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Rumor público: polêmica e fórmula discursiva
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E-book378 páginas4 horas

Rumor público: polêmica e fórmula discursiva

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Sobre este e-book

Esta obra se dedica ao estudo de um fenômeno linguístico-discursivo que tem despertado cada vez mais interesse nos campos da comunicação, da história, da educação, das ciências sociais e dos estudos da linguagem: a fórmula discursiva. Mais do que explorar os sentidos de expressões como "ditadura da beleza", "complexo de vira-latas", "ideologia de gênero", "transparência", "flexibilização", "isolamento social", entre outras, os trabalhos que compõem esta coletânea tratam de mecanismos relacionados à construção da opinião pública, sempre no cerne do microuniverso discursivo arquitetado pelo fenômeno formulaico, e este é um ponto que vale a pena ressaltar: a noção de fórmula representa e operacionaliza um método para se estudar o rumor público, trabalho dos mais essenciais, se não urgentes, nos tempos de instabilidade ético-política em que vivemos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de nov. de 2021
ISBN9786586268164
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    Rumor público - Tradição Planalto

    Sumário

    Apresentação

    Capítulo I

    Fórmulas discursivas: um roteiro de pesquisa

    Hélio Oliveira

    Capítulo II

    Emergência da fórmula flexibilização: gênese e desdobramentos

    Adriana Aparecida Quartarolla

    Sírio Possenti

    Capítulo III

    Transparência: uma fórmula do neoliberalismo

    Luciana Salazar Salgado

    Livia Beatriz Damaceno

    Capítulo IV

    Que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental: notas em torno da fórmula ditadura da beleza

    Ana Carolina Vilela-Ardenghi

    Bruna Passanezi Budoia

    Capítulo V

    Ideologia de gênero e caráter acontecimental da fórmula

    Edvania Gomes da Silva

    Amanda Vanele Prates Domingues

    Beatriz Rocha de Oliveira

    Capítulo VI

    Gestão da autoria e mediação editorial na consagração da fórmula discursiva: o caso de complexo de vira-latas

    João Thiago Monezi Paulino da Silva

    Capítulo VII

    A fórmula educação para o trabalho: genealogia de uma evidência

    Eduardo Marchesan

    Capítulo VIII

    Isolamento social em tempos de coronavírus: uma fórmula discursiva?

    Glaucia Muniz Proença Lara

    Alessandra Folha Mós Landim

    Capítulo IX

    Nos limiares da Análise do discurso e da Semiótica: um olhar sobre a fórmula desenvolvimento sustentável

    Norma Discini

    Julia Lourenço Costa

    Organizadores

    Demais autores

    Apresentação

    Em 2020, completou-se uma década da tradução brasileira de La notion de formule en analyse du discours - cadre théorique et méthodologique (Krieg-Planque, [2009] 2010) empreendida por Sírio Possenti e Luciana Salazar Salgado no âmbito dos trabalhos desenvolvidos no centro de pesquisas Fórmulas e Estereótipos: Teoria e Análise, sediado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-UNICAMP), em Campinas, SP. Desde essa tradução, diversas incursões pelo fascinante universo das fórmulas discursivas foram trilhadas aqui no país, dando origem a muitas teses, dissertações e artigos científicos, fazendo avançar os estudos sobre esse tema, em território nacional.

    Um fator que pode explicar o crescente interesse pela noção de fórmula discursiva é o seu caráter transdisciplinar, o que a faz transitar de contextos mais próximos da linguística, como estudos de argumentação (Amossy, 2018), de lexicologia e linguística de corpus (Berber Sardinha, 2012), até discussões na esfera dos filósofos e dos historiadores (Ledoux, 2016). Nos trabalhos que compõem a coletânea ora apresentada, o poder heurístico da fórmula abrange mecanismos relacionados à construção da opinião pública e às disputas por poder e influência, sempre no cerne do microuniverso discursivo arquitetado pelo fenômeno formulaico.

    Analisar uma fórmula discursiva permite explorar variadas e acaloradas polêmicas, enredando-se no rumor público¹ que ela, inclusive, ajuda a produzir. Esse rumor corresponde à multidão de dizeres ora amistosos e harmônicos, ora heterogêneos e conflituosos, por meio dos quais os discursos se movem, procurando alianças ou enfrentando ameaças. A fórmula se torna, então, uma das faíscas – a principal delas, em alguns casos – que inflamam discussões e polêmicas, em um dado espaço público, ou seja, ela é um agente de rumor público.

    Evitando traçar um itinerário de leitura – o sumário é suficiente para revelar a diversidade temática coberta pelos autores e suas pesquisas –, assinalamos que descrever aspectos da gênese e do funcionamento de uma fórmula serviria como parte importante da resposta à pergunta suscitada por Foucault (2002), a propósito do caráter acontecimental dos discursos: Por que apareceu este enunciado e não outro em seu lugar? Em outras palavras, mais do que entender o que (e para quem) significa, por exemplo, ideologia de gênero, ditadura da beleza e educação para o trabalho, é preciso dirigir o olhar para as razões sócio-históricas que levaram ao surgimento dessas formulações e as alçaram ao estatuto de referente social, fazendo-as circular por páginas de jornais, blogs, redes sociais, decretos, leis, em conversas de bar, em púlpitos, em palanques eleitorais, enfim, tornando-as objeto de encontro e confronto de discursos.

    Cada análise, a seu modo, contribui para o avanço de pesquisas sobre o ponto de contato, representado pelas fórmulas discursivas, entre análise do discurso, linguística e estudos da comunicação, embora reste ainda muito a se dizer sobre a natureza peculiar dessas formulações carregadas de sentidos.

    Esperamos que os textos aqui reunidos, portanto, estimulem mais leituras e mais trabalhos sobre as fórmulas e sobre o rumor público que elas produzem. Acima de tudo, desejamos que estes trabalhos contribuam para uma melhor compreensão do papel dos discursos na construção – e na destruição – daquilo que se denomina verdade, constantemente posta em xeque, nos tempos em que vivemos.

    Os organizadores

    Referências

    AMOSSY, R. Une formule dans la guerre des mots: la délégitimation d’Israel. Paris: Garnier, 2018.

    BERBER SARDINHA, T. Fórmulas discursivas e linguística de corpus. In: In: BRAIT e SOUZA-E-SILVA (org) Texto ou discurso? São Paulo: Contexto, 2012.

    FOUCALT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

    KRIEG-PLANQUE, A. A noção de fórmula em Análise do Discurso: quadro teórico e metodológico. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

    LEDOUX, S. Le devoir de mémoire : une formule et son histoire. Paris: CNRS Editions, 2016.

    MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola, 2008.

    SALGADO, L. S. A dimensão algorítmica do rumor público e o viver na pandemia. In: MOTA, André. Sobre a pandemia: experiências, tempos & reflexões. São Paulo: Hucitec, 2020.

    ZOPPI-FONTANA, M. Pós-verdade e enunciação política: entre a mentira e o rumor. In: CURCINO, L.; SARGENTINI, V. e PIOVEZANI, C. (orgs). Discurso e pós-verdade. São Paulo: Parábola, 2021, p. 87-104.

    A expressão rumor público aparece em Gênese dos discursos, de Dominique Maingueneau ([1985] 2008, p. 43), sem pretensões de conceituação teórica. Na p. 177, mais uma vez en passant, o autor menciona o rumor intenso dos enunciados já proferidos dos quais o discurso se alimenta, de modo genérico, mas nem por isso menos instigante. Salgado (2020) também recorre à expressão, para abordar a discursivização do sintagma viver na pandemia em meio às injunções dos algoritmos na circulação de dizeres nas redes sociais. Em outra perspectiva, abordando a circulação geral de discursos, Orlandi (apud Zoppi-Fontana, 2021) trata como rumor determinados efeitos do Twitter.

    Capítulo I

    Fórmulas discursivas: um roteiro de pesquisa

    Hélio Oliveira

    Algumas dificuldades, a princípio

    Uma rápida pesquisa em repositórios de artigos científicos, recorrendo à expressão fórmula discursiva, é suficiente para comprovar a diversidade de trabalhos produzidos a propósito desse tema, inclusive em campos fora da linguística e da análise do discurso (doravante AD).

    No que diz respeito à etapa inicial de constituição dos corpora de pesquisa, muitos estudos que tomam essa noção como base teórico-metodológica parecem demonstrar preocupação um tanto excessiva em quantificar as ocorrências da fórmula, bem como em explicitar esse fato na escrita do trabalho, como se a relevância daquele termo ou sintagma específico dependesse primordialmente de sua incidência massiva em diferenciados textos e plataformas de comunicação. Pautar-se pelos índices quantitativos pode levar o pesquisador a prematuramente eleger ou descartar um termo como candidato ao estatuto formulaico.

    Algumas dificuldades em mapear o espectro numérico de circulação de um dado termo podem ser resumidas nos seguintes fatos: primeiro, a dificuldade de programas e dispositivos de busca identificarem reformulações e variantes de uma fórmula que não sejam estruturalmente idênticas ao termo pesquisado, uma vez que os softwares lexicais por si só não dão conta de todas as nuances da produção dos sentidos, tendo restrições inerentes a toda análise automatizada (BOSCHI, 2014, p. 45). Além disso, a restrição de documentos na internet – acesso restrito a assinantes – dificulta o acesso ao monitoramento da circulação de um sintagma [específico] (SILVA, 2019, p. 26), dificuldade também apontada por Quartarolla (2017, p.16).

    Ainda que houvesse acesso irrestrito a todas as aparições de uma expressão, problemas adicionais, muito semelhantes em sua natureza, são: o aumento da incidência de uma palavra não significa que ela seja fórmula; nem todas as ocorrências de uma mesma formulação, mesmo que linguisticamente idêntica a uma determinada fórmula em estudo, são ocorrências da fórmula com a qual essa formulação se parece.

    Sobre o primeiro item, o aumento significativo de um termo, Krieg-Planque (2010, p. 93) cita o caso da aparição massiva, na imprensa francesa, da palavra avalanche nas semanas que se seguiram a uma catástrofe natural, envolvendo um grande deslizamento de neve, numa estação de esqui nos Alpes, e que ocasionou várias mortes: o aumento da frequência do termo avalanche resultou de um acontecimento de ordem mundana, ordinário – embora terrível –, mas não foi sintoma de um acontecimento discursivo, no sentido compreendido pela problemática da fórmula. Sobre o segundo item, o fato de nem todas as ocorrências de uma expressão idêntica à fórmula corresponderem à fórmula, a mesma autora cita o caso das ocorrências de limpeza total, que é considerada uma fórmula quando aparece relacionada às mortes étnicas nas guerras iugoslavas dos anos de 1990, mas é entendida como uma expressão comum, não-formulaica, quando aparece em outros contextos, por exemplo, em anúncios publicitários de lavanderias e, portanto, muitas ocorrências da expressão limpeza total não podem ser contadas no total de incidência da fórmula limpeza total, que, por sua vez, é uma variante da fórmula limpeza étnica (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 30).

    Essas dificuldades, todavia, não podem ser impeditivas para analisar discursivamente uma palavra ou expressão. A circulação de uma fórmula por variadas instâncias do espaço social, de fato, é um elemento importante sobre seu funcionamento, e não se nega a relevância desse aspecto. O que se propõe neste capítulo é um viés alternativo, qualitativo, que dê relevo aos aspectos discursivos, ou seja, aos traços e propriedades constitutivas da fórmula.

    Esse objetivo se materializa em um roteiro de pesquisa concebido como uma espécie de check-list das características da fórmula, condensadas na forma de uma tabela com expressões-chave a serem digitadas em buscadores digitais, de modo a priorizar a função (e não a mera presença/quantidade) do sintagma pesquisado naquele texto ou excerto de texto específico. Cada um dos itens dessa tabela é apresentado no que diz respeito à sua aplicabilidade teórica e ilustrado com exemplos de materiais coletados a propósito das possíveis fórmulas ideologia de gênero e cultura do estupro – a segunda, inclusive, parece funcionar como um hipônimo da primeira, que seria o hiperônimo a partir do qual várias questões relativas ao feminismo (entre outros aspectos ligados às discussões sobre gênero) são postas em cena; essa hipótese, entretanto, não será investigada no trabalho ora apresentado.

    Cabe esclarecer, então, que não se encontrará neste capítulo a análise de uma fórmula particular, mas, sim, uma proposta metodológica para futuras análises de fórmulas, embasada no próprio arcabouço teórico representado pelos trabalhos de Krieg-Planque e de Ebel e Fiala, aqui organizado e materializado em um roteiro de critérios que orientam a coleta e análise inicial de dados.

    O percurso: uma unidade não-tópica

    As pesquisas com fórmulas partem de certas hipóteses do pesquisador em relação a uma determinada palavra ou expressão que parece se comportar de maneira mais ativa do que uma unidade lexical comum, produzindo uma espécie de ruído que as teorias da comunicação identificam como o fenômeno responsável pelas buzzwords, e que a AD define como um lugar sócio-histórico-discursivo privilegiado para compreender como os diversos atores sociais organizam, por meio dos discursos, as relações de poder e de opinião (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 9), uma vez que essa palavra-termo-nominalização-sintagma sintetiza e cristaliza questões sociopolíticas em uma determinada época e em um determinado espaço público (2010, p. 61). Por essas razões, a fórmula é frequentemente enunciada, retomada, reformulada e até recusada.

    Em face dessa problemática, circunscrever, descrever e analisar uma fórmula discursiva significa mobilizar conceitos que se apresentam, simultaneamente, como abstração teórica que fundamenta a análise e como prática metodológica que direciona e delimita a coleta e o tratamento dos dados. Ao elencar as propriedades das fórmulas, Krieg-Planque afirma que esses traços

    determinam certas tomadas de posição no método de apreensão do objeto, tanto do ponto de vista da construção do corpus (...), quanto no que diz respeito às orientações metodológicas e às restrições que pesam sobre o estudo de uma fórmula (2010, p. 61).

    Conhecer cada uma dessas propriedades implica seguir o traçado desenhado pelo método, sob o risco de perder de vista o objeto, em meio à grande quantidade de material coletado e à correspondente variedade de discursos que o atravessam. Por essa razão, partindo de categorias mais abrangentes para chegar às mais específicas, é necessário identificar o tipo de unidade de análise a que recorrem as pesquisas sobre essa temática.

    A circulação de uma determinada palavra pelo universo discursivo compõe um percurso, e este, por sua vez, corresponde a uma unidade não-tópica. A partir da reflexão sobre a natureza e a diversidade das unidades reivindicadas atualmente pelos analistas do discurso, Maingueneau (2015) distingue dois grandes tipos de unidades: as unidades tópicas e as unidades não-tópicas. Para esse autor, enquanto as primeiras correspondem a espaços já predelineados pelas práticas verbais (situam-se no prolongamento de categorias percebidas empiricamente pelos atores sociais, como os gêneros discursivos, embora não necessariamente coincidam com essas categorias, como o telejornal, a consulta médica, a reunião do conselho administrativo...), as segundas são construídas pelos pesquisadores independentemente de fronteiras pré-estabelecidas (2015, p. 66), ainda que não deixem de agrupar enunciados profundamente inscritos na história (exemplos de unidades não-tópicas são as formações discursivas – unifocais ou plurifocais –, os percursos – formados por fórmulas ou pequenas-frases – e os registros – linguísticos, como argumentação, descrição, narração; ou comunicacionais, como o didático, o cômico, o polêmico).

    Ao compor seu percurso, uma fórmula vai deixando pistas, rastros de sua participação ativa nas discussões que suscita, circulando por campos discursivos distintos. Nesse sentido, o procedimento de constituição de corpus visa reunir materiais heterogêneos em torno de um significante de dimensão variável, não para construir um conjunto unificado por uma temática, mas para analisar uma circulação, uma dispersão, tal como o concebe Maingueneau (2015, p. 95). Segundo o analista de discurso, não se trata de procurar o verdadeiro sentido de uma formulação, mas de explorar suas retomadas, reformulações e transformações no fio dos discursos. Em consequência, prioriza-se a heterogeneidade de materiais textuais e de suas fontes, em detrimento da análise de apenas um conjunto de textos do mesmo gênero².

    Assim, nessa abordagem típica dos percursos, além de se examinar os enunciados em artigos de opinião, notícias e editoriais, a análise se enriqueceria se fossem considerados, também, a sessão de carta do leitor (nas versões impressas dos jornais e revistas) e os comentários (nas versões on-line dessas publicações), além de publicações em blogs pessoais, redes sociais etc., que incluem textos multimodais como memes, fotos, charges entre outros. Possenti (2013) assinala que os comentários dos leitores, por exemplo, propiciam a ocorrência de enunciados bastante marcados, além da presença de estereótipos com fortes características de simulacros (2013, p. 140), o que permite trazer à tona as contradições dos discursos polêmicos, além de explicitar a variedade de temas que a fórmula evoca em suas aparições – todos aspectos bastante característicos das unidades não-tópicas, especialmente no caso dos percursos.

    Há, entretanto, uma ressalva feita por Maingueneau: não se pode exagerar na distância entre as unidades tópicas e não-tópicas. Mesmo que as unidades tópicas apresentem contornos pré-estabelecidos, colocam ao pesquisador múltiplos problemas de delimitação, como geralmente acontece nas ciências humanas e sociais; problemas de outra ordem também vão aparecer nos trabalhos com as unidades não-tópicas. É por isso que unidades como os percursos podem suscitar reações diversas entre pesquisadores: seria tentador atravessar múltiplas fronteiras, fazendo aparecer relações invisíveis entre os discursos, mas, por outro lado, haveria o perigo de a análise sucumbir à subjetividade do analista. Com efeito, o autor aponta:

    Os partidários das fronteiras têm bons argumentos para sublinhar os riscos ligados ao uso das unidades não-tópicas; por outro lado, os partidários das unidades não-tópicas podem também com facilidade mostrar que uma infinidade de relações interdiscursivas atravessa as unidades mais tópicas, e que a sociedade está permeada de conjuntos de palavras que, embora não tenham um lugar determinado, são mobilizadoras: o sentido é fronteira e subversão da fronteira, negociação entre pontos de estabilização e forças que excedem toda localidade (MAINGUENEAU, 2008a, p. 25).

    O pesquisador que lida com unidades não-tópicas se depara, então, com a construção de corpora extremamente heterogêneos. Ele deve estar ciente, todavia, de que a constituição de uma unidade não-tópica não é aleatória, já que os próprios enunciados que a constituem não acontecem desvinculados de seu tempo, ou seja, fazem parte da história. Dessa forma, a heterogeneidade converge para a unidade à medida que o pesquisador põe em prática (testa) suas hipóteses (que, a essa altura, devem ser historicamente contextualizadas na análise do corpus), num constante jogo de esboçar fronteiras para, logo em seguida, subvertê-las. A ideia de unidade, em AD, não implica necessariamente coerência; muito pelo contrário, deve implicar contradições (MUSSALIM, 2008, p. 100).

    O interpretante razoável: no limite da intuição

    De modo mais pormenorizado, serão considerados, agora, os procedimentos de busca na web, em relação à figura do interpretante razoável, proposto por Krieg-Planque.

    Existem ferramentas bastante específicas para esse fim, como o LNEWS, desenvolvido pelo LABCOM, na Universidade Federal do Maranhão, além de outros softwares de tratamento de corpora extensos (Léxico 3, AntConc, Textopol etc.), que podem ser mobilizados em uma etapa posterior de composição e filtragem de um corpus, a depender dos interesses da pesquisa. Um exemplo desse tipo de trabalho pode ser encontrado em Berber Sardinha (2012), para quem "a linguística de corpus pode oferecer subsídios para a análise do discurso, em geral, e para o estudo de fórmulas discursivas, em particular" (p. 297). Há, também, ferramentas menos específicas, do ponto de vista acadêmico, mas que podem fornecer dados úteis para o analista de discurso, em alguns contextos de trabalho. Destacam-se a plataforma do Sketch Engine, que dispõe de um corpus gigantesco, em mais de noventa idiomas, e se apresenta como a melhor ferramenta para explorar como o idioma funciona em situações autênticas de interação, por meio de algoritmos que analisam textos buscando identificar o que é típico na linguagem e o que é raro, incomum ou emergente³ e outros indicadores quantitativos como os trending topics, no Twitter e o google trends, do Google.

    A proposta deste capítulo, entretanto, se vale de uma ferramenta digital bem popular, o buscador tradicional do Google, tendo em vista que a contribuição ora apresentada se destina tanto a pesquisas em etapa inicial de constituição de corpus (quando ainda não existe material suficiente a ser tratado pelos softwares específicos) quanto à divulgação do trabalho com fórmulas para pesquisadores de várias áreas, inclusive fora da linguística, aspectos que parecem justificar a utilização de buscadores digitais acessíveis ao público em geral. O imprescindível nessa empreitada, como se verá, é o papel do analista, enquanto instância interpretante, em lidar com o processo de coleta e organização do material. Krieg-Planque sintetiza essa preocupação ao perguntar: Como não se sentir limitado a um funcionamento de computador e, então, entregar-se a uma hermenêutica livre? (2011a, p. 29).

    Mecanismos de busca textual e imagética na web, conhecidos como motores de busca (do inglês, search engine) ou, simplesmente, buscadores, têm sido utilizados na pesquisa de dados e coleta de material a propósito das fórmulas, conforme se observa em Oliveira (2013), Boschi (2014) e Belo (2017), à guisa de exemplo. Google, Bing, Yahoo e Duckduckgo são os mais utilizados nas Américas, enquanto o Yandex é o favorito na Rússia, o Naver, na Coreia do Sul e o Baidu, na China ⁴ – esse último já está disponível também no Brasil.

    A confiabilidade dos resultados dos buscadores digitais em pesquisas de uma unidade lexical é um tema frequentemente discutido. Não nos deteremos nas críticas direcionadas às empresas responsáveis pelos grandes buscadores, como, por exemplo, a acusação de veiculação prioritária de conteúdos pagos na lista de resultados, em detrimento de conteúdos gratuitos, a famigerada customização dos usuários por meio de algoritmos que filtram os resultados de acordo com as preferências e pesquisas prévias daquele usuário específico⁵ (o que esbarra em questões relativas à privacidade na web e ao compartilhamento de dados pessoais) e até mesmo o monopólio comercial e o enriquecimento ilícito relacionado a gigantes como Google e Facebook (WU, 2012).

    Este trabalho parte da concepção segundo a qual a metodologia embasada em preceitos teóricos deve nortear o uso que se pode fazer dos buscadores e não vice-versa. A noção de interpretante razoável considerada a seguir parece ser suficiente para esclarecer esse aspecto. De qualquer forma, concordamos com a asserção de Cassar (apud FRAGOSO, 2014) a respeito dos vários tipos de usuários e várias técnicas utilizadas para encontrar informações na web, e a tomamos como uma das justificativas para a presença dessas ferramentas virtuais na pesquisa: "Não importa se este comportamento é motivado por ignorância ou destreza, o resultado final é o mesmo: a ferramenta de busca será sempre o ponto focal da experiência online para todos os tipos de usuários da internet" (2014, p. 164).

    Atualmente, os programas de busca disponibilizam interfaces altamente sofisticadas e capazes de grande refinamento em pesquisas, que envolvem buscas desde uma única palavra, até frases e slogans. Um benefício adicional é o fato de que as grandes revistas impressas e os grandes jornais do país estão digitalizando e disponibilizando seus conteúdos – inclusive edições antigas – na web, alguns gratuitamente, outros, mediante pagamento de taxas por período. Dessa forma, o pesquisador não precisa ler todas as edições de um determinado jornal (ou vários deles) ou de determinada revista durante um ano (ou mais tempo), mas pode submeter esse extenso conteúdo textual já digitalizado a uma busca a partir de interfaces específicas (alguns sites têm seus próprios buscadores). Assim feito, cabe ao pesquisador ler apenas aquelas páginas indicadas pela ferramenta em que ocorre a frase ou formulação procurada.

    Depois dessa primeira seleção que as especificações do programa de busca permitem fazer, o material passa por uma segunda

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