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Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior
Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior
Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior
E-book325 páginas5 horas

Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior

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Sobre este e-book

Antônio Carlos Belchior é autor de um dos gestos mais intrigantes da história recente da Música Popular Brasileira. Era um artista respeitado, dono de um repertório do qual qualquer músico poderia se orgulhar, carreira de sucesso, padrão de vida confortável, cercado de amigos, cercado de amores. Com 60 anos recém-completos, deixou tudo isso para trás, rumo a uma jornada incerta e anônima pelo sul do país, que terminaria com a sua morte dez anos depois. Nas páginas de Viver é Melhor que Sonhar – Os Últimos Caminhos de Belchior, o leitor vai mergulhar neste polêmico e misterioso período da história desse artista e vai descobrir que Belchior viveu de maneira insólita e extraordinária, conhecendo pessoas diversas, lugares interessantes e relações inusitadas, com fãs perplexos que abrigaram um astro da música em suas casas sem saber muito bem por que ele estava ali. Em parte, o astro buscou este caminho; em parte, foi conduzido a ele. O livro foi escrito enquanto os autores percorriam todas as cidades por onde Belchior passou durante o seu período de exílio: Montevidéu, Porto Alegre, Santa Maria, São Paulo, Sobral, Artigas (Uruguai), Santa Cruz do Sul, entre outras. Viver é Melhor que Sonhar é um livro que merece ser lido pelo seu compromisso com a pesquisa, pela sua relevância para a cultura brasileira, por ser um livro sobre a aventura de estar no mundo de forma poética e sobre a difícil arte de contar uma história que move tantas paixões e contradições. Mas, acima de tudo, merece ser lido por ser um livro de amor pela obra e pela vida desse gênio chamado Antônio Carlos Belchior.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de dez. de 2022
ISBN9786588922040
Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior

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    "Viver é Melhor que Sonhar" é um bom trabalho de reportagem sobre os últimos anos da vida de Belchior. Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti seguiram seus rastros pelo sul do país e mapearam as pessoas que acolheram Belchior e Edna Prometeu, a mulher que o acompanhou no exílio voluntário. Em busca por respostas, o livro revela toda a complexidade de Belchior, que marcou a música popular brasileira com algumas de suas melhores canções. Vale a pena ler.

Pré-visualização do livro

Viver é melhor que sonhar - Chris Fuscaldo

AGRADECIMENTOS

Este livro só foi possível graças à ajuda de dezenas de pessoas que participaram direta ou indiretamente da história de Belchior, entre as quais devemos agradecer a Aramis e Samir Nassif, Gabriel Jacobsen, Danieli Correa, Renato Rocha (UBC Porto Alegre e Rio de Janeiro), Anne-Marie Bernadette Crosville, Irmã Rafaela, Juremir Machado, Jorge e Luiza Cabral, Juliana Bublitz, Jacques Alfonsin, Volnei dos Santos Coelho, Josy Teixeira, Letícia Costa, Rosana Borges, Valmor Simonetti, Marcos de Castilhos, André Urban Kirst e a Comuna do Arvoredo, Dulce Helfer, Martim César, Aline Kwiatkowski e Flávio da Silva, Júlio César Schimidt, Ubiratan e Ingrid Trindade, Dogival Duarte, Gloria Miranda Caceres e Aquiles Gusson, Madre Paula Ramos, Irmã Andréa Freire, Célia Zingler, Malu Muller, Luciano Menezes, Gerson Borges, Marcelo Leal, Dom Sinésio Bohn, João e Nara Tavares, Kalu e Mirna Proença, Renan Bender, Catalina, Mari Souza e Jorge Britos, Maria Noel, Mateo Acosta, Jorge Filiberto, Mónica Villanueva e Carlos Nogara, Augusto Negro, Edson Valente, Magdalena e César Caétano, Ruben Dinardi, Daniel Brazeiro, Toño Perera, Larbanois y Carrero, Laura Canoura, Atílio Pérez (Macunaíma) (in memoriam), Patricia Ajalla Santis, Thiara Gimenez Oliveira, Darli Pinto, Zé Nunes, Walter Bordoni, Bruno Menezes, Heverton Aguiar, Claudinho Pereira, Helen Noble, Eliane Montanini, José Luiz Penna, Astrid Sayegh, Sebastião Antonio Carvalho, Leonardo Scatolini, Paulo Sejo Sato, Enivaldo da Gama Ferreira Junior, Jorge Mello, Zeca Baleiro, Célio Silva, José Roberto Aguilar, Ednardo Nunes, Elly Shimasaki, Gustavo Freiberg, Michael Haradom, Antonio Peticov, Neno Ramos, Fernando Durão, Melissa Caravieri, Anita Leocádia Prestes, Diego Figueiredo, Hélio Rodrigues (in memoriam), Maria Bonomi, Márcia Azevedo, Joyce Camargo, Haron Cohen, Fausto Nilo, Gontran Guanaes Netto, Mariana Filgueiras, Chico Regueira, Antônio Paschoal Régis (Tota), Ricardo Kelmer, Russen Moreira Conrado, Barbosa Coutinho, Christianne Coelho, Cesar Martinez, Joyce Moreno, José Gomes Neto, Amaro Pena, Lúcia Alencar, Antônio Mendes (Foguete), Francisco Miguel dos Santos, Henry Segura, Raul Ellwanger, Toño Barreras, Martim César, Marita e Tamba, Sérgio Telles, Nei Van Soria, Luís Mauro Carneiro, Victor Ponte, João Conrado, Simone Passos, Antônio Elias de França, Mano Alencar, Zé Tarcísio, Mino, Galba Gomes, Leo Mackellene, Paulo Nazareno, Lucia Rodrigues, Aldiva Sinduva, Duane Claro, Estêvão Zizzi, Nirton Venancio, Denise Garcia, Celio Vidal, João Mourão, Sérgio Zurawski, Frei Hermínio Bezerra, Frei Domingos Teixeira Lima, Cézar Britto, Jackson Martins, Professor Gomes, Carmélia Aragão, Amelinha, Jotabê Medeiros, Juarez Fonseca, Renato Vieira, Airê Galvão, Alessandra de Paula, André Luiz Coutinho, Andre Luis, Carlos Taveira, Ceci Alves, Priscila Estevão, Rodriggo Dias, Wellthon Leal, Mariana Lyra e Roberta Cardoso.

Agradecemos especialmente aos familiares de Belchior que colaboraram com este trabalho, Ângela e Nilson Belchior, Raimundo Monte Frota, Ângela Margareth Henman, Camila e Mikael Henman Belchior e Vannick Souza Belchior.

Agradecemos também aos personagens de nossa própria história que nos incentivaram e auxiliaram durante todo o processo de escrita desse livro, entre eles Marco Konopacki, Miguel Jost, Maíra Contrucci Jamel e, em especial, nosso editor Michel Jamel.

Sumário

VIVER É MELHOR QUE SONHAR

AGRADECIMENTOS

VIVER E SONHAR

A escolha de Antonio Carlos Belchior

PRÓLOGO

Capítulo 01 – Inferno de Dante

Capítulo 02 – Uma trajetória inquieta

Capítulo 03 – O purgatório e o caminho para o paraíso

Capítulo 04 – Um rapaz latino-americano

Capítulo 05 – Depois da peregrinação, uma pausa para a vida boa e a perseguição

Capítulo 06 – Interrogações acerca de um fugitivo

Capítulo 07 – Todos queriam Belchior (por alguns dias)

Capítulo 08 – Caminhos alternativos

Capítulo 09 – Laissez Faire, Laissez Passer, Le Monde Va de Lui-Même

Capítulo 10 – A volta para casa

Capítulo 11 – Post Mortem

EPÍLOGO

CRONOLOGIA

BIBLIOGRAFIA

FOTOS

Viver é Melhor que Sonhar pode ser compreendido a partir de diversos enquadramentos de gênero. Um livro sobre um grande artista da música brasileira, um livro reportagem, um livro de investigação, um livro sobre a cultura brasileira e suas implicações dentro da engrenagem da sociedade contemporânea, um livro sobre o silêncio de um artista ou ainda, como nos afirmam seus autores no prólogo, um road book. A boa notícia é que esse livro é tudo isso e mais um pouco. Seja o interesse do leitor guiado por qualquer uma dessas perspectivas, o fato é que o conteúdo de Viver é Melhor que Sonhar atenderá todas essas expectativas e, certamente, ainda surpreenderá de maneiras diversas aqueles que mergulharem em suas páginas.

A forma como Belchior viveu os últimos 10 anos de sua vida não só é um mistério – ou era, até a publicação desse livro –, como foi também uma espécie de abertura para inúmeras especulações, fabulações, mentiras, meias-verdades e suposições sobre o que efetivamente teria acontecido. Apesar de algumas reportagens veiculadas pela mídia ao longo dos quase dez anos que se passaram entre seu sumiço e sua morte, a verdade é que até hoje não tínhamos acesso a uma apuração realmente comprometida em levantar fatos, escutar os personagens que atravessaram essa história e colocá-la dentro do contexto da relevância cultural que Belchior teve para a canção popular brasileira moderna.

Nesse sentido, o presente livro não só preenche uma lacuna importante da nossa vida cultural como revela uma série de acontecimentos que poderão impactar de forma muito significativa na própria percepção do público sobre esse gênio da música brasileira. O leitor descobrirá, ao longo da leitura, que as relações da pessoa física Belchior com seus familiares, amigos, com os profissionais que trabalhavam com ele até 2007 e com os inúmeros novos amigos que cruzaram sua vida nesses últimos 10 anos, passam longe das interpretações romantizadas que acabaram por colaborar com a mitificação de sua ausência e com a construção idealizada do Volta Belchior que nos acostumamos a ver pichados em paredes de cidades brasileiras, em posts de redes sociais ou em falas públicas de artistas, fãs e do público em geral.

É evidente que alguém como Belchior não poderia simplesmente sair de cena – seja no sentido figurado ou no sentido real que essa expressão traz nesse caso – sem que isso implicasse em uma série de problemas de ordem legal e pessoal. Belchior não planejou essa saída, como o leitor logo descobrirá, assim como provavelmente não mensurou as consequências que isso poderia gerar para aqueles que eram parte de sua rede afetiva e profissional.

A complexidade das questões e problemas que sua decisão causou não são simplesmente da ordem do certo ou errado, do bem e do mal ou de qualquer síntese dialética que possa ser deduzida dos fatos que o levaram a tal escolha. Essas decisões foram complicadas, problemáticas e, ao mesmo tempo, compreensíveis e coerentes. Não se trata de uma simples escolha de lado nem da formação de um tribunal para julgar as escolhas de Belchior.

Nesse aspecto, inclusive, destaca-se a enorme sensibilidade e ética dos autores Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti que, em nenhum momento, optaram pela abordagem sensacionalista dessa história. Não existe no livro nem o mito do artista genial e incompreendido que foge do mundo mau, nem a acusação ao homem que deixou filhos, ex-mulher, ex-empregados e sócios numa espécie de apagão jurídico, econômico e trabalhista. O que temos aqui é um desejo por entender, por desvelar e por abrir para o grande público uma das histórias mais inusitadas vividas por um grande artista da nossa canção popular.

O resultado disso, certamente, não será morno ou trivial. Esse é um livro que não passará desapercebido pelos grandes fãs do artista ou pelos apaixonados pela música brasileira em geral. Esse é um livro difícil, um livro para mover paixões e para que muitos repensem conceitos que se sedimentaram desde o início dessa história de sua fuga e do seu triste desfecho. A obra musical que hoje ilumina uma série de discursos libertários e progressistas irá se deparar aqui com aspectos complicados da trajetória de Belchior nesses anos. O melhor que isso nos proporciona certamente não é cair no dilema pouco produtivo de vida versus obra para entender um artista. Não se trata disso. Mas entender que todo símbolo, quando confrontado pela dura realidade, dificilmente se mantém intacto.

O fato é que Belchior, que cantava viver é melhor que sonhar, parece ter escolhido viver e sonhar ao mesmo tempo nesses últimos 10 anos de sua vida. A beleza dessa escolha é talvez a peça mais importante da engrenagem que move esse livro. O fato dos autores terem captado esse gesto de Belchior perante a vida faz com que esse livro seja, antes de tudo, um gesto de amor ao artista e a tudo que sabemos que ele representa. Mas viver e sonhar, dentro de um mundo como o nosso, não é uma decisão que possamos tomar sem que se produzam enormes contradições.

Viver é Melhor que Sonhar é um livro que merece ser lido pelo seu compromisso com a pesquisa, pela sua relevância para a cultura brasileira, por ser um livro sobre a aventura de estar no mundo de forma poética e por ser um livro sobre a difícil arte de contar uma história que move tantas paixões e contradições. Mas, acima de tudo, merece ser lido por ser um livro de amor pela obra e pela vida desse gênio chamado Antonio Carlos Belchior.

PRÓLOGO

Antonio Carlos Belchior é autor de um gesto intrigante na história recente da Música Popular Brasileira. Artista respeitado, dono de um repertório com composições sofisticadas, carreira de sucesso, padrão de vida confortável, alguns bons amigos. Com 60 anos recém-completos, deixou tudo isso para trás, rumo a uma jornada incerta e anônima pelo sul do país, que terminaria com sua morte dez anos depois. Não explicou a ninguém o motivo do seu desaparecimento, não pediu dinheiro emprestado aos amigos, só deu um telefonema a um dos filhos durante este período. Em companhia de uma nova produtora e amante, Edna Assunção de Araujo, de pseudônimo Edna Prometheu, percorreu dezenas de cidades, viu de longe seu patrimônio ir embora, foi caçado pela justiça e pela imprensa, dormiu em locais abandonados, dependeu da caridade de desconhecidos, foi expulso de casas por pessoas que o abrigavam e não retrocedeu.

Por que Belchior agiu assim? Esta pergunta foi feita por muitos fãs, familiares, colegas e amigos. Um mistério para a maioria das pessoas que jamais compreendeu as motivações do artista. Esta mesma questão moveu particularmente dois jornalistas e pesquisadores, que se encontraram por acaso numa aula sobre música e literatura e identificaram a mesma perplexidade diante da trajetória do compositor fugitivo. Assim nasceu este livro, designado de road book por ter sido concebido enquanto seguíamos as paralelas que o artista percorreu e as pegadas que deixou.

Aos 60 anos, a carreira e a posição na sociedade o engessavam. O migrante nordestino, que lutou arduamente para fazer sucesso na cidade grande e finalmente conseguiu, parecia fadado a não poder pegar o caminho de volta. Arrimo da família em São Paulo, orgulho dos pais e irmãos no Nordeste, sujeito consciente do lugar que construiu e ocupava no meio artístico brasileiro, ele estava enredado numa trama que ajudou a fabricar. Isto não o impedia de perceber certa artificialidade em sua rotina cotidiana, que incluía o jogo das gravadoras, a pesada carga de shows pelo país, sempre repetindo velhas canções dos anos 1970.

Seu processo de desconexão foi gradual. Em princípio, Belchior deu vazão ao desejo de dedicar-se a projetos artísticos sem relação com a música, que estavam lhe dando maior prazer naquele momento – a leitura, a pintura, os exercícios de caligrafia, a tradução para uma linguagem popular do livro A Divina Comédia, clássico de Dante Alighieri. Chegou a ser destaque em exposições de quadros, pintados por ele e por outros. Aos poucos, foi deixando para trás seu produtor, seu empresário, sua agenda de shows e o mundo das artes. O cantor não deu mais notícias à família e aos amigos e quem veio lhe cobrar a conta foi a imprensa, tão presente em sua vida desde os anos 1970.

Belchior era grande demais para sair de cena disfarçadamente e talvez não tenha se dado conta disso no início. Foi encontrado no Uruguai, gozando um período de ócio criativo. Em reportagens exibidas na TV, sua intimidade foi devassada, suas contas abertas para o país, seu gesto tratado com deboche. Um segundo mecanismo a lhe puxar de volta foi o braço da justiça, com a cobrança das dívidas que deixou para trás. Pensões alimentícias não pagas lhe renderam o bloqueio da conta bancária e dois mandados de prisão. Ninguém abandona suas amarras sociais impunemente.

A sociedade cobrava o preço desta desconexão e, a cada movimento para abandonar sua vida pregressa, mais alta ia ficando a conta. Belchior tinha uma estrutura montada ao redor de si que não era possível simplesmente abandonar. Neste processo de rompimento, sua figura engrandeceu – ou se perdeu, dependendo da visão do leitor. Ele não retrocedeu diante da pressão e foi sendo despojado de tudo a um custo muito alto. Passou fome, dormiu ao relento, teve de usar roupas emprestadas, foi chamado de fugitivo, de criminoso. Abriu mão de patrimônio, conforto, orgulho, numa espécie de autoexpiação. Não deixa de lembrar o escritor russo Leon Tolstói, ancião que, aos 82 anos, considerava mais confortável espiritualmente morar numa casa camponesa do que entre as paredes da sua mansão.

Sua história carregava algo de libertário e de instigante: quem nunca cogitou largar tudo? Belchior era músico e intelectual, amante das línguas e da filosofia, um homem denso, envolvido em contradições estruturais. Desde o princípio da carreira, suas canções falavam em rompimento, exílio, inconformidade com o estabelecido. Algumas de suas entrevistas, também. Um estado de espírito que o autor parecia carregar internamente, sem possibilidade de exercê-lo em sua plenitude. Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho / Deixem que eu decida a minha vida, dizem os versos de Comentários a Respeito de John, parceria de Belchior com José Luiz Penna. A atitude que ele tomou na idade madura completava suas canções da juventude, como se poesia e gesto fizessem parte de uma grande e significativa obra de arte. Ideias assim nos moviam no início da jornada. Belchior nos parecia uma personalidade extraordinária. Sem dinheiro, persguido pela polícia, vendo seu patrimônio deteriorar, mantinha-se firme, sereno, cheio de bom humor, interessado no outro, conforme depoimentos de muitas pessoas que o acolheram e que pudemos entrevistar. Com o avanço das investigações, no entanto, a cena tornava-se mais complexa. Como bem definiu a cantora Amelinha em uma entrevista ao jornal O Povo, Belchior era um sedutor com jeito de índio, meio santo, meio profano. Seu biógrafo Jotabê Medeiros, no livro Apenas um Rapaz Latino-americano, observava: Ele tinha uma facilidade de criar e recriar histórias. A mesma história ele contava de formas diferentes. As mulheres se derretiam e os homens ficavam fascinados com sua performance elegante. Além de muita admiração que deixou por onde passou, muitas picuinhas permeavam sua trajetória e seria desonesto passar por cima delas.

Em nosso percurso, esbarramos com credores que participaram involuntariamente da sua jornada de libertação. Belchior deixou de pagar hotéis em São Paulo, Rio de Janeiro e Niterói, no Brasil, e em Artigas, no Uruguai, além do aluguel do seu apartamento, do escritório e dos estacionamentos onde deixou seus carros. Também aqui lembra o caso de Tolstói, que saiu às pressas de madrugada, levando na agenda apenas 50 rublos e algumas moedas. Doutor Makovítski, médico que acompanhou o escritor na viagem, quando pretendia comprar passagens de trem, dizia na estação que eram para o conde Liev Tolstói e depois acertaria. Todos confiavam. A produtora Edna fez o mesmo diversas vezes, sem voltar depois para pagar. No hotel de Niterói, os funcionários tiveram de bancar o prejuízo.

O hábito da inadimplência acabou ganhando a imprensa e, com isso, ficava cada vez mais difícil para Belchior retornar de onde partiu. O músico nascido em Sobral carregava certo orgulho característico da sua terra. Uma altivez que alguns conhecedores chegaram a batizar de sobralidade por ser um traço quase cultural daquela cidade. Reaparecendo em São Paulo depois das dívidas e da perseguição da imprensa, ele voltaria menor do que saiu e ficaria fatalmente marcado. Coisa difícil de aceitar para um sobralense.

Somando-se a isso, a vida de Belchior – fomos compreender um pouco depois – não era um campo de flores. Ele estava envelhecendo e a carreira declinava. Belchior estava cansado de ser Belchior. Uma volta ao mesmo lugar parecia bem pouco atrativa. Restava saber se o preço da liberdade valia a pena. Em um dos cadernos deixados para trás durante a jornada ao lado de Belchior, Edna anotou uma frase do filósofo francês Henri Bergson: O homem pensa em virtude de suas necessidades de agir. O gesto de libertação estaria relacionado com as contingências de sua vida cotidiana? Belchior era um sujeito complexo, investigar suas motivações não seria tarefa corriqueira, viemos a compreender bem depois.

A companheira que Belchior escolheu para esta jornada, por exemplo, carregava algo de dissonante com a experiência da purificação. Edna Prometheu foi a amante, a produtora e também o escudo do artista neste período. Cuidava dos aspectos práticos de sua existência, intermediava sua relação com terceiros, não se incomodava em ser desagradável para proteger o bem-estar de Belchior. Por este comportamento, angariou muito pouca simpatia pelo trajeto. Ouvimos dezenas de comentários maldosos, indisfarçavelmente machistas, atacando sua personalidade e sua aparência. Por outro lado, percebemos por esse caminho pessoas fascinadas com seu potencial retórico, sua inteligência astuta e seu sedutor repertório intelectual.

Edna venerava Belchior como se ele fosse um Beatle. Ou melhor, um Bob Dylan, artista que ele tanto admirava e com quem, segundo ela, o amado mantinha relações virtuais. Não aceitava que Belchior recebesse tratamento com menor devoção. Era uma mulher forte. Guardiã implacável, vivia o processo inverso ao da beatificação do artista. Cada vez mais apegada a ele, orgulhosa de sua posse, obcecada por seus cuidados. Uma obsessão tão grande pelo seu objeto que chegava a se confundir com ele. Belchior compactuava com isso, silencioso, sorridente.

Por que ele agiu assim? Para chegar ao fundo desta questão, percorremos cidades por onde o cantor passou, antes e depois do sumiço. Fomos ao Rio Grande do Sul, seguimos para o Uruguai, depois para São Paulo e finalmente chegamos no Ceará. Andamos de trás para frente: fomos do lugar onde ele morreu até o lugar onde ele nasceu. Neste trajeto, entrevistamos pessoas que tiveram contato com ele, conhecemos locais onde se hospedou, dormimos em camas onde ele dormiu, reviramos suas malas deixadas para trás. Consultamos processos e documentos que levavam seu nome e anotações pessoais, perturbamos sua família com perguntas indiscretas, entrevistamos suas amantes, seus advogados, seus amigos de infância.

Havia uma incongruência nesse trabalho. Belchior foi vítima da irresponsabilidade da imprensa. Uma parte das dificuldades que ele passou estava diretamente relacionada com a exposição da sua história na mídia. Para construir um livro que investigava seu exemplo de libertação, recorríamos aos métodos rasteiros da imprensa tradicional. Ressoava em nossos ouvidos sua fala na última entrevista que deu para a televisão brasileira: Eu não sou uma celebridade. E não tenho o menor interesse na vida privada de nenhuma pessoa. Ao longo da investigação, no entanto, não conseguimos distinguir os limites entre a vida íntima do homem e a vida pública do artista. Estava tudo embaralhado num mesmo cesto que era necessário examinar para compreender suas motivações mais profundas. Ao lado das músicas, dos livros, dos depoimentos, absorvemos também as fofocas, as picuinhas, as insuportáveis maledicências. Filtrar uma coisa da outra foi um desafio com o qual tivemos de lidar, nem sempre com sucesso.

Estávamos também diante de uma lacuna incontornável: a falta de um depoimento de Belchior explicando suas motivações. Durante todo o trajeto, ele não deu qualquer justificativa para esta aventura, a não ser frases soltas ou colocações desconexas. Soubemos que acompanhava o noticiário e ficava feliz com manifestações de carinho que surgiam nas redes sociais, como a hashtag #voltabelchior. Entristecia-se, por outro lado, com as reportagens que abordavam seu sumiço.

Recuperar o pensamento de um artista que já morreu é um exercício sutil, muitas vezes inglório. Recorremos a quem conviveu com ele, aos fragmentos deixados para trás. Minha vida que parece muito calma / Tem segredos que não posso revelar / Escondidos bem no fundo de minh’alma / Não transparecem nem sequer no meu olhar, assim dizem os lindos versos de Doce Mistério da Vida, versão de Alberto Ribeiro para Ah! Sweet Mistery of Life, de Victor Herbert, gravada por Belchior no álbum Vício Elegante, em 1996. Era este segredo fabuloso que pretendíamos buscar em nossa jornada.

Nas páginas seguintes deste road book, o leitor vai acompanhar o nosso processo de descoberta. Um trajeto cheio de percalços, pequenas decepções, grandes alegrias, com muitas versões de uma mesma história narradas pelas diversas testemunhas que acompanharam a tragédia daquele grande artista. Nos dez últimos anos antes de sua morte, Belchior viveu de maneira insólita e extraordinária, conhecendo pessoas diversas, lugares interessantes e relações inusitadas com fãs perplexos que o abrigaram em suas casas sem saber muito bem por que ele estava ali. Em parte, buscou este caminho; em parte, foi conduzido a ele. Acompanhar seus passos nos abriu para uma compreensão mais madura da existência de um grande artista e da própria sociedade que o cerca. Esperamos que o leitor possa compartilhar esta descoberta.

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