que fosse diferente dele, que nunca ocupara qualquer cargo público e alguém que os especialistas acreditavam não ter qualquer possibilidade de vencer as eleições primárias do seu partido, quanto mais as presidenciais.

    Antes do final da campanha, o candidato masculino perseguiu a candidata feminina durante um debate que todo o mundo pôde ver. Vangloriava-se de agarrar as mulheres pelos genitais, gozava com os deficientes, encorajava a violência contra a comunicação social e contra os que discordassem dele. Os seus seguidores desprezavam a candidata feminina gritando «prendam-na!» em comícios lotados presididos pelo candidato. Os seus comentários e atividades foram considerados tão vulgares que algumas notícias chegaram a ser precedidas por avisos parentais.

    Ali estava um candidato «tão transparentemente não qualificado para o cargo», escreveu o The Guardian em 2016, «que a sua candidatura parecia mais uma partida de mau gosto do que uma proposta séria para a Casa Branca».

    Perante isto, aquilo que normalmente se designa «raça» na América não era a verdadeira questão. Os dois candidatos eram brancos, nascidos entre a maioria histórica do país. Mas a candidata, a mulher, representava o partido mais liberal, feito de uma manta de coligações de, por assim dizer, pessoas humanitárias e marginalizadas. O candidato, o homem, representava o partido conservador, que em décadas recentes passara a ser visto como protetor de uma velha ordem social que beneficiava e apelava largamente aos eleitores brancos.

    Os candidatos estavam em polos opostos, igualmente odiados pelos fãs do respetivo adversário. Os extremos daquela temporada obrigaram os americanos a tomar partido e a declarem a sua aliança ou a encontrarem uma maneira de contornar a questão. Assim, naquilo que de outra forma teria sido um dia normal, enquanto o artista de Brooklyn estava a ajudar a velha senhora com as compras, ela virou-se para ele, espontaneamente, e quis saber em quem ia ele votar. O artista, progressista, disse-lhe que estava a planear votar pelos democratas, pela candidata mais experiente. A senhora com as compras deve ter suspeitado disso mesmo e ficou desgostosa com a resposta. Ela, como milhões de outros americanos na tal maioria histórica, iluminara-se com os apelos sem rodeios do bilionário nativista.

    Apenas algumas semanas antes, o bilionário tinha dito que podia dar um tiro em alguém na Quinta Avenida e que nem assim os seus seguidores deixariam de votar nele, devotados como eram. A mulher sobrecarregada com sacos de compras era um deles. No mais azul-democrata de todos os santuários, ela ouvira o apelo dele e decifrara as suas mensagens. Incumbiu-se então de instruir o artista do erro da sua forma de pensar e da razão pela qual era urgente que ele votasse da forma certa.

    «Sim, eu sei que ele às vezes exagera quando fala», concedeu ela, aproximando-se do seu potencial convertido. «Mas ele vai restaurar a nossa soberania.»

    Foi então, antes dos debates e das revelações que chegariam em cascata, que o homem do Brooklyn compreendeu que, apesar das probabilidades e dos precedentes históricos, uma estrela de televisão sem qualquer experiência, ou talvez até qualquer pessoa que concorresse ao cargo de presidente, poderia tornar-se líder do mundo livre.

    A campanha tornara-se mais do que uma rivalidade política — era uma luta existencial pelo primado de um país cuja demografia estava a mudar à vista de todos. Pessoas com a aparência do artista de Brooklyn e a da mulher que seguia para Coney Island, aqueles cuja origem remontava à Europa, eram parte da maioria histórica dominante, a influente casta racial numa hierarquia silenciosa, desde antes da fundação da República. Mas, nos anos que tinham conduzido àquele momento, começara a espalhar-se na rádio e na televisão que a fatia branca da população estava a encolher. No verão de 2008, o Departamento Americano de Censos projetou que em 2042, pela primeira vez na história da América, os brancos deixariam de ser a maioria num país que nunca conhecera outra configuração, nenhuma outra forma de ser.

    Então, naquele outono, entre o que parecia ser uma crise financeira cataclísmica, e como se para anunciar uma potencial derrocada da casta que durante tanto tempo tinha sido dominadora, um afro-

    -americano, um homem daquela que era historicamente a casta mais baixa, foi eleito presidente dos Estados Unidos. A sua ascensão ao cargo incitou tanto declarações precipitadas a respeito de um mundo pós-racial, como todo um movimento cujo único propósito era provar que ele não tinha nascido nos Estados Unidos, uma campanha liderada pelo bilionário que estava agora, em 2016, a concorrer, ele próprio, a presidente.

    Um murmúrio estava a criar-se sob a superfície, neurónios animados com a perspetiva de um campeão que representasse a casta dominante, um megafone para as suas ansiedades. Algumas pessoas tornavam-se mais ousadas por causa disso.

    Um comandante da polícia no sul de Nova Jérsia colocava a possibilidade de eliminar afro-americanos e temia que a candidata, a democrata, iria «ceder a todas as minorias». Naquele setembro, ele espancou e algemou um adolescente negro que fora detido por nadar numa piscina sem autorização. O comandante agarrou o adolescente pela cabeça e, assim o disseram testemunhas, «bateu-a como se fosse uma bola de basquete» contra uma porta metálica. À medida que a eleição se aproximava, o comandante disse aos seus agentes que a estrela de televisão «era a última esperança para os brancos».

    Comentadores do mundo inteiro reconheceram o significado extraordinário daquela eleição. Observadores em Berlim e Joanesburgo, em Nova Deli e Moscovo, em Pequim e Tóquio, ficaram acordados pela noite dentro e até à manhã seguinte para saber os resultados daquela primeira terça-feira de novembro de 2016. Inexplicavelmente para muitos fora dos Estados Unidos, o resultado não era decidido pelo voto popular, mas pelo Colégio Eleitoral, uma invenção americana da época da fundação e da escravatura através da qual cada estado declara o vencedor com base nos votos do colégio que lhe são atribuídos e no resultado da votação popular na sua jurisdição.

    Até então, houvera apenas cinco eleições na história do país nas quais o Colégio Eleitoral ou um mecanismo similar anulara o voto popular, duas delas ocorridas no século XXI. Uma dessas foi a eleição de 2016, uma colisão de circunstâncias incomuns.

    A eleição colocaria os Estados Unidos numa rota de isolacionismo, tribalismo, do muramento e da proteção pessoal, do culto da riqueza e da aquisição à custa dos outros, inclusive do próprio planeta. Depois de os votos terem sido contados e de o bilionário se ter declarado vencedor, perante o choque do mundo e daqueles talvez menos cientes da história racial e política do país, um homem num campo de golfe na Geórgia podia sentir-se livre para se exprimir. Ele era um filho da Confederação que entrara em guerra contra os Estados Unidos pelo direito a escravizar outros humanos. A eleição foi uma vitória para ele e para a ordem social em que nascera. Disse aos que andavam à sua volta: «Lembro-me dos tempos em que todos conheciam o seu devido lugar. É hora de voltarmos a isso.»

    O sentimento de regressar a uma antiga ordem de coisas, à hierarquia fechada dos antepassados, rapidamente se espalhou pelo país, às manchetes dos jornais, numa onda de crimes de ódio e violência em massa. Pouco tempo depois da cerimónia de tomada de posse como presidente, um homem branco no Kansas matou a tiro um engenheiro indiano, dizendo «saiam do meu país» ao imigrante e ao seu colega também indiano, enquanto disparava. No mês seguinte, um veterano branco da velha escola das Forças Armadas apanhou um autocarro de Baltimore para Nova Iorque com a missão de matar pessoas negras. Perseguiu um negro de 66 anos na Times Square e golpeou-o com uma espada até à morte. O agressor tornar-se-ia o primeiro supremacista branco condenado por terrorismo no estado de Nova Iorque.

    Num comboio lotado em Portland, no Oregon, um homem branco que gritava ofensas raciais e antimuçulmanas atacou duas adolescentes, uma das quais usava um hijab. «Fora daqui», gritava ele. «Precisamos cá é de americanos.» Quando três homens brancos saíram em defesa das raparigas, o agressor esfaqueou-os. «Sou um patriota», disse ele à polícia enquanto era conduzido para a prisão, «e espero que todos os que esfaqueei tenham morrido.» Tragicamente, dois dos homens não sobreviveram aos ferimentos. Então, naquele verão de 2017, um supremacista branco conduziu um carro sobre uma manifestação contra o ódio em Charlottesville, na Virgínia, matando uma jovem branca, Heather Heyer, num conflito sobre os monumentos à Confederação que então atraía a atenção do mundo inteiro.

    O ano de 2017 tornar-se-ia o mais fatal em tiroteios em massa na história americana moderna. Em Las Vegas, ocorreu o maior massacre do género no país, sendo seguido por uma série de tiroteios em escolas públicas, parques de estacionamento, ruas de cidades e supermercados um pouco por toda a nação. No outono de 2018, onze judeus foram assassinados numa sinagoga em Pittsburgh, naquele que foi o pior ataque antissemita em solo americano. Nos arredores de Louisville, no Kentucky, um homem tentou um ataque parecido a uma igreja normalmente frequentada por negros, forçando as portas barricadas para entrar e disparar nos paroquianos durante os seus estudos da Bíblia. Incapaz de arrombar as portas, foi até ao supermercado mais próximo e matou os primeiros negros que viu — uma mulher no parque de estacionamento que estava a comprar uma cartolina acompanhada pelo neto. Um homem que passava, por acaso armado, viu o atirador no estacionamento, o que despertou a atenção deste. «Não dispare contra mim», disse o agressor, «e eu não disparo contra si», de acordo com notícias de então. «Brancos não matam brancos.»

    Nos meses seguintes, enquanto o novo presidente retirava o país de tratados internacionais e bajulava ditadores, muitos observadores desesperavam com o eventual fim da democracia e temiam pela própria república. Sozinho, o novo líder retirou a mais velha democracia do mundo do Acordo de Paris de 2016, pelo qual as nações do mundo se tinham unido para combater a mudança climática, deixando muitos angustiados por causa de uma corrida para proteger o planeta na qual já estavam em desvantagem.

    Imediatamente, um grupo de psiquiatras considerados, cuja profissão só os autoriza a falar sobre diagnósticos caso a pessoa seja uma ameaça para ela própria ou para outras, deu o extraordinário passo de alertar o público americano de que o recém-empossado líder do mundo livre era um maligno narcisista, um perigo para o povo. No segundo ano da administração, crianças latinas estavam atrás das grades na fronteira sul, separadas dos próprios pais, que pediam asilo.

    Medidas de proteção do ar, da água e das espécies ameaçadas, em vigor há décadas, foram sumariamente anuladas. Múltiplos consultores de campanha foram presos quando se ampliaram as investigações de corrupção, e um presidente em exercício estava então a ser descrito como agente ao serviço de uma potência estrangeira.

    O partido de oposição tinha perdido nos três ramos de poder e estava alarmado. Conseguira recuperar a Câmara dos Representantes em 2018, mas isto só lhe dava um sexto do governo — isto é, metade do ramo do poder legislativo — e hesitou em dar início ao processo de impugnação. Muitos temiam um contragolpe, temiam que tal pudesse aumentar a fúria das bases do bilionário, em parte porque, ainda que ele representasse uma minoria do eleitorado, a sua base era esmagadoramente composta por gente da casta dominante. A obstinação dos seguidores do presidente e a angústia da oposição pareciam comprometer o sistema fundamental de checks and balances, isto é, a garantia de separação de poderes, significando que, por algum tempo, os Estados Unidos não eram, nas palavras de um dirigente do Partido Democrata da Carolina do Sul, uma «democracia plenamente funcional».

    No início do terceiro ano, o presidente foi impugnado por oponentes políticos na câmara baixa e absolvido pelos seus seguidores no Senado, em votações alinhadas com o partido e que refletiam as fraturas no país como um todo. Esse foi apenas o terceiro processo de impugnação na história americana. Nessa altura, já se tinham passado mais de trezentos dias sem nenhum briefing da Casa Branca, um ritual de seriedade e prestação de contas de Washington. Desaparecera de forma tão despercebida que poucos pareceram notar esta fissura adicional na normalidade.

    E então a pior pandemia em mais de um século conduziu a humanidade a um impasse. O presidente desconsiderou o problema ao nível de um vírus chinês que desapareceria como por milagre, considerou os protestos um embuste, ridicularizou aqueles que dele discordavam ou que pretendiam avisá-lo. Em semanas, os Estados Unidos seriam atingidos pelo maior surto do planeta, com governadores a implorar por kits de testes e ventiladores, enfermeiras enroladas em sacos de lixo para se protegerem do contágio enquanto ajudavam os doentes. O país estava a perder a capacidade para se chocar; o incompreensível tornara-se parte do dia de toda a gente.

    O que acontecera à América? Como podia explicar-se que dezenas de milhões de eleitores tivessem resolvido ignorar todos os costumes e colocar o país, e, portanto, o mundo, nas mãos de uma celebridade inexperiente, um homem que nunca servira o país na guerra nem em qualquer cargo público, ao contrário de todos os outros antes dele, e cuja retórica parecia atrair para os extremistas? Seria que os mineiros e os operários da indústria automobilística estavam agitados com a estagnação económica? Seria que os moradores do interior estavam a vingar-se das elites costeiras? Seria que uma parcela do eleitorado desejava apenas uma mudança? Seria que era verdade que a mulher na disputa, a primeira a chegar tão perto do cargo mais elevado da nação, tinha mesmo feito uma campanha que fora uma «confusão total», como afirmaram dois veteranos jornalistas políticos? Seria que os eleitores urbanos (significando negros) não tinham comparecido nas urnas, enquanto os evangélicos (significando brancos) tinham? Como era possível que tanta gente, tantos trabalhadores normais, dependentes de assistência médica e da educação pública para os filhos, de acesso a água potável e a salários, tivessem votado «contra os seus próprios interesses», como se ouviu dizer de muitos progressistas no nevoeiro daquela viragem política histórica? Todas estas eram teorias populares no rescaldo, e havia algum elemento de verdade em todas elas.

    A Terra tinha mudado de um dia para o outro, ou pelo menos assim parecia. Há muito que definimos os terramotos como resultado da colisão entre placas tectónicas que empurram parte da superfície da Terra para debaixo de outra, e acreditamos que essa luta interna sob a superfície é fácil de identificar. Nos terramotos clássicos, podemos sentir o solo a tremer e a rachar sob os nossos pés, podemos ver a devastação da paisagem ou os tsunamis que se seguem.

    O que os cientistas só mais recentemente descobriram é que os terramotos mais familiares, aqueles que são facilmente medidos enquanto ocorrem e instantâneos na destruição que provocam, são muitas vezes precedidos de mais longas, lentas, disrupções catastróficas que ocorrem a mais de trinta quilómetros abaixo da crosta, demasiado profundas para serem sentidas e demasiado silenciosas para serem medidas ao longo da história humana. São tão potentes como aqueles que podemos ver e sentir, mas passam muito tempo sem ser detetados, pois crescem em silêncio, irreconhecíveis até que um grande terramoto as anuncia à superfície. Só recentemente os geofísicos passaram a dispor de tecnologia suficientemente sensível para detetar os movimentos ocultos mais profundos no centro da Terra. São chamados «terramotos silenciosos». E só recentemente as circunstâncias nos forçaram, nesta era atual de rutura humana, a procurar os movimentos escondidos do coração humano, a descobrir as origens do nosso descontentamento.

    À data das eleições americanas daquele ano fatídico, de volta ao extremo Norte do mundo, os siberianos estavam a tentar recuperar do calor que os atingira meses antes. Dezenas de pastores nativos tinham sido transferidos, alguns colocados em quarentena e com as tendas desinfetadas. As autoridades iniciaram a vacinação em massa dos pastores e das renas sobreviventes. Eles tinham estado anos e anos sem serem vacinados, pois o último surto dera-se muitas décadas antes e fora considerado um problema que ficara no passado. «Um erro claro», disse um biólogo russo a um site noticioso. As forças armadas tiveram de analisar a melhor forma de se desfazerem das duas mil renas mortas, de modo a evitar que os esporos se voltassem a espalhar. Não seria seguro limitarem-se a queimar as carcaças para se livrarem do patogénico. Era necessário incinerá-las em campos de combustão a uma temperatura de até quinhentos graus Celsius, e depois encharcar as cinzas e a terra à volta com água e lixívia para matar os esporos e proteger as pessoas.

    Acima de tudo, e de maneira mais alarmante para a humanidade de um modo geral, estava sóbria a mensagem de 2016 e do decurso da segunda década de um ainda novo milénio: o aumento do calor nos oceanos e no coração humano poderia reviver ameaças há muito enterradas, alguns patogénicos jamais poderiam ser mortos, só contidos, talvez, na melhor das hipóteses, controlados com vacinas em constante aperfeiçoamento contra as esperadas mutações.

    O que a humanidade aprendeu, acredita-se, foi que um vírus antigo e resistente exige, talvez acima de tudo, conhecimento acerca do seu sempre presente perigo, que se tomem medidas preventivas contra a exposição, que se alerte para o poder da sua longevidade, para a sua habilidade de mutação, para a sua capacidade para sobreviver e hibernar até ser despertado. Parecia que estes contágios não podiam ser, pelo menos ainda não, apenas controlados e antecipados, tal como qualquer outro vírus, e que a antecipação e a vigilância, a sabedoria de nunca dar a sua eliminação por garantida, de jamais subestimar a sua persistência, talvez sejam o antídoto mais eficiente, por agora.

    Os vitais da história

    Quando vamos ao médico, ele ou ela não irá começar o nosso tratamento sem ter em consideração o nosso histórico clínico — e não apenas o nosso, mas também o dos nossos pais e avós. O médico só nos atenderá depois de preenchermos várias folhas que recebemos ao chegar. O médico não arriscará qualquer diagnóstico até que ele ou ela saiba o histórico das gerações anteriores.

    Enquanto preenchemos os papéis sobre o nosso passado clínico e sobre as nossas queixas, aquilo a que os nossos corpos estiveram expostos e aquilo a que sobreviveram, de nada nos valerá fingir que uma certa enfermidade não nos magoou, ou negar as verdades completas que nos levaram até àquele momento. Muito poucos problemas terão sido resolvidos quando ignorados.

    Olhar para a história de um país é como descobrir que o alcoolismo ou a depressão são comuns na família, ou que o suicídio ocorre mais frequentemente do que o normal, ou, com os avanços da genética médica, descobrir que uma pessoa herdou marcadores de uma mutação no gene BRCA conducentes a cancro da mama. Não nos encolhemos num cantinho com sentimentos de culpa ou de vergonha a respeito destas descobertas. Não impedimos, se formos inteligentes, que sejam mencionadas. Na realidade, fazemos o oposto. Instruímo-nos. Conversamos com pessoas que passaram pela mesma situação e com especialistas que pesquisaram sobre o tema. Aprendemos as consequências e as dificuldades, as opções e os tratamentos. Podemos rezar e meditar sobre o assunto. Então, tomamos precauções para nos protegermos a nós e às gerações futuras, para que, sejam elas como forem, não volte a acontecer.

    capítulo dois

    Uma casa velha e uma luz infravermelha

    O inspetor apontou a sua lente infravermelha para um arco disforme no teto, um feixe de luz invisível vasculhando as camadas de ripas à procura do que os olhos não conseguiam ver. Esta casa tinha sido construída há várias gerações, e eu notara uma muito leve marca num canto do reboco de um quarto de hóspedes, à qual não dei importância. Com o passar do tempo, a marca no teto tornou-se uma onda que alargou e abaulou, apesar do telhado ser novo. Estava a formar-se há anos para lá de qualquer perceção. Uma casa velha tem a sua própria vida, uma tia viúva com uma história para dela se arrancar, um mistério, uma série de quebra-cabeças interligados a aguardar solução. Porque está esta viga enfiada no canto sudeste de um beiral? O que haverá atrás deste pedaço de tijolo descolorido? Numa casa velha, o trabalho nunca está feito, e nunca se espera que esteja.

    A América é uma casa velha. Nunca podemos declarar o trabalho como encerrado. Ventos, inundações, secas e convulsões humanas desgastam uma estrutura que já enfrenta todas as eventuais falhas deixadas sem supervisão aquando da fundação original. Quando se mora numa casa velha, muitas vezes nem se quer ir à cave depois de uma tempestade para verificar se houve algum dano. Escolher não olhar, no entanto, fica por nossa conta e risco. O dono de uma casa velha sabe que tudo aquilo que ignora não irá desaparecer. O que quer que esteja à espreita, vai aparecer, quer se escolha olhar ou não. A ignorância não oferece proteção contra as consequências da inação. Aquilo que desejamos que desapareça vai continuar a incomodar-nos até que reunamos coragem para o encarar.

    Nós, no mundo desenvolvido, somos como donos de uma casa herdada, linda por fora, mas construída num solo instável de argila e pedra, oscilando e contraindo-se ao longo de gerações, com rachas que vão sendo reparadas, mas com fissuras muito mais profundas que se vão alongando por décadas, até por séculos. Muita gente pode dizer, e com toda a razão: «Eu não tenho que ver com a forma como tudo isto começou. Nada tenho que ver com os pecados do passado. Os meus antepassados nunca atacaram povos indígenas, nunca tiveram escravos.» Sim. Nenhum de nós estava cá quando esta casa foi construída. Os nossos antepassados mais próximos talvez não tenham que ver com isto, mas aqui estamos nós, os ocupantes atuais de uma propriedade com rachas causadas pela erosão, com paredes abauladas e fissuras na própria fundação. Nós somos os herdeiros de tudo o que há de certo ou de errado nesta casa. Não fomos nós que erguemos as vigas e os pilares tortos, mas agora são nossos e temos de lidar com eles.

    E qualquer deterioração futura está, de facto, nas nossas mãos.

    Se não forem resolvidas, as fendas e rachas diagonais não irão consertar-se sozinhas. As toxinas não irão desaparecer; antes pelo contrário, irão espalhar-se, infiltrar-se, sofrer mutações, tal como já fizeram.

    Quando as pessoas moram numa casa velha, acabam por adaptar-se às idiossincrasias e aos notórios perigos inerentes a uma estrutura envelhecida. Colocam baldes sob o teto que pinga, arranjam o soalho que range, aprendem a evitar aquele degrau da escada que está meio apodrecido. O estranho torna-se aceitável e o inaceitável torna-se apenas inconveniente. Vivendo com isso o tempo suficiente, o impensável torna-se normal. Expostos a isso ao longo de gerações, começamos a acreditar que o incompreensível é a forma como a vida deve ser.

    ———

    O inspetor estava virado para o mistério do teto deformado, e portanto colocou primeiro um sensor na superfície, para verificar se esta estava húmida. Como o resultado foi inconclusivo, puxou então da câmara de infravermelhos para tirar uma espécie de raio-X ao que estava a acontecer, fiel à ideia de que não se pode resolver um problema até que se consiga vê-lo. Agora ele já podia ver através do reboco, por trás do que antes fora papel de parede ou do que tinha sido pintado por cima, como agora nos dizem para fazer na casa em que todos moramos, para examinar uma estrutura construída há muito tempo.

    Como acontece noutras casas velhas, a América tem um esqueleto que não se vê, um sistema de castas que é central para o seu funcionamento e que funciona como vigas e juntas que não vemos nas construções físicas a que chamamos casas. A casta é a infraestrutura das nossas divisões. A casta é a arquitetura da hierarquia humana, o código de instruções subconsciente para manter, no nosso caso, uma ordem social de quatrocentos anos. Olhar para a casta é como erguer para uma luz o raio-X do país.

    Um sistema de castas é uma construção artificial, um ranking fixo e enraizado do valor humano que estabelece a presumível supremacia de um grupo contra a presumível inferioridade de outros com base na ancestralidade e em traços inalteráveis, traços que seriam neutros num plano abstrato, mas que adquirem um significado de vida ou morte numa hierarquia que favorece a casta dominante já anteriormente concebida. Um sistema de castas usa fronteiras rígidas, muitas vezes arbitrárias, para preservar a separação dos grupos, distintos uns dos outros e nos seus respetivos lugares.

    Ao longo da história da humanidade, sobressaíram três sistemas de castas. O tragicamente acelerado, arrepiante, e oficialmente vencido sistema de castas da Alemanha nazi. O durador, ao longo de milénios, sistema de castas da Índia. E um que muda de forma, despercebido, baseado numa pirâmide racial, que é o dos Estados Unidos. Cada versão assentou na estigmatização daqueles que são considerados inferiores para justificar a desumanização necessária para manter as pessoas dos patamares inferiores e para racionalizar os protocolos dessa imposição. Um sistema de castas perdura porque é muitas vezes justificado como uma vontade divina, originária de um texto sagrado ou das presumíveis leis da natureza, reforçado pela cultura e legado de umas gerações para outras.

    Nas nossas rotinas diárias, a casta é como uma sala de cinema escura na qual entramos silenciosamente, com o empregado a usar uma lanterna cujo foco de luz nos vai conduzindo ao nosso lugar para que possamos ver o filme. A hierarquia de castas não tem que ver com sentimentos ou com moralidade. Tem que ver com poder — que grupos o detêm e quais não. Tem que ver recursos — que casta é vista como merecedora desses recursos e qual não, quem tem o direito de adquiri-los e de os controlar, e quem não. Tem que ver com respeito, com autoridade, e com assunções de competências — a quem são ou não concedidas.

    Como meio de distribuir valor a secções inteiras da humanidade, a casta serve de guia para cada um de nós, muitas vezes para lá do alcance da nossa consciência. Enraíza nos nossos ossos um ranking inconsciente de características humanas e define as regras, as expetativas, e usa estereótipos que têm sido usados para justificar brutalidades contra grupos inteiros dentro da nossa espécie. No sistema de castas americano, o sinal indicador do ranking é aquilo a que chamamos raça, a divisão de humanos com base na aparência. Na América, a raça é a ferramenta primária e o isco visível, o rosto, para a casta.

    A raça faz o trabalho pesado para um sistema de castas que exige uma divisão humana. Se tivermos sido treinados para ver os humanos através de uma linguagem de raça, a casta é a gramática subjacente cujo código assimilamos desde crianças, tal como quando aprendemos a nossa língua materna. A casta, tal como a gramática, torna-se um guia invisível não apenas para a forma como falamos, mas igualmente para o modo como processamos as informações, os cálculos automáticos que fazemos por reflexo e que compõem uma frase que dizemos sem pensar nela. Muitos de nós nunca tiveram uma aula de gramática, mas ainda assim sabemos no nosso íntimo que um verbo transitivo pede um objeto, que um sujeito precisa de um predicado; sabemos, sem precisar de pensar, a diferença entre a terceira pessoa do singular e a terceira do plural. Podemos dizer «raça» quando nos estamos a referir a pessoas negras, brancas, latinas, asiáticas ou indígenas, contudo, o que está subjacente a cada um destes rótulos são séculos de história e de atribuição de premissas e valores a características físicas numa estrutura de hierarquia humana.

    A aparência das pessoas, ou, antes, a raça que lhes foi atribuída ou à qual lhes foi dito que pertencem, é a pista visível da respetiva casta. É o cartão de memória histórica para o público, o que indica como devem ser tratadas, onde é esperado que morem, que tipo de cargos é esperado que ocupem, se devem pertencer a esta secção ou a outra ou em que lugar devem sentar-se na sala de reuniões da direção, se é esperado que falem com conhecimento de causa sobre este ou aquele assunto, se lhes deve ou não ser administrado um determinado analgésico no hospital, se o bairro onde vivem será ou não, provavelmente, uma área de despejo de resíduos tóxicos ou se devem ou não ter água contaminada a sair das torneiras das casas, se têm ou não uma maior probabilidade de sobreviver ao parto na nação mais avançada do mundo, se podem ou não ser impunemente alvejados pelas autoridades.

    Sabemos que as letras do alfabeto são neutras e que só têm sentido uma vez combinadas para formar uma palavra, que, por sua vez, não tem ela própria qualquer significado até que seja inserida numa frase e interpretada por quem fala. Da mesma forma, negro e branco foram aplicados a pessoas que literalmente não eram nem uma coisa nem outra, antes gradações de castanho e bege e marfim, o sistema de castas dispõe as pessoas em polos distintos e cola significados aos extremos e às gradações intermediárias, e então reforça esses significados, replicando-os nos papéis que eram e são atribuídos, autorizados e exigidos a cada casta.

    Casta e raça não são sinónimos nem mutuamente eliminatórios.

    Podem coexistir e coexistem, de facto, na mesma cultura, e servem para que uma e outra se reforcem. A raça, nos Estados Unidos, é o agente visível da força invisível da casta. A casta são os ossos, a raça é a pele. A raça é o que podemos ver, as características físicas às quais foram dados significados arbitrários e que se transformaram numa espécie de resumo do que uma pessoa é. A casta é a poderosa infraestrutura que mantém cada grupo no seu lugar.

    A casta é fixa e rígida. A raça é fluida e superficial, sujeita a redefinições periódicas que vão ao encontro das necessidades da casta dominante no que são hoje os Estados Unidos. Enquanto os requisitos para se qualificar alguém como branco se foram alterando ao longo dos séculos, uma casta dominante mantém-se desde o seu começo — a quem quer que servisse a definição de branco, em qualquer ponto da história, era concedido o direito legal e o privilégio da casta dominante. De modo talvez mais crítico e mais trágico, no outro extremo, também a casta se fixou desde o início como o chão psicológico abaixo do qual nenhuma outra casta pode cair.

    Dessa forma, todos nascemos dentro de um silencioso jogo de guerra com séculos, em equipas que não escolhemos. O lado no qual somos colocados no sistema americano de classificação de pessoas é determinado pelo equipamento da equipa que cada casta enverga, sinalizando o nosso esperado valor e potencial. Que alguns de nós consigam criar ligações estáveis através destas linhas divisórias inventadas é um atestado da beleza do espírito humano.

    O uso de características físicas hereditárias para diferenciar capacidades inatas e valor de grupo talvez seja o meio mais inventivo alguma vez já criado por uma cultura para gerir e manter um sistema de castas.

    «Enquanto divisão social e humana», escreveu o cientista político Andrew Hacker a respeito da utilização de traços físicos para formar categorias humanas, «ultrapassa todas as outras — inclusive o género — em intensidade e subordinação.»

    capítulo três

    Um americano intocável

    No inverno de 1959, depois de liderar o boicote de Montgomery aos autocarros, que resultou da prisão de Rosa Parks, e antes dos julgamentos e das vitórias que iriam chegar, Martin Luther King Jr. e a sua mulher, Coretta, chegaram à Índia, à cidade então conhecida como Bombaim, para visitar a terra de Mohandas Gandhi, o pai do protesto não violento. Foram cobertos de guirlandas floridas à chegada, e King disse aos jornalistas: «A outros países, eu posso ir como turista, mas à Índia venho como peregrino.»

    Há muito que ele sonhava em ir à Índia, e por lá o casal ficou um mês inteiro, a convite do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru. King queria ver pessoalmente o local cuja luta pela libertação do domínio britânico inspirara a sua luta pela justiça na América. Ele queria ver os chamados «intocáveis», a casta mais baixa no antigo sistema de castas indiano, sobre os quais ele lera, e com os quais simpatizara, que ainda tinham ficado para trás após a independência da Índia na década anterior.

    King descobriu que as pessoas na Índia tinham andado a acompanhar os julgamentos das pessoas oprimidas na América, sabiam do boicote aos autocarros que ele liderara. Aonde quer que ele fosse, as pessoas nas ruas de Bombaim e Nova Deli aglomeravam-se à sua volta e pediam-lhe autógrafos.

    Certa tarde, King e a mulher viajaram até o extremo sul do país, até à cidade Trivandrum, no estado de Kerala, e visitaram uma escola do ensino secundário na qual os estudantes eram de famílias que tinham sido intocáveis. O diretor da escola fez a introdução.

    «Jovens», disse ele, «quero apresentar-vos um companheiro intocável que vem dos Estados Unidos da América.»

    King ficou espantado. Ele não esperava que aquele termo lhe fosse aplicado. De início ele ficou, na verdade, admirado. Ele chegara de avião vindo de um outro continente, jantara com o primeiro-ministro. Ele não via a conexão, não via o que o sistema de castas indiano tinha que ver diretamente com ele, não conseguia ver imediatamente a razão pela qual as pessoas mais desfavorecidas da Índia o tratavam a ele, um negro americano e ilustre visitante, como alguém de uma casta inferior, como a deles, visto como um deles. «Por momentos», escreveu ele, «fiquei um pouco chocado e chateado por se referirem a mim como um intocável.»

    Então, começou a pensar sobre a realidade das vidas daqueles pelos quais andava a lutar — 20 milhões de pessoas, há séculos relegadas para o ranking mais baixo da América, «ainda a sufocar numa asfixiante jaula de pobreza», em quarentena em guetos isolados, exiladas no seu próprio país.

    E disse para si mesmo: «Sim, sou um intocável, e todos os negros nos Estados Unidos da América são intocáveis.»

    Naquele momento, ele entendeu que a Terra dos Livres impusera um sistema de castas que não era diferente do sistema de castas da Índia e que ele vivera toda a sua vida sob esse sistema. Era isso que estava subjacente ao que ele combatia na América.

    ———

    O que Martin Luther King Jr. reconheceu acerca do seu país, naquele dia, começara muito antes de os antepassados dos seus antepassados terem começado a respirar. Mais de um século e meio antes da Revolução Americana, uma hierarquia humana evoluiu no muito disputado solo que viria a tornar-se os Estados Unidos, um conceito de direito de nascença, a tentação de uma legítima expansão que colocaria em marcha a primeira democracia do mundo e, com ela, um ranking de uso e valor humano.

    Tal distorceria as mentes dos homens quando a ganância e a autorreverência eclipsassem a consciência humana a fim de tomar a terra e os corpos humanos que os conquistadores se tinham considerado no direito de fazer. Se queriam converter aquela terra selvagem e civilizá-la a gosto, decidiram que teriam de conquistar, escravizar ou remover as pessoas que já lá estavam, e transportar de um lado para o outro aquelas que consideravam seres inferiores, para que desbravassem e trabalhassem a terra, para que extraíssem as riquezas que havia naqueles solos e linhas costeiras.

    Para justificarem os seus planos, socorreram-se de noções preexistentes acerca da sua própria importância central, reforçadas pela interpretação própria da Bíblia que lhes satisfazia os interesses, e criaram uma hierarquia acerca de quem podia fazer o quê, de quem podia ter o quê, de quem estava em cima e de quem estava em baixo e de quem estava no meio. Surgiu, então, uma escadaria de humanidade, de natureza global, na qual as pessoas do escalão superior desciam da Europa em diferentes graus, estando os protestantes ingleses no degrau mais elevado, uma vez que as suas armas e recursos prevaleceriam na luta sangrenta

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