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Autoritarismo líquido: o golpe no Brasil
Autoritarismo líquido: o golpe no Brasil
Autoritarismo líquido: o golpe no Brasil
E-book760 páginas6 horas

Autoritarismo líquido: o golpe no Brasil

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Sobre este e-book

O golpe é contra o povo e contra a nação. O golpe é misógino, o golpe é homofóbico, o golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito e da violência. Falo aos mais de 54 milhões e meio de votos, falo principalmente aos brasileiros que durante o meu governo superaram a miséria, realizaram o sonho da casa própria, começaram a receber atendimento médico, entraram na universidade e deixaram de ser invisíveis aos olhos da nação. Eu vivi a minha verdade, dei o melhor de minha capacidade. Não fugi de minhas responsabilidades. Travei bons combates. Perdi alguns, venci muitos, e neste momento me inspiro em Darcy Ribeiro para dizer: “Não gostaria de estar no lugar dos que se julgam vencedores. A história será implacável com eles como já o foi em décadas passadas. Nós voltaremos, voltaremos para continuar nossa jornada rumo a um Brasil em que o povo é soberano. Dilma Rousseff
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de mar. de 2022
ISBN9786500202069
Autoritarismo líquido: o golpe no Brasil

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    Pré-visualização do livro

    Autoritarismo líquido - Pedro Uczai

    Capa

    Pedro Uczai

    (Org.)

    AUTORITARISMO

    LÍQUIDO

    O Golpe no Brasil

    Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer

    meio sem autorização escrita do Autor

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Autoritarismo líquido [livro eletrônico] : o golpe no Brasil / Pedro Uczai (Org.). – 1. ed. – Chapecó, SC: Caroline Kirschner, 2021. \

    Epub

    ISBN: 978-65-00-20206-9

    1. Autoritarismo - Brasil 2. Autoritarismo -

    Brasil - História 3. Brasil - História 4. Brasil -

    Política e governo 5. Golpes de Estado - Brasil

    6. Eleições - Brasil 7. Rousseff, Dilma, 1947-

    Impedimentos I. Pedro Uczai.

    21-61275

    CDD-320

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Autoritarismo político: Ciência política 320

    Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

    Projeto gráfico, diagramação e capa: Caroline Kirschner

    Produção de ebook: S2 Books

    Índice

    Capa

    Folha de rosto

    Ficha catalográfica

    Índice

    Apresentação

    Introdução

    Prefácio – Impeachment de Dilma e prisão de Lula: duas faces do Autoritarismo Líquido

    Parte I. Introdução ao tema do Golpe de 2016

    Capítulo 1 – Literatura sobre o Golpe

    Parte II. O Golpe visto por dentro

    Capítulo 2 – A dimensão política do Golpe

    Capítulo 3 – O Judiciário e o Golpe de 2016

    Capítulo 4 – Democracia, opinião pública e movimentos de rua no Brasil pós 2013

    Parte III. A outra face do Golpe

    Capítulo 5 – A prisão do Ex-Presidente Lula

    Anexo I – Discurso da Presidenta Dilma no Senado

    Anexo II – Entrevista da Ex-Presidenta Dilma ao site Brasil 247

    Anexo III – Habeas Corpus 164.493 Paraná - Íntegra do voto vista

    Anexo IV – Habeas Corpus 164.493 Paraná - Voto

    Contra capa

    Apresentação

    Luiz Inácio Lula da Silva

    Neste momento em que estamos entrando em campo para mais uma disputa eleitoral, eu gostaria de estar nas ruas, abraçando as pessoas, falando para as pessoas o que tenho em mente para voltar à Presidência da República, retomar a autoestima dos brasileiros e brasileiras, retomar os programas de distribuição de renda que irão fazer o País voltar a dar certo e enfrentar algumas reformas estruturantes mais complexas que ficaram por serem feitas. Neste momento, estou aqui preso mas mesmo assim fazendo a minha parte, estudando, passando minhas mensagens e pronto para entrar em campo a qualquer momento.

    Neste momento em que chegou até mim o texto deste livro, para ler e propor uma apresentação, sou muito grato ao esforço de tantas pessoas, escritores, militantes, parlamentares, intelectuais, jornalistas e artistas, enfim, todos e todas que estão empenhados em disputar não apenas os votos que temos potencial de trazer para o campo de esquerda e evitar que esse país piore ainda mais, mas disputar também a narrativa e a memória do tempo presente, porque esses dois campos de luta se somam e se retroalimentam.

    Vários livros têm sido escritos, várias páginas de internet e outros canais de redes sociais, temos também shows Lula Livre e outras iniciativas que junto com o acampamento aqui em Curitiba têm me dado força e esperança. Sabemos que a luta é dura e não vai ser fácil, mas não vamos esmorecer, nem nos curvar diante dela. Assim, recebo esse livro como mais um estímulo e força para seguir firme e esperançoso.

    Percebe-se que no impeachment houve uma disputa de narrativa entre escritores que analisaram o fato histórico do lado de lá, tentando legitimá-lo (e isso é importante: conhecer os argumentos para poder se contrapor) e do lado de cá, mostrando os absurdos que aconteceram. As opiniões e análises dos nossos companheiros que estiveram no Governo e no Parlamento, de juristas importantes e experientes no tema, além de lideranças que estiveram na rua, buscando uma síntese com algumas reflexões teóricas é um exercício importante de tentar compreender o processo e melhorar nossa luta política. Contudo, percebe-se também que nesta disputa de narrativa agora, no caso do meu processo e condenação, o lado de lá tem mais dificuldade de justificar, ou seja, há um certo silêncio em relação a legitimidade deste processo, faltam argumentos, faltam justificativas, só o que não falta é vergonha na cara deles reconhecerem o erro que cometeram, voltar atrás e permitirem que o povo faça esse julgamento através do voto nessas eleições.

    Enfim, temos neste livro uma leitura crítica sem receio de ouvir os dois lados e acho isso importante. Eu mesmo nunca tive problema nenhum com críticas, ainda que não é qualquer crítica. Aquelas bem fundamentadas, a gente escuta e analisa como podem nos ajudar a crescer, outras a gente entende que são posicionamentos diferentes e até compreende a posição do outro, não necessariamente precisam ser consideradas, mas a reflexão é sempre positiva.

    Meus agradecimentos ao professor e deputado Pedro Uczai do PT de Santa Catarina (e, todos os que deram entrevistas e contribuíram com esse trabalho) pela sua iniciativa e esforço. Diante de tantos desafios e tarefas da sua atuação parlamentar, muito ativa na defesa da educação, dos trabalhadores e de outros temas importantes, ainda se dedica e se coloca na responsabilidade de contribuir com o registro histórico de opiniões e visões tão importantes, de combinar, enfim, essa luta política com a disputa de narrativa e com a reflexão crítica sempre necessária.

    Curitiba, agosto de 2018

    Introdução

    Ainda antes do domingo, dia 17 de abril de 2016, e, desta data até a quarta-feira, dia 31 de agosto de 2016, muita coisa foi escrita sobre o Golpe de Estado que ocorreu no Brasil nesse período, a exemplo de acontecimentos anteriores em Honduras (2009) e no Paraguai (2012) e posteriormente na Bolívia (2019).

    Por um lado, foram artigos de opinião em blogs, jornais e revistas, textos e artigos em redes sociais, documentos e manifestos de entidades, entidades, movimentos sociais e sindicais no Brasil e no exterior; inclusive, alguns livros foram lançados como forma de pressão e disputa de opiniões, questionando e desconstruindo os argumentos dos defensores do golpe. Por outro lado, ocorreram intensas mobilizações nos bastidores políticos em todas as esferas do executivo, legislativo e judiciário, uma ampla cobertura midiática e uma estratégia de marketing profissionalmente montada com base nas redes sociais para obter grandes repercussões e mobilizar pessoas para as ruas. Por isso, em tempos de Sociedade em Rede (CASTELLS, 1999), o golpe de 2016 tornou-se o acontecimento mais importante do ano, um dos fatos históricos mais intensos das últimas três décadas da jovem democracia brasileira e, provavelmente, a decisão que irá marcar as clivagens políticas no Brasil, a curto e médio prazos.

    Até o dia 31 de agosto de 2016, um dos lados insistia em disputar a narrativa tentando convencer que se tratava de um processo legítimo de cassação de mandato executivo, fundamentado no mérito e no procedimento previsto na Constituição Federal como caso de impeachment. Para esses, o termo golpe causou tanto impacto que motivou o deputado federal Júlio Lopes (PP-RJ), no dia cinco de maio de 2016, a solicitar à Procuradoria Parlamentar da Câmara dos Deputados que encaminhasse ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de liminar notificando a presidenta (afastada) Dilma Rousseff e pedindo esclarecimentos sobre o uso do termo Golpe em seus discursos. Este pedido foi acatado liminarmente pela ministra do STF, Rosa Weber, que notificou a presidenta Dilma com extrema brevidade, já no dia dez de maio, citando tal referência. Em 10 de agosto do mesmo ano, os próprios senadores da base de apoio da Presidenta se reuniram com ela para negociar a retirada do termo Golpe da carta que seria encaminhada ao Senado, alegando não ser prudente politicamente. Dilma Rousseff cedeu à argumentação, mas reafirmou que o uso deste termo era correto e não havia outra definição para esse processo.

    Depois do fato consumado, parece que houve um recuo ou um abandono na tentativa de disputar essa narrativa, seja porque os interesses estivessem alcançados seja porque os argumentos em que se baseavam não mais se sustentassem diante dos fatos e das contestações de ordem jurídica e política.

    De acordo com o Dicionário de Política de Norberto Bobbio (1998) [ 01 ], Golpe de Estado é um ato realizado por órgãos do próprio Estado. Segundo Bobbio, as características se mantêm; porém, mudam os atores que promovem os Golpes de Estado, podendo ser o soberano (que está à frente do poder), os titulares do poder legal ou um setor específico dos funcionários públicos (na maioria dos casos os militares). Para que ocorra um golpe de Estado é necessário ocupar e controlar os centros de poder tecnológico do Estado, ou seja, os setores chaves do poder. Assim, os golpes modernos são baseados na violência intrínseca do ato com o mínimo emprego possível de violência física. O autor ressalta ainda que os Golpes buscam reconhecimento de outros países, pois precisam de legitimidade para impor mudanças no ordenamento jurídico; nem sempre, porém, produz modificações substanciais nas relações políticas, econômicas e sociais (a experiência histórica mostra até o contrário). Enfim, Norberto Bobbio sintetiza seu verbete sobre Golpe de Estado em cinco pontos e conclui que:

    1) Na tradição histórica, o Golpe de Estado é um ato efetuado por órgãos do Estado. Em suas manifestações atuais, o Golpe de Estado, na maioria dos casos, é levado a cabo por um grupo militar ou pelas forças armadas como um todo. Num caso contrário, a atitude das forças armadas é de neutralidade-cumplicidade.

    2) As consequências mais comuns (habituais) do Golpe de Estado consistem na simples mudança da liderança política.

    3) O Golpe de Estado pode ser acompanhado e/ou seguido de mobilização política e/ou social, embora isso não seja um elemento normal ou necessário do próprio golpe.

    4) Habitualmente, o Golpe de Estado é seguido do reforço da máquina burocrática e policial do Estado.

    5) Uma das consequências mais típicas do fenômeno acontece nas formas de agregação da instância política, já que é característica normal a eliminação ou a dissolução dos partidos políticos. (BOBBIO, 1998).

    Portanto, há um contexto repleto de enfoques possíveis para compor uma narrativa que defina os acontecimentos históricos ocorridos no Brasil em 2016 como Golpe de Estado.

    Para se entender o Golpe de 2016, o que menos importa são os motivos escolhidos para a abertura do processo, baseado na escolha de uma das denúncias contra a Presidenta Dilma – a de que considerou crime de responsabilidade as chamadas pedaladas fiscais, comuns em todos os governos anteriores, tanto no âmbito federal como nos estados; tampouco o rito processual, que serviu mais de espetáculo midiático dos parlamentares do que de qualquer discussão de mérito. Entende-se aqui que o ponto central do Golpe foi a atuação dos atores do processo, que passaram a controlar setores chave do poder político (executivo, legislativo, judiciário e de dois setores específicos de funcionários públicos - Ministério Público e Polícia Federal - articulados com outros dois poderes importantes: a elite econômica e a mídia). A eles se somou a mobilização política e social.

    Essa hipótese servirá de roteiro para este livro, que irá investigar o processo através de pesquisa bibliográfica, fontes da internet (com o devido cuidado metodológico) e, principalmente, usando de entrevistas com atores que, além de vivenciar o processo, tiveram papel de interpretar ou produzir opiniões importantes nessa disputa. Com isso, busca-se apresentar uma narrativa dividida em três partes. Inicialmente, faz-se uma revisão da literatura produzida no meio acadêmico e publicada sobre o tema do Golpe até o final do ano de 2017. A segunda parte trata do Golpe visto por dentro, a partir do olhar político, jurídico e da descrição dos movimentos de rua. A terceira parte versa sobre a continuidade do Golpe, a partir da prisão política do Presidente Lula.

    O primeiro capítulo, inicialmente, traz uma revisão da literatura sobre o Golpe, obviamente incompleta, pois, trata-se de um tema do tempo presente, em que este livro e outros estão ainda em construção. No entanto, busca-se fazer uma análise crítica das diferentes abordagens das publicações e mesmo de algumas pesquisas ou artigos publicados no âmbito acadêmico. Neste capítulo busca-se também organizar uma cronologia e uma narrativa do processo do Golpe para facilitar a compreensão e os contextos das análises posteriores.

    O capítulo dois trata do golpe sob o ponto de vista da dimensão político-parlamentar, através de uma contextualização da atual legislatura no Congresso Nacional, numa análise histórica do sistema político brasileiro dentro do modelo do presidencialismo de coalizão. Depois, apresenta um mapa da atual correlação de forças no parlamento brasileiro e uma análise das entrevistas realizadas com alguns parlamentares, escolhidos com base no seu protagonismo nesse processo.

    O capítulo três aborda o Golpe sob o ponto de vista da dimensão técnica e política do poder jurídico, dialogando com a literatura recente que aborda o mesmo tema, contextualizando a composição e funcionamento das instâncias do Poder Judiciário no Brasil à luz da compreensão liberal do Estado Democrático de Direito. Na sequência, este capítulo também apresenta uma análise das entrevistas realizadas com atores com papel importante nesses episódios.

    O quarto capítulo versa sobre o Golpe a partir da dimensão sociopolítica das ruas, através de uma síntese teórica sobre a democracia representativa e uma das suas dimensões fundamentais que é a formação da opinião pública no contexto dos movimentos de rua de 2013 em diante, passando pelas eleições de 2014 e sua continuidade em 2015 até o afastamento da Presidente Dilma em 2016. Foram também entrevistados alguns personagens que protagonizaram esses movimentos de rua, dialogando sobre suas ideias, seus métodos e opinião sobre os resultados.

    Por fim, no quinto capítulo, são entrevistados alguns personagens políticos, de diferentes partidos, que opinam e analisam o significado do Golpe para a democracia brasileira e a sua continuidade com a prisão política do Presidente Lula.

    Assim, busca-se registrar um dos acontecimentos mais importantes na história recente do Brasil no calor dos seus desdobramentos. Trata-se de um tema ainda controverso, cujas consequências estão em sua fase inicial. Portanto, não se pretende alcançar uma interpretação definitiva, mas, acrescentar algo de novo ao conjunto da literatura que vem sendo produzida até agora sobre o Golpe de 2016.

    A novidade desta publicação é apresentar um olhar sobre o Golpe a partir de diferentes dimensões, buscando interpretar o processo com base em múltiplas visões. Trata-se de uma leitura do tempo presente escrita por diferentes autores, que realizaram as entrevistas, analisaram e escreveram os diferentes textos publicados aqui em capítulos, a partir da iniciativa de elaborar um projeto de construção coletiva. Fica aqui, pois, nosso agradecimento a todos (as) que se envolveram, contribuíram e permitiram que essa proposta se tornasse uma realidade.

    Gratidão.

    Pedro Uczai

    Organizador

    Prefácio

    Impeachment de Dilma e prisão de Lula: duas faces do Autoritarismo Líquido

    Pedro Serrano

    Desde 2007, pelo menos, venho desenvolvendo pesquisas nas quais busco demonstrar que, em todo o mundo, o autoritarismo sofreu mudanças importantes em sua forma instrumental. O autoritarismo típico dos regimes governamentais de exceção do século XX passa a dar lugar a uma nova modalidade, mais fluida, a qual chamo de autoritarismo líquido, e que se caracteriza pela adoção de medidas de exceção em um contexto aparentemente constitucional e democrático. O autoritarismo líquido é um mecanismo mais evoluído de autoritarismo, porque embora extremamente violento, é mais sutil, menos evidente, fragmentário.

    Na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, o sistema de justiça tem atuado como agente fundamental dessas medidas de exceção, que se subdividem em duas categorias principais: impeachments inconstitucionais – como os que ocorreram em Honduras, Paraguai e Brasil – e processos penais de exceção, utilizados como instrumentos de persecução de lideranças políticas. No caso brasileiro, o golpe de 2016, que culminou com o impeachment de Dilma Rousseff, e o processo que levou à condenação e à prisão do ex-presidente Lula – casos emblemáticos de que trata este livro – são também exemplos dessa nova modalidade de autoritarismo líquido da atualidade.

    A ruptura institucional representada pelo processo de impeachment instaurado contra a presidente Dilma Rousseff, que resultou na perda do mandato dela, em decisão determinada pelo Senado Federal no dia 31 de agosto de 2016, caracteriza-se como medida típica dos mecanismos de exceção empregados na contemporaneidade, revestidos de constitucionalidade e sem a instauração de um governo de exceção ou ditadura. Assim como ocorreu em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012, observa-se, neste caso de 2016, a deposição de uma mandatária eleita pelo voto popular, por meio de dispositivos formais que conferem ao processo a aparência de legitimidade democrática, empregando-se, no entanto, acusações que carecem de respaldo jurídico.

    Para a compreensão da invalidade dessa medida, apresento alguns dos requisitos jurídicos que ensejam a cominação da infração político administrativa de impeachment. A aplicação do impeachment ao presidente da República face à prática de conduta típica – ilícita – no exercício de suas funções é um recurso excepcional e que demanda o acolhimento de uma compreensão da Constituição à luz dos princípios republicano e democrático, devendo-se evitar a compreensão literal e isolada dos artigos 85 e 86 da Constituição brasileira e da lei nº 1.079/50.

    Como se sabe, a investidura de um mandado representativo submete os agentes públicos ao exercício do múnus, ou seja, a um conjunto de deveres e responsabilidades, em benefício da coletividade. Trata-se de uma decorrência do princípio republicano, que é o alicerce do Estado brasileiro. Em outras palavras, ao longo do exercício do mandato popular, os representantes podem ser responsabilizados por atos praticados no decorrer deste mesmo mandato.

    Em regimes presidencialistas, o chefe de governo e de Estado – reunidos em uma só pessoa – pode sofrer o impedimento de seu mandato pelo Legislativo, mas apenas com a comprovação de condutas caracterizadoras de ilícitos e mediante métodos processuais que garantam a ampla defesa e o direito ao contraditório.

    Conforme estipulado no artigo 85 da Constituição, o presidente poderá sujeitar-se à medida de perda do mandato por infração político-administrativa, desde que preenchidos determinados requisitos. Eles compreendem, basicamente, uma intencional violação do dever e a prática de conduta típica no exercício do mandato atual. Isso significa que o crime de responsabilidade deve ser compreendido à luz do princípio republicano, o qual é assinalado pela eletividade, pela responsabilidade e, essencialmente, pela periodicidade dos mandatos. Nesse cenário, não há possibilidade de se requerer o impeachment do presidente da República por ato praticado em mandato anterior.

    O impeachment é, em primeira análise, um mecanismo do Legislativo para controlar os membros do Executivo. Talvez por essa razão sustentou-se que o processo por crime de responsabilidade teria natureza essencialmente política. Paulo Brossard de Souza já alertava que o impeachment tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e julgado segundo critérios políticos – julgamento que não exclui, antes supõe, é óbvio, a adoção de critérios jurídicos.

    Com efeito, o processamento e julgamento do crime de responsabilidade pelo Legislativo ocorrem dentro do exercício de uma competência atípica, estranha à função primária do poder parlamentar na divisão de funções estatais na República. Ainda que atípica, a função exercida pelo Legislativo ocorre nos quadrantes do conceito de função política do Estado. Deve-se afastar, assim, a arbitrariedade e a discricionariedade na concretização dos conceitos indeterminados da definição legal típica dos crimes de responsabilidade. Por essa razão é que, quando se usa a expressão processo e julgamento políticos, para tal forma de juízo não se quer dizer julgamento segundo a vontade integralmente autônoma e livre, inclusive com eventual dispensa do devido processo legal.

    É necessário o preenchimento dos seguintes requisitos para a instauração do processo de impeachment: (a) prática de conduta típica por parte do Presidente da República durante o exercício do mandato e no exercício das funções e (b) culpabilidade estrita.

    A conduta típica compreende uma ação ajustada a um modelo legal de conduta proibida capitulada no art. 85 da Constituição, o qual prevê que são crimes de responsabilidade aqueles que atentem contra (a) a existência da União; (b) o livre exercício do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público e dos poderes constitucionais das unidades da Federação; (c) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; (d) a segurança interna do País; (e) a probidade na administração; (f ) a lei orçamentária; e, por fim, (g) o cumprimento das leis e das decisões judiciais. A Lei n.º 1.079/1950 deve ser interpretada consideradas as determinações constitucionais, especialmente referido rol de condutas típicas. Importante notar que a Constituição não fala em mera inconstitucionalidade ou ilegalidade a ensejar a tipificação do delito político, mas um atentado a Constituição, ou seja conduta dotada de alta gravidade e excepcionalidade

    A expressão ‘golpe’ para designar impeachments abusivos não foi inventada por ativistas brasileiros, mas um dos maiores juristas do século XX , Ronald Dworkin , usou a expressão para designar o impeachment produzido num Presidencialismo constitucional e democrático fora de circunstancias muito graves ,excepcionais e de emergência. [ 02 ]

    A prática de conduta típica durante o mandato e no exercício das funções deve ser cabalmente demonstrada, inclusive mediante a confirmação de um conjunto probatório requerido para as sanções penais. Assim é que a primeira condição disposta pela Constituição é que haja um ato praticado pelo Presidente da República. Portanto, uma conduta ativa ou ao menos o que se possa chamar de omissão comissiva, uma omissão estimuladora, praticada na qualidade de Presidente da República. Não basta, portanto, a simples omissão. Nessa linha é o entendimento do exímio Lenio Luiz Streck, para o qual é preciso que se demonstre o dolo, a intenção de cometer o crime, não bastando, simplesmente, a omissão [ 03 ].

    Frise-se, assim, que a conduta tida como delitiva não deve circunscrever-se à mera decisão subjetiva quanto ao cumprimento de certos valores ideológicos. Ao eleitor cabe o juízo ideológico do governo, não ao Legislativo. Há que se oferecer, ainda, prazo razoável de defesa e a devida dilação probatória.

    Não é o fato de o ato ser praticado pelo Legislativo que, por si só, confere legitimidade constitucional ao ato, sob pena de a ele se conferir a função de imperador, que nenhuma autoridade do Estado Constitucional de Direito possui.

    O devido processo legal não é uma mera pantomima formal. Assim é que os requisitos jurídicos para a instauração do processo de impeachment do Presidente da República, bem como o processo respectivo, ainda que vise cominar infração político-administrativa, deve seguir o rigoroso rito e a tipologia constitucional estrita.

    A característica maior do Estado de Direito está na submissão do político ao Direito. Isso significa que não há decisão política no âmbito do Estado de Direito que tenha tom ou caráter absolutista. Toda decisão, por mais discricionária e aparentemente livre e autônoma que seja, quando adotada pelo Estado, será sempre, de alguma forma, heterônoma, isto é, condicionada pela ordem jurídica. O fato de o julgamento do crime de responsabilidade decorrer do exercício de uma função política do Estado não é permissão para que se atente contra os direitos fundamentais e o Estado de Direito. Assim, a aplicação de sanções no processo de crime de responsabilidade demanda o atendimento de requisitos para sua incidência válida.

    No caso específico do processo contra a presidente Dilma Rousseff, manifestou-se mais uma vez uma medida de exceção típica do nosso século, uma vez que os requisitos jurídicos necessários não estavam presentes. A principal evidência da ausência de conduta típica, ou seja, de crime de responsabilidade praticado pela presidente, é o fato de que, apesar de aprovar o impeachment por 61 votos a 20, o Senado Federal, por 42 votos a 36, decidiu não cassar também os seus direitos políticos. Tal contradição explicita que a decisão pelo afastamento definitivo da presidente Dilma Rousseff não foi estritamente constitucional, uma vez que seus julgadores não reconheceram gravidade na sua conduta. Isso significa, ao mesmo tempo, que não existe crime de responsabilidade e, para que haja o impeachment, como já referido, a Constituição exige a gravidade. Logo, os senadores reconheceram, implicitamente, que não houve motivo constitucional para o impeachment.

    O impeachment da presidente Dilma Rousseff, sem fundamentação jurídica, foi a concretização de uma medida de exceção com a finalidade política de interromper inconstitucional e agressivamente um mandato legítimo, suprimindo a soberania popular e o direito político de mais de 54 milhões de pessoas, esvaziando, assim, a democracia. Com os argumentos falaciosos da ingovernabilidade política e econômica e da necessidade de se combater a corrupção, justificou-se essa grave suspensão de direitos, a exemplo do que ocorre inevitavelmente quando se lança mão de uma medida de exceção.

    Assim como os procedimentos e ritos para destituição de governos eleitos, os processos penais de exceção se revestem de uma aparente normalidade institucional. No entanto, embora na forma pareçam estar de acordo com as regras democráticas e constitucionais, no mérito, em seu conteúdo, são ações políticas tirânicas de perseguição a inimigos políticos. O réu não é tratado como cidadão que eventualmente errou, mas sim como inimigo, alguém destituído de sua condição humana, sem direito à proteção jurídica mínima.

    Como venho afirmando em minhas publicações, no Brasil, essa experiência de inquéritos e processos penais de exceção se desenvolveu como técnica a partir da importação da política de guerra às drogas, usada como forma de controle social da juventude negra das periferias das grandes cidades, e instaurada sob o pretexto de se combater o traficante ou, de forma ainda mais dispersa e indefinida, o bandido. Esse método foi transferido para a seara política, atingindo, num primeiro momento, investigados no caso do Mensalão e, depois, envolvidos em operações rumorosas como a Lava Jato, chegando ao ápice com a condenação do ex-presidente Lula.

    No caso específico de Lula, há muito alertava-se sobre sua condenação, que seria o desfecho esperado do recrudescimento de uma estrutura política de extrema-direita, que vinha se alojando paulatinamente no sistema de justiça. A sentença do ex-juiz Sergio Moro foi a conclusão de um processo fraudulento típico das medidas de exceção do autoritarismo líquido dos nossos dias. Apesar de aparentemente ter cumprido as regras democráticas e as normas legais, o processo consistiu-se em uma fraude, uma decisão autoritária e inconstitucional, que não observou sequer marcos mínimos de civilidade. Não seria preciso nenhum outro elemento além da leitura técnica e desapaixonada dos autos para se notar que se trata de um processo cujo standard probatório e observação de regras formais são inaceitáveis no plano das normas processuais brasileiras e da nossa Constituição.

    A troca de mensagens entre procuradores e juízes, revelada pelo site The Intercept, trazem à tona a prova cabal de que não houve um processo penal de acordo com o conceito jurídico do que seja um processo penal – aquele que assegura ao acusado a proteção de seus direitos fundamentais. O que houve foi uma articulação entre Ministério Público e juiz com a finalidade de condenar o réu. Os diálogos evidenciam que o juiz não apenas aconselhou e dirigiu as investigações, o que já seria inadmissível, mas também comandou uma articulação constante, passo a passo, para movimentar tanto a opinião pública, quanto os atos processuais em si. Lula foi condenado pela soberania bruta do Estado, sem mediação de direitos.

    As gravações mostraram, de forma escancarada, que agentes do sistema de justiça produziram processos penais com finalidade de ação política, inclusive, político-partidária, o que é algo escandaloso na história do judiciário brasileiro. Quando se leva em conta que um dos réus era um dos principais candidatos à Presidência da República, inclusive do campo popular, isso adquire uma dimensão política ainda maior, pois se caracteriza como medida de exceção com implicações diretas no principal pleito eleitoral do país. Houve um ataque imediato e intenso à democracia no Brasil, que não pode ser menosprezado. Foram atacados não apenas os direitos das pessoas envolvidas, mas a própria democracia.

    Importante observar que essa prática de autoritarismo líquido que destitui governos democraticamente eleitos e se utiliza do sistema de justiça para perseguir inimigos políticos também tem servido para dar espaço ao surgimento de líderes autoritários como os da atualidade, de que Bolsonaro, no Brasil, e Trump, nos EUA são exemplos. Como em um balão de ensaio, o autoritarismo vai sendo experimentado e produzindo o adensamento dessa ideologia autoritária, que se traduz num populismo de extrema-direita diferente do populismo de extrema-direita do século XX, justamente porque se estabelece no meio desse mecanismo líquido de autoritarismo. Os líderes autoritários da atualidade chegam ao poder pela via da democracia, fazendo uso de direitos e de estruturas da democracia. Sem precisar romper com o ciclo democrático e, em certa medida, utilizando-se disso como um trunfo, praticam cotidianamente medidas de exceção, fundamentando-as ideologicamente.

    PARTE I

    Introdução ao tema

    do Golpe de 2016

    Capítulo 1

    Literatura sobre o Golpe

    José Roberto Paludo [ 04 ]

    Optou-se aqui por apresentar inicialmente dois levantamentos bibliográficos: o primeiro com base no Catálogo de Teses e Dissertações da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes); o segundo, por uma pesquisa no Google Acadêmico, selecionando publicações científicas que incluem Trabalhos de Conclusão de Cursos (TCC), Dissertações e Teses, bem como artigos publicados em revistas científicas, anais de encontros e congressos e outras publicações relevantes.

    Posteriormente, fez-se uma revisão de uma parte das publicações em livros impressos e eletrônicos, incluindo alguns artigos relevantes.

    O trabalho inicial é o de levantamento de Teses e Dissertações no Catálogo da Capes, complementado pela pesquisa no Google Acadêmico que inclui também TCC’s e artigos publicados em revistas científicas e trabalhos apresentados e registrados em anais de eventos acadêmicos. Esse levantamento demonstra a relevância do tema: (e que) apesar de tratar-se de um assunto da atualidade, já existe à disposição um volume considerável de produção científica e acadêmica, que utiliza vasta quantidade de fontes primárias, especialmente nas redes sociais [ 05 ].

    Neste mapeamento utilizou-se das palavras-chaves: "Impeachment Dilma; e, Golpe 2016", analisando o período de 2016 e 2017, no qual, obtiveram-se uma tese de doutorado, 17 dissertações de mestrado, nove TCC’s, 23 artigos acadêmicos publicados em revistas científicas e 12 trabalhos registrados em anais de encontros e congressos acadêmicos.

    Gráfico 1 - Classificação dos tipos de publicações acadêmicas sobre o tema do Golpe

    Fonte: CAPES e Google Acadêmico. Gráfico construído pelo autor

    Em relação à área do conhecimento, de acordo com a classificação da plataforma Lattes, constatou-se que a maior produção acadêmica se encontra no campo da ciência da comunicação, em mídias tradicionais e em mídias sociais, seguida das áreas de ciência política, sociologia, direito, linguística, economia e políticas públicas. A tabela a seguir apresenta uma classificação dessas publicações com base no campo do conhecimento em áreas e temas específicos:

    Tabela 1 – Principais áreas do conhecimento que abordam o Golpe

    Fonte: CAPES e Google Acadêmico. Tabela construída pelo autor.

    Enfim, o terceiro critério de análise deste levantamento se refere ao tipo das instituições que publicaram essas abordagens, divididas entre: Universidades Federais; Universidades Estaduais (USP e UNESP); Pontifícias Universidades Católicas (PUC); outras universidades; e outras instituições [ 06 ], conforme gráfico que segue:

    Gráfico 2 – Tipo de instituições que publicaram estudos sobre o Golpe

    Fonte: CAPES e Google Acadêmico. Gráfico construído pelo autor.

    Nestas escolhas, deixou-se de catalogar importantes artigos e publicações em blogs e sites específicos que merecem atenção, sem contar nas publicações internacionais. Ressalta-se que foram priorizadas as publicações escritas, que não se levou em conta a diversidade e qualidade de publicações em outras linguagens, como as imagens fotográficas e iconográficas usadas na internet, vídeos de eventos e entrevistas e uma diversidade de manifestações artísticas.

    Uma revisão da literatura publicada em livros sobre o Golpe 2016

    Trata-se aqui das publicações transformadas em livros físicos e digitais, sobre a literatura do Golpe. Mais do que o mapeamento dessas fontes, buscar-se-á dialogar com os autores a partir dos principais argumentos.

    Inicialmente pode-se afirmar que não há literatura neutra sobre esse tema, pois, de um lado estão as publicações empenhadas em legitimar o processo de impeachment, e, de outro lado, os autores que questionam, criticam e denunciam diferentes dimensões do Golpe.

    Em síntese, pode-se dividir as publicações mapeadas em três grandes áreas: abordagem política (em geral com uma linguagem jornalística); análise econômica; e análise teórica.

    Sobre a abordagem política, foram mapeadas as obras posicionadas para dar legitimidade ao impeachment : MORENO, 2017; WESTIN, 2017; e VILLAVERDE, 2016); contrapondo-se ao golpe, foram consultadas: ALMEIDA, 2016; AMARAL, 2016; JINKINGS et al, 2016; PRONER et al, 2016; ROVAI, 2016; IASI, 2014; PIMENTA, 2016; e RAMOS et al, 2016.

    Em relação à abordagem econômica, do lado dos que buscam legitimar o impeachment , SAFATLE, BORGES & OLIVEIRA, 2016; e LEITÃO, 2017; e contrário ao golpe (GUERRA et al, 2017).

    Finalmente, em relação à abordagem teórica foram selecionadas duas obras: A radiografia do golpe (SOUZA, 2016) e A democracia impedida (SANTOS, 2017).

    Posicionados pela legitimação do impeachment

    Os autores posicionados pela legitimidade do golpe, que trazem uma abordagem política sobre o tema, o jornalista Jorge Bastos Moreno [ 07 ] publicou em março de 2017 o livro intitulado Ascensão e Queda de Dilma Rousseff: Tuítes sobre os Bastidores do Governo Petista e o Diário da Crise que Levou à sua Ruína (MORENO, 2017), no qual faz uma narrativa do processo de impeachment com base em notas selecionadas de seu twitter Blog do Moreno, com capítulos mensais desde junho de 2010 até agosto de 2016. O autor inicia o capítulo com um breve relato dos principais fatos repercutidos pela mídia em maio de 2016, no Brasil e no mundo, seguindo depois algumas notas selecionadas do seu twitter.

    Essa narrativa permite um acompanhamento cronológico do processo, fazendo o leitor reviver momentos passados, porém, de forma bastante sintética, a partir do posicionamento do autor, que sempre foi muito crítico ao PT, ao Lula e ao PMDB (partido que o autor cobriu, como jornalista político, por 40 anos). Dizendo-se admirador de Dilma, especialmente pela postura da Presidente em relação à agenda chamada de faxina, sempre se mostra condescendente em seus comentários. Ao final, o autor demonstra-se convencido da legitimidade do impeachment: "14/04/2016 – É nesse

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