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Clara Nunes: Nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita
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Clara Nunes: Nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita
E-book320 páginas4 horas

Clara Nunes: Nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita

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Sobre este e-book

Clara Nunes foi, sem dúvida, uma das maiores intérpretes da música popular brasileira e a sua voz reverbera até hoje como uma das mais marcantes no país. Não se contentando com o papel de grande cantora, foi também devota pesquisadora da cultura afro-brasileira e do folclore nacional. A morte precoce, aos 41 anos, deixou órfã uma legião imensa de fãs, mas também uma saudade profunda em seus familiares e todos aqueles com quem conviveu. Uma iniciativa do Instituto Clara Nunes, em parceria com Programa de Extensão Memorial Clara Nunes da Universidade Federal de São João del-Rei, traz agora a oportunidade a todos os admiradores da intérprete de conhecerem o seu universo além da música, pelas memórias de sua irmã mais velha, madrinha e tutora, dona Mariquita, ou “dindinha” — como Clara lhe chamava. Com a organização de Maria Gonçalves da Silva e Josemir Nogueira Teixeira, o texto convida os leitores a um passeio que começa pelas origens familiares de Clara Nunes na cidade mineira de Caetanópolis e termina com sua ascensão artística, já no Rio de Janeiro. São histórias transcritas, contadas na primeira pessoa pela irmã, Mariquita, que temos a sensação de escutar a nosso lado, com a companhia do cheiro fumegante do café, passado numa humilde cozinha do interior de Minas — quiçá, nas décadas de 1940 e 1950.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de mar. de 2022
ISBN9788556622129
Clara Nunes: Nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita
Autor

Maria Gonçalves da Silva

As memórias de Dona Maria Gonçalves, mais conhecida como dindinha Mariquita, maneira como Clara Nunes a consagrou, é uma dívida de vários anos. Esta narrativa é resultado de uma série de entrevistas que realizei com dona Mariquita, em Caetanópolis, entre 2006 e 2014. Ela resolveu fazer o registro de aspectos da vida de Clara Nunes e sua família, aspectos esses que não fizeram parte de sua vida pública. Esse registro é apresentado em forma de memórias, para dar a conhecer às pessoas um pouco do universo familiar de Clara Nunes. Tudo que aqui se conta são lembranças, submetidas à dinâmica do tempo passado e presente e às circunstâncias específicas da realidade social e cultural da narradora.

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    Clara Nunes - Maria Gonçalves da Silva

    Prefácio

    Numa das muitas tardes que passamos com Dona Mariquita em Caetanópolis, realizando trabalho de conservação do acervo Clara Nunes, ela nos chamou — a mim e a Josemir Nogueira Teixeira — para conversar, numa sala do Centro Espírita Paulo de Tarso. O ano era 2006. Dia e mês se perderam nas teias da memória. Mas seu desejo se tornou um compromisso: ela queria registrar em livro suas recordações do que vivera com sua irmã Clara Nunes. Ela nos dizia: Se tanta gente pode escrever sobre Clara, porque eu não posso? Da pergunta nasceu a parceria que hoje se materializa em livro.

    Na ocasião, já desenvolvíamos, há alguns anos, um trabalho de extensão, sob minha coordenação junto à Universidade Federal de São João del-Rei, para conservação do riquíssimo acervo da cantora Clara Nunes. A construção de um memorial que pudesse alojá-lo e expô-lo de forma adequada era ainda um projeto pelo qual se trabalhava em equipe.

    A conversa com Dona Mariquita era com certeza fruto da confiança que ela desenvolveu por nós ao longo dos anos de convivência. Por outro lado, concretizava o sentido da extensão universitária, aquela calcada na parceria entre academia e sociedade, um exercício de autoridade compartilhada, de encontro de saberes.

    Dentre os membros de nosso grupo, Josemir Nogueira Teixeira era, sem dúvida, a pessoa mais indicada para passar para a forma escrita as narrativas orais de Dona Mariquita. Poeta e filósofo, procurou respeitar o vigor e o afeto de cada palavra dita. Montou roteiros para as entrevistas, mas a sensibilidade foi seu principal instrumento para estimular as lembranças e respeitar os silêncios. Depois de muitas fitas gravadas e transcritas, dedicou-se à difícil tarefa de organizar as narrativas em blocos temáticos.

    O livro, porém, não é resultado apenas da parceria de Josemir e Dona Mariquita. Como tudo o que fizemos até hoje no trabalho com o acervo Clara Nunes e na construção do Memorial, ele é fruto da ação coletiva. Marlon Silva ajudou na revisão das transcrições das entrevistas, além de realizar minuciosa pesquisa para a seleção das fotos que acompanham o texto. Tayane Aparecida Rodrigues Oliveira e Elaine Cristina Ferreira transcreveram entrevistas. Daniel Saraiva participou de coleta de depoimentos. Alan Carlos sempre providenciou o que fosse necessário para minimizar os efeitos da distância entre São João del-Rei e Caetanópolis. Assim, Josemir Nogueira Teixeira, coautor do livro, o é pelas suas qualidades de escritor e filósofo e por ser parte de um grupo, quase todo de historiadores, no qual se destaca como o que melhor consegue colocar em palavras nossos sentimentos e ideias.

    De Dona Mariquita — Maria Gonçalves da Silva — o que dizer? Irmã mais velha de Clara, que a criou desde os quatro anos de idade, a dindinha, como Clara aprendeu a chamá-la e amá-la. A ideia que me ocorre para descrever, não a pessoa de Dona Mariquita, mas o seu papel em relação aos legados da irmã famosa, é a de uma guardiã de memórias. Memórias materializadas em objetos que hoje formam o acervo do Memorial Clara Nunes, mas que por muitos anos foram cuidados, sobretudo, em razão do sentimento que a unia à sua irmã caçula. Hoje, esses objetos que ela cuidou, com a ajuda de amigas, como Maria Dorvalina Teixeira da Costa (Dôia) e Sylvia Maria Salles da Silveira, permitem a quem visita o Memorial ou pesquisa em seu acervo refletir sobre questões importantes da história e da cultura brasileira.

    Se o Memorial ampliou para o público a dimensão dos objetos guardados em função do significado afetivo-familiar, este livro cumpre o mesmo papel em relação às memórias nele narradas. Casos de família, experiências vividas em comum, confidências entre irmãs. Tudo contado com muito afeto nas palavras de sua autora. Como dizia Dona Mariquita, sobre Clara Nunes muito se escreveu. Eu mesma, Silvia Brügger, publiquei diversos artigos, no campo da História, sobre a cantora, sua obra e a relação com a cultura popular brasileira. Mas este livro não é mais uma publicação sobre Clara. Este livro é um testemunho de sua irmã. É o que ela quis dizer da vivência e do afeto que nutriam. Aqui não se romanceia sobre o vivido nem se colocam palavras em bocas que não as proferiram. Também não se intenta qualquer tipo de análise. Simplesmente narra-se o que os anos e os sentimentos cravaram na experiência comum das duas irmãs. Uma se tornou famosa, entoou pelo mundo sua voz e seu canto, mas continuou a ser para a outra, a Clara Francisca, com quem experimentou alegrias e dores.

    A memória não é menos verdadeira do que a história, nem vice-versa. Cada uma a seu modo lida com o passado e o retoma no presente. Este livro é, portanto, um registro de memórias, uma narrativa na primeira pessoa, contada por sua autora. Contada do seu jeito, com seus valores e com a sua verdade.

    No texto, não há atribuições, supressões de lacunas ou de hesitações. O que o leitor irá encontrar nas próximas páginas são as palavras, os sentidos e sentimentos de sua autora. Um livro como ela quis que fosse escrito e que ela aprovou antes de desencarnar.

    — Silvia Maria Jardim Brügger

    Historiadora,

    Professora da Universidade Federal de São João del-Rei

    Motivo das memórias,

    nas palavras de dona Mariquita

    Estou com idade avançada, não vai demorar muito essa transição natural das coisas. Desde que a Clara morreu, eu vivo sempre assim, dando entrevista. Ajudo um. Vem fazer um trabalho. Outro vem, faz. Também a gente esquece muita coisa. Então, eu acho que, ao fazer essas memórias, estou deixando registrada uma coisa a que todo mundo pode ter acesso.

    Os detalhes, detalhes da vida pública dela, como cantora, tem muita coisa que eu não domino. Nas linhas gerais, a gente colabora. Mas, às vezes, as pessoas querem detalhes, data, esse tipo de coisa. Onde foi, época de festival… Acredito que qualquer coisa que estiver escrita está colaborando. Isso de que falo no momento versa sobre uma base de família, de estrutura e que eu acho que vai ajudar qualquer pessoa que queira fazer alguma coisa sobre ela. Vai dar condição de ter algum dado na mão, não é isso? Um material para correr atrás e ver onde algo aconteceu. Da vida de família eu entendo. Não sei se me expressei bem, mas vocês podem avaliar.

    Maria Gonçalves da Silva

    (Mariquita)

    Apresentação

    Como apresentação, faço algumas breves considerações. Quando terminamos de confeccionar este trabalho, Dona Mariquita ainda estava viva. Ela o aprovou. Depois de mim, foi a primeira leitora dos originais. Dona Mariquita faleceu em maio de 2017. Tivemos uma convivência de mais de uma década, no trabalho de organização, catalogação e cuidado com o acervo de sua irmã caçula, Clara Nunes. Em todos esses anos, nosso trabalho junto a dona Mariquita foi voluntário. Vez por outra ela dizia: Vocês não vão me abandonar. Eu lhe respondia: Pode ter certeza que não; nós não vamos lhe abandonar. A palavra está cumprida. Enquanto a família de Dona Mariquita nos aceitar nesse trabalho conjunto, estaremos ao seu lado. Faço questão de deixar declarado nesta apresentação que os direitos autorais desta obra pertencem ao Instituto Clara Nunes. O Instituto, mantenedor do Memorial Clara Nunes, é uma instituição sem fins lucrativos, pela qual trabalhamos junto com Dona Mariquita e seus familiares, para que se mantenha sempre de pé. Estamos na luta. Não somos muitos, mas somos determinados nessa luta. Além dos familiares de Dona Mariquita, temos uma equipe de voluntários: Alan Carlos Costa Ribeiro, Daniel Lopes Saraiva, Josemir Nogueira Teixeira, Marlon de Souza Silva, Rafael Teodoro Teixeira, Silvia Maria Jardim Brügger e Tayane Aparecida Rodrigues Oliveira. Nosso trabalho é em equipe. Acreditamos que estamos contribuindo para preservar parte da memória, da cultura e da história da música popular brasileira.

    As memórias de Dona Maria Gonçalves, mais conhecida como dindinha Mariquita, maneira como Clara Nunes a consagrou, é uma dívida de vários anos. Esta narrativa é resultado de uma série de entrevistas que realizei com dona Mariquita, em Caetanópolis, entre 2006 e 2014. Ela resolveu fazer o registro de aspectos da vida de Clara Nunes e sua família, aspectos esses que não fizeram parte de sua vida pública. Esse registro é apresentado em forma de memórias, para dar a conhecer às pessoas um pouco do universo familiar de Clara Nunes.

    Tudo que aqui se conta são lembranças, submetidas à dinâmica do tempo passado e presente e às circunstâncias específicas da realidade social e cultural da narradora. Procurei respeitar o conteúdo e o modo de sua fala. Minha intervenção foi no sentido de construir ou imaginar um roteiro que conduzisse a narrativa. Sabemos que a memória não é linear e sua constituição é a do tempo presente, em todos os sentidos. O modo de lembrar é de cada um. A memória, não sendo linear, é cheia de interferências no ato de recordar e narrar, pois, as lembranças se interpolam, se cruzam; às vezes se antecipam ao que está sendo narrado, podendo mesmo se contradizer: na lembrança, no ato de lembrar e naquilo que lembramos. A memória é a faculdade em que a existência está sempre se refazendo, pois a memória também é uma construção. O ato de lembrar depende de nossas condições, as mais sutis, conscientes e inconscientes: emocionais, psicológicas, físicas; de circunstâncias as mais diversas: se estamos sentados confortavelmente, se a pessoa com quem se fala inspira confiança, se alguma palavra, na pergunta, nos toca profundamente, se estamos bem de saúde, ou de bom ou mau humor e os motivos pelos quais lembramos. A lembrança é fugaz e, ao mesmo tempo, é viva, presente, intensa. Ela nos acompanha devido aos fatos vividos. Vivemos acontecimentos: algo que aconteceu em determinado tempo, lugar, em circunstância específica. Lembramos vivências, acontecimentos que vão sendo trazidos conosco por todos os tempos presentes pelos quais passamos e que permanecem como constitutivos de nossa historicidade, mas que vão compondo uma interpretação do vivido e são transformados em fatos. Lembrança não se constrói apenas das vivências pessoais, mas das vivências e narrativas dos outros. Podem ser esquecidas num momento e lembradas em outros, bem como um fato pode ser lembrado, mas intercalado com outros fatos de circunstâncias e momentos diferentes, como se tivessem acontecido num só momento. Guardamos o que vivemos, como se fosse um todo do que nos foi narrado, contado e do que se ouviu dizer. O que foi vivido, contado, narrado e se ouviu dizer se constitui em vivências, pois ouvir faz parte do vivido. E está submetido ao processo do ser narrador, atual, no tempo. Que significa lembrar, aos setenta e poucos anos ou aos oitenta, de fatos que ocorreram quando se tinha seis ou sete ou quatro anos de idade? Com o passar do tempo, as lembranças se incorporam ao tecido da nossa psique como vivências e é como vivências que são narradas. A memória é parte constitutiva do eu, é a faculdade das lembranças e recordações, apresentadas como vivências. Ser é ser como memória. Perdemos o eu se perdemos a memória. O esquecimento é forma de preservar a memória e a memória é modo constitutivo do eu. Um eu que fosse só esquecimento seria a impossibilidade de memória, de história ou de lembrança. Se fossemos o absoluto esquecimento, não teríamos narrativas sobre o vivido; só teríamos vivências e nada mais, não teríamos o que lembrar ou esquecer, apenas vivências.

    Procurei organizar as entrevistas, na forma de narrativa na primeira pessoa, onde sobressai a fala da entrevistada como depoente e narradora, diante de um interlocutor que se esforça em manter-se oculto. A narrativa assume uma forma literária que a entrevista não possui. A numeração se fez necessária devido à diversidade de assuntos. Procurei introduzi-la como quebra de conteúdo.

    Memória não é história; a verdade da memória não é uma verdade histórica, mas um substrato sobre o qual se pode construir a narrativa histórica. O depoente não é um pesquisador de si mesmo, bem como não narra apenas o que ele viveu; narra aquilo que se constitui como lembrança, ou seja, que ficou guardado como recordação, escrito como vivências. Vivência diz respeito ao que vemos, ouvimos, cheiramos, degustamos, sentimos em forma de dor ou prazer; ao que pensamos, imaginamos, desejamos, queremos ou não queremos. Vivência é a totalidade das experiências a que tive acesso. A memória, como narrativa, abre diante de nós uma espécie de mapa da mina, um leque de possibilidades do que se pode pensar a partir do seu relato.

    Cabe aqui um agradecimento especial às pessoas que participaram ativamente deste processo: Marlon de Souza Silva, Elaine Cristina Ferreira e Tayane Aparecida Rodrigues Oliveira. Agradeço também a Gutemberg Marques, Joaquim da Costa Barbosa, Evangelina Freitas Silva Teodoro e Monalisa Pereira Guimarães Órfão, pela doação ao Memorial Clara Nunes de fotos familiares, que compõem esse livro.

    Espero estar saldando uma dívida de vários anos com a dignidade que merece a autora dessas narrativas. Que o leitor goste e se emocione com o relato, rico em detalhes, sobre Clara Francisca, transformada em Clara Nunes, na trajetória da família Gonçalves. Não lhes trago verdades, mas narrativas de uma memória que carrega consigo grandes e pequenas emoções.

    Prof. Dr. Josemir Nogueira Teixeira

    Capítulo 1

    Minha mãe trabalhou na fábrica de tecido Cedro Cachoeira, que tem sede aqui em Caetanópolis. Meu pai era de uma cidade chamada Traíras ou Pirapama; um exímio serrador. Na sua época, essa profissão era muito valorizada. Ele foi convidado para trabalhar na empresa da cidade de São Vicente, de onde minha mãe era natural. Eles se conheceram lá. Foi um namoro rápido. Em menos de um ano já estavam casados, em 1927 ou 28, no município de Baldim, cidade de São Vicente. Depois de casada, minha mãe parou de trabalhar. Naquele tempo, mulher casada que trabalhasse fora de casa era um escândalo. Dona de casa ficava em casa.

    Tiveram o primeiro filho em 1929, se chamou José Gonçalves. Veio para cá com três meses de idade. Um ano e meio depois, eu cheguei. Fui a primeira a nascer aqui. As lembranças são muito vagas, dessa época. Quando a gente morava na rua atrás da fábrica, não era uma cidade, mas um arraialzinho, quase que era só a praça. Depois foi crescendo, não é? Mas já havia ali o prediozinho do cinema, em tamanho menor que o atual. Eu devia ter por essa época uns quatro anos.

    Meu pai foi transferido para cá porque aqui havia mais necessidade e pela fama de ser bom serrador. Duas filiais da mesma empresa estavam disputando. Aqui havia mais necessidade de um serrador, ele foi transferido para cá. A profissão do meu pai era de serrador. Ele trabalhava com madeira. A fábrica dependia muito disso. Ele saía, comprava as madeiras, trazia, selecionava para virar tábuas. As tábuas eram usadas, na época, para fazer fardos, encaixotamentos, esse tipo de coisa. Bem lá no princípio do século XX, era mais primitivo e tudo. Parece que os panos enviados para fora do Brasil eram tudo encaixotado e o material que se usava era a madeira.

    Antes de meus pais chegarem, de começar a cidade, seu nome era Fazenda da Ponte. Era uma fazenda. Existem ainda vestígios dela aqui, lá no fundo, ao lado da fábrica. Como a casa, a fazenda já está modificada, mas ainda tem esse sinal da Fazenda da Ponte. Depois tornou-se Cedro. Motivo? A instalação de uma fábrica da Cedro Cachoeira. Eram três fábricas. Uma nesse lugar de onde o meu pai veio: São Vicente; outra em Cachoeira de Curvelo e no Cedro. O nome de Fazenda da Ponte foi trocado por Cedro, devido à grande quantidade de árvores que havia aqui. O lugarejo onde começou a cidade era todo cercado dessa árvore. Dizem que é uma árvore e de madeira famosa.

    Caetanópolis era um lugarejo: existia uma fábrica e três ruas, uma praça, a igreja católica e um cinemazinho. Praticamente se fechava nisso. Quando meus pais mudaram para cá, existia uma rua atrás da fábrica que se chamava Rua de Dentro, outra que se chamava Rua de Fora. A que entrava no portão da fábrica era a Rua de Dentro. A outra conduzia a Paraopeba. Deram os nomes de Rua de Dentro e Rua de Fora. Eles foram morar na Rua de Dentro, onde a maioria dos operários morava. Devia ter uns três ou quatro mil habitantes, na época. Meus pais moraram na rua onde eu nasci de 1929 a 1936. Depois, eles mudaram para outra casa, que existe até hoje. A Rua de Dentro não existe mais. A fábrica cresceu e foram retirando e levando os operários para outras ruas, construindo outras casas para acomodá-los e aumentar a fábrica.

    Capítulo 2

    Meu pai era alto. Não me arrisco a falar sobre a altura dele, porque realmente não lembro. Talvez um e setenta e tantos, quase um metro e oitenta. Ele era alto, claro, olhos gazos, magro, um cabelinho bem durinho e bem baixinho. Muito elegante. Possuía uma voz muito grossa. Muito corajoso, autêntico, um cara muito franco. Era um moço muito bonito, sério, exageradamente sério, honesto. Ele até se prejudicava pela honestidade. O pessoal da cidade tinha um certo medo dele, justamente por causa de sua franqueza e sinceridade exagerada. Fisicamente? Era simpático, sim. Eu achava. Virtude pessoal? Era sua autenticidade, sua sinceridade.

    Ele era muito corajoso. Não sei se era corajoso ou orgulhoso, também. Não aceitava desaforo. Era íntegro. Não admitia cometer erros. Também, se não estivesse errado, não aceitava nenhuma repreensão. Principalmente de patrão. Patrão não tinha muita vez com ele, se não fosse coisa de verdade. Ele passou isso para a gente. Se ele tivesse alguma falha, pedia desculpas. Nossa! Não tinha dúvida! Mas se não estava errado, ele não engolia mesmo. Teriam que aceitar as desculpas dele. Uma pessoa que cumpria religiosamente seus deveres de horário e tudo.

    Uma vez, na Rua de Dentro… Ele, nesse dia, foi infeliz. A serra com que ele trabalhava parou. Precisava de um mecânico para arrumá-la, pois já estava havia um bom tempo parada. Isso o deixou preocupado. Não admitia ficar ali sem poder trabalhar. Meu pai foi procurar o gerente — sua secção de trabalho ficava bem próxima da gerência da fábrica. Foi pedir para mandar um mecânico. Ao chegar perto do gerente, este não lhe deu atenção. Ele ficou falando e o gerente foi caminhando. Ele pegou, puxou o gerente pelo paletó, e disse: Olhe, estou falando com você, não vou admitir conversar atrás de você, tem que olhar para mim. Estou trazendo um problema do trabalho. Não sou cachorro, de conversar e você não me ouvir. E puxou ele assim, no pulso, mesmo. Falou: Escuta, olha para mim! Eu estou falando com você, trazendo um problema do seu trabalho. Aí o gerente também deu um dividido lá: Some daqui!, não sei o quê. Meu pai falou: Agora! Perfeitamente; é você quem manda! Foi lá na caixa de ferramenta e tirou as coisas pessoais dele.

    Chegou em casa, falou com minha mãe: Olha, pode arranjar toda a mudança, nós vamos ter de ir embora agora. Porque eu fui conversar com o gerente — uma pessoa muito simpática, depois se tornou muito amigo nosso, doutor Alexandre — ele deve de vir aqui, mandar o caminhão. Qualquer coisinha que acontecia, a pessoa era despedida sem direito a nada. Não tinha essas leis de hoje. Ele já foi com aquela consciência para a nossa casa. Falou: Olha, junta tudo aí, que agora mesmo, o caminhão vai chegar aqui, para nos levar de volta de onde ele me tirou. Porque eu briguei. Ele não me ouviu e eu não sou cachorro dele. Então você pode juntar. Dá banho nos meninos aí tudo. Ele não deve demorar muito tempo de chegar não. Minha mãe ficou toda desconcertada, apavorada. Que é isso, Manoel? Você está ficando louco? O que você arranjou? Ele falou: Não, eu não vou aceitar desaforo, não! Sou pobre, mas não sou cachorro de ninguém. E já foi ele mesmo desatarraxando as camas e juntando tudo, enrolando colchão, que era para pôr em cima de um caminhão. Não havia caminhão de mudanças, era tudo em cima das carrocerias. Passadas mais ou menos uma ou duas horas, nunca mais chegava o caminhão. Minha mãe juntando as coisas e nós perdidos também. Todos pequenos, sem saber o que estava acontecendo. Quando minha mãe chegou à porta. Morávamos em uma rua que devia ter umas dez casas e a nossa devia ser a oitava. Da porta, se via quem chegava na esquina da rua, pois ficava num nível mais baixo. Minha mãe falou assim: Nossa, Manoel! Vem lá o doutor Alexandre com um horror de gente. Vinha aquele tanto de gente atrás do gerente, para ir lá em casa. Minha mãe ficou mais apavorada ainda. Meu pai falou: Deixa ele vir. Deve estar vindo aqui para eu assinar alguma coisa, dar as ordens para mim. Não me preocupo com isso não. Deixa ele vir, a casa é dele. Já estava todo pronto para receber qualquer decisão.

    Esse senhor chegou e falou: Ô Manoel, por favor, eu vim aqui te pedir desculpas! Porque realmente você estava com toda a razão. Eu não podia fazer com você o que eu fiz. Você é um empregado da minha confiança. Eu quem te trouxe para cá, te devo um respeito muito grande. Sei de sua honestidade. Eu vim aqui para te pedir desculpas.

    Meu pai era uma pessoa que, quando chegava o momento certo, ele jamais… Lembro como se fosse hoje: meu pai chorando, abraçado com ele. Meu pai ficou muito emocionado, o gerente também. Os dois se abraçaram. Essa lembrança ficou muito marcada na minha vida, por ver a humildade do gerente em reconhecer… Ele também, emocionado por saber que, na verdade, apesar de ser gerente, eles eram amigos. Então, meu pai era desse nível de pessoa: se fosse pelo desaforo, ele não achava não. Mas não era uma pessoa resistente às coisas certas, não. Ele era muito sensível.

    Era de uma sensibilidade musical muito grande, exímio violonista. Foi artista que não teve oportunidade. Tocava um senhor violão. Para cantar ele não era muito bom, não. Não era tão perfeito num acompanhamento para outras pessoas, porque o seu forte era solar no violão. Tudo de Dilermando Reis eu conheci foi por meio do violão dele. Tocava tudo. Ele era muito convidado para participar de festas, de teatro, apresentar solos no violão. Ele cantava coco. O coco da Leonora contava que roubaram a Leonora. Geralmente este tipo de trabalho é uma história cantada, não é? E ele fazia muito isso. Teve até música que ele compôs. Uma vez, eu devia ter uns quatro ou cinco anos, acordei com ele tocando violão umas duas horas da manhã. A minha mãe acordou — ficávamos no mesmo quarto —, virou e falou assim: Manoel! O que é isso? Você está ficando doido? E ele respondeu: Não! Sonhei com uma música. Estou colocando no violão para não esquecer. Estava lá, tentando botar dentro das notas do violão aquilo que tinha ouvido em sonho. Essa música ele tocava e todo mundo perguntava o nome dela. Ele respondia: Não sei o nome que ela tem. Foi uma música que eu sonhei, é uma composição minha.

    Solfejar esta composição? Não sei mais. Dentro de algumas coisas que aprendi em partitura de violão, era um tipo clássico. Não era uma coisa muito popular, não. Era um solo mais clássico. Era a música que se chamava a música do sonho. Naquele tempo, na época de trinta e poucos, por aí, ele não tinha nem vez, nem nada. Tem uma coisa que eu vou morrer frustrada: não ter aprendido a tocar violão. Um dos meus maiores sonhos era imitar meu pai. Mas eu não tive oportunidade, por falta de tempo. Então, quando foi agora, há alguns anos, inventei e não consegui, porque o tempo não me deixou. Então eu adiei para a outra reencarnação. Vou voltar aprendendo violão.

    São tantas lembranças! Não há aquela que marcou. Tem umas coisas dele que muito me emocionam. Teve uma época que ele ficou doente, o médico o afastou do trabalho. Ele ficava tocando violão dentro de um quarto. Às vezes, a gente chegava da escola, ele já tinha almoçado e ele estava lá dedilhando, buscando, porque na época não tinha rádio. E, para ele aprender as músicas de Dilermando Reis, havia um outro estudioso, que gostava de tocar violão e passava para ele. O moço tinha rádio. Olhe bem, como a vida era: não tinha um parceiro que tocasse violão com ele. Quando ele chegava para tocar, ninguém tocava perto dele, não. Todo

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