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Representação além das eleições: Repensando as fronteiras entre estado e Sociedade
Representação além das eleições: Repensando as fronteiras entre estado e Sociedade
Representação além das eleições: Repensando as fronteiras entre estado e Sociedade
E-book498 páginas5 horas

Representação além das eleições: Repensando as fronteiras entre estado e Sociedade

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Sobre este e-book

O que é representação política e quais são os critérios que a de finem como democrática? Para responder tais questões, esta obra defende que é preciso considerar três dimensões distintas e inter relacionadas, a saber, quem representa, o que se representa e como se representa.
Este livro propõe uma rede nição do conceito de representação que acentue suas dimensões processual e criativa.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de fev. de 2017
ISBN9788546202409
Representação além das eleições: Repensando as fronteiras entre estado e Sociedade

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    Pré-visualização do livro

    Representação além das eleições - Debora Rezende de Almeida

    Final

    Apresentação

    Este trabalho é uma revisão da minha tese de doutorado, defendida em 2011, no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, a qual recebeu Menção Honrosa do Prêmio Capes de Teses, Edição 2011. Apesar de apresentar a discussão central proposta na tese, o texto foi remodelado e revisado em sua divisão de capítulos, com vistas a aperfeiçoar a sua organização para o desenho de um livro.

    A discussão teórica sobre a reformulação do conceito de representação política na contemporaneidade foi priorizada, o que demandou a exclusão do terceiro capítulo da tese, o qual fazia uma imersão no desenvolvimento da representação política no país, desde o período do Império. Além disso, o último capítulo apresenta uma discussão mais conceitual e geral da representação nas instituições participativas, sem uma preocupação em comparar conselhos municipais de saúde e comitês de bacia hidrográfica, tal qual formato inicial. Todavia, alguns resultados de pesquisas empíricas nestes e em outros espaços são mobilizados para explicar as especificidades da representação exercida por atores coletivos.

    Por fim, o texto que ora se apresenta ao leitor introduz algumas reformulações teóricas, fruto da reflexão sobre o tema ao longo destes últimos três anos, as quais foram publicadas na forma de artigos em periódicos científicos, papers em congressos acadêmicos nacionais e internacionais ou capítulos de coletâneas. A inclusão, contudo, é pontual, e orientada pelos objetivos e parâmetros discutidos no livro. As principais publicações incorporadas de períodicos são o artigo Representação política e conferências: os desafios da inclusão da pluralidade, publicado nos Textos para Discussão, IPEA, n. 1750, 2012, p. 1-46; a resenha Deliberative systems: deliberative democracy at the large scale, publicada na Revista Brasileira de Ciência Política, n. 11, p. 243-255, maio/agosto, 2013; o artigo Pluralização da representação política e legitimidade democrática: lições das instituições participativas no Brasil, na Opinião Pública, v. 20, n. 1, p. 96-117, 2014, e o artigo Representação como processo: a relação Estado/sociedade na teoria política contemporânea, que saiu na Revista de Sociologia e Política, v. 22, n. 50, p. 175-199, 2014. Os dois últimos artigos foram fundamentais para seção do Capítulo 4 deste livro que repensa o conceito de representação. Quanto aos capítulos de livros, cito o artigo Representação política e conferências: estabelecendo uma agenda de pesquisa, publicado no livro Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade, pelo IPEA, 2013. Entre os artigos de congresso se destacam dois textos publicados em conjunto com Eleonora Cunha nos congressos da Associação de Estudos Latinoamericanos (LASA), em 2012 e 2013, respectivamente As dinâmicas da representação: a complexidade da interação institucional nas cidades brasileiras e Sociedade civil e representação nas arenas deliberativas da Assistência Social no Brasil. Por fim, participei do IX Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), em 2014, Brasília, apresentando o texto Onde está a sociedade na sociedade civil organizada? articulação deliberativa e accountability nas instituições participativas, de autoria conjunta com Eleonora Cunha, e no 38º Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gradução em Ciências Sociais (Anpocs), em Caxambú, com o paper Inclusão política nos arranjos participativos: velhos dilemas, novas leituras". Estes dois textos contribuíram com a reflexão sobre sistemas deliberativos e sua importância para a accountability da sociedade civil.

    Prefácio

    O livro Representação além das eleições é um grande livro que amplia, qualifica e avança os debates sobre representação no Brasil. Há mais de uma década um importante debate sobre representação está sendo travado no Brasil e envolve dois pontos principais: a desvinculação entre representação e autorização eleitoral e as novas formas de representação. O monopólio eleitoral da representação está em crise em todas as importantes democracias do mundo, onde ou os níveis de satisfação e identidade com a representação são muito baixos ou os cidadãos querem revisões importantes das suas escolhas eleitorais. Em torno destas questões é que vai se firmando a ideia de que a consolidação da democracia passa também por uma forte revisão do conceito de representação. Debora Almeida oferece ao leitor contribuições decisivas nesta direção.

    A principal contribuição teórica do livro é a sistematização do debate sobre representação em torno de três perguntas: quem representa, o que se representa e como se representa. Debora Almeida inicia a sua discussão pela pergunta quem representa notando que a tradição contratualista estabelece firmemente a ideia do consentimento voluntário e individual para a compatibilização entre soberania e legitimidade. A questão fundamental é que a diferenciação entre representante e representado gerada por esta tradição exige uma forma de conexão entre os dois. Aí reside a justificativa política das eleições enquanto a forma por excelência do vínculo entre representante e representado que para o pensamento liberal oferece a primeira solução para o problema de quem representa.

    Uma vez apontada a origem deste problema, Almeida passa a abordar a questão do que se representa. A autora realiza uma discussão muito importante ao mostrar que desde as origens do debate sobre representação existe uma crítica à representação de interesses. Ela mostra muito bem que os argumentos em favor da representação de pessoas, de interesses fixos ou desvinculados, estabelecem ao final que existe sim um interesse público. Assim, "representar é dar forma a uma vontade que não existe a priori, é um ato de criação". Mas, ao mesmo tempo que esta perspectiva se estabelece, começamos a entender a magnitude dos problemas envolvidos no processo de representação. Almeida aborda os mais importantes como o fato indubitável de que se o sufrágio resgata a política para a sociedade civil através do voto, ele não consegue derivar deste princípio agregativo os interesses gerais da nação. Colocação importantíssima, a análise da autora lança luz sobre o fato fundamental envolvido na representação, a saber, a necessidade de outras arenas de transformação das preferências capazes de preencher o vazio entre o eleitor e o representante. Chegamos assim à terceira questão: como se representa?

    Ao discutir a questão da forma como se representa, Almeida mostra um amplo conhecimento das diferentes literaturas sobre o assunto, entre as quais ela destaca a ideia um trusteeship, isto é, de alguém que atua visando o interesse ou o benefício do representado. Almeida mostra também outros significados e aborda ao mesmo tempo a questão do mandato imperativo. Ela mostra as diferentes críticas ao mandato imperativo que se centra apenas em um polo da questão da representação, a saber, a atuação em benefício do interesse do representado. A autora opta por teorias que demonstram a complexidade do fenômeno da representação que envolve tanto um objetivo republicano (o bem comum), um objetivo pluralista (o bem de uma das partes), assim como o julgamento do representado através de uma ideia de responsividade. É este último aspecto que envolve quem é o representado e como ele se constitui e se forma. Este constitui o ponto central do argumento do livro, que pretende ir além da questão da representação e abordar o problema de quem é o representante e como ele deve agir. É a partir desta discussão, certamente a mais completa disponível hoje, que Rezende constrói os demais capítulos do seu livro. Nos capítulos 2 e 3, a autora critica Hanna Pitkin por abandonar a consideração de diversas alternativas de relação responsiva entre governantes e governados. Ela mostra que mesmo o pluralismo Dahlsiano não consegue pluralizar suficientemente a representação. Já no Capítulo 3, ela analisa as diferentes dimensões deste problema, tais como a inclusão de grupos na política ou na representação de interesses. Almeida discute diferentes correntes tais como a democracia participativa, as teorias deliberativas e, por último, as teorias radicais ou agonísticas da democracia.

    Por fim, no Capítulo 4, ela examina um dos pontos mais novos e mais polêmicos deste debate, a questão da representação na participação. O ponto de partida de Almeida neste debate é repensar a participação da sociedade civil de forma não espacial. A partir daí avalia as possibilidades democratizantes destes espaços em uma situação de falta de autorização eleitoral. A autora analisa todas as situações nas quais a dimensão descritiva da representação vem sendo testada em diferentes espaços de expressão da sociedade civil. Ela também analisa a redefinição da representação enquanto espaço de "advocacy" isto é de defesa de ideias e temas. Aí aparecem propostas como a representação virtual ou por afinidade. A autora avalia as suas diferentes dimensões apontando para o momento fundacional da representação e dos limites e potencialidades dos diferentes modelos de representação. É deste modo que aparecem novas alternativas no debate sobre a representação que nos permitem ir além da representação eleitoral. A opção da autora é de abordar estas alternativas conceitualmente, apontando para o fato de que a representação só se completa com a participação do representado, uma constatação que lhe permite associar accountability e representação. O resultado desta enorme reavaliação da representação e da participação é chegar à ideia de que a representação deve ser entendida como um processo. Para a autora, as demandas representativas construídas em fóruns deliberativos colocam em questão a re-definição do quem, do que e do como se representa [e] sugere que na prática o processo de legitimação democrática da representação depende do processo de inclusão de atores, da maneira como os espaços ou atores deliberativos apresentam a pluralidade de demandas e são capazes de interagir [...] e do relacionamento mútuo entre representantes e representados.

    Assim, completamos o círculo tendo como ponto de chegada da discussão a mesma questão a partir da qual a autora partiu. Debora Almeida nos apresenta um livro ao mesmo tempo complexo e didático, onde as questões mais complicadas da representação são abordadas e transformadas em novas questões e desconstruídas detalhadamente. Recomendo vivamente este que certamente é o livro mais sofisticado sobre a questão disponível para o leitor brasileiro. Todos aqueles interessados em entender as bases da crise de representação que atravessa o nosso país irão se beneficiar da leitura deste grande livro.

    Leonardo Avritzer

    Introdução

    "Nossos sonhos não cabem nas urnas."

    Esta frase, muito vista nos protestos na Espanha há poucos anos, replicada nas manifestações de junho de 2013 no Brasil e utilizada como lema de vários movimentos de contestação à representação eleitoral, expressa o sentimento de incompletude da democracia, quando centrada no voto. Este livro é sobre esta luta simbólica, teórica e prática a respeito do significado da representação política. É uma luta porque ao mesmo tempo que protestos e experiências participativas tentam reintroduzir o problema da participação para a democracia e romper com a dualidade moderna entre Estado e sociedade, existe um movimento de resistência e tentativa de reafirmar a primazia da representação eleitoral. O embate recente em torno do Decreto n. 8.243, de 23 de maio de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS), é um exemplo claro desta clivagem antiga na teoria política entre participação e representação. Não cabe aqui uma defesa ou crítica a respeito da forma ou conteúdo da política, tampouco uma análise dos usos políticos do decreto. Apenas quero destacar algumas reações paradigmáticas e controversas a respeito do sentido da representação e de qual é o papel da sociedade civil no processo democrático. Entre os debates calorosos que ocorreram seja em veículos de comunicação de grande circulação, seja no interior do Congresso Nacional, é possível citar a ideia de que a PNPS afronta o Poder Legislativo e faz uma mudança de regime por decreto (do representativo para a participação direta). O editorial do Jornal Estadão, de 29 de maio, chega a dizer ora, a participação social numa democracia representativa se dá através dos seus representantes eleitos no Congresso, legitimamente eleitos. Nada mais ilustrativo da limitada compreensão acerca do que constitui a representação democrática. Embora não muito distante do que se convencionou chamar de democracia representativa ou governo representativo.

    Um dos grandes problemas desta posição é que a na igualdade política proporcionada pelo artifício um homem, um voto se mostra cega à diversidade de demandas não expressas pela via eleitoral e às críticas ao sistema representativo e ao mal funcionamento do sistema político no que se refere ao atendimento das necessidades e interesses dos cidadãos. Este não é um problema exclusivamente nacional, mas atinge democracias liberais mais consolidadas. Fenômenos políticos recentes como as crescentes abstenções eleitorais, o declínio da credibilidade dos partidos tradicionais, a distância acentuada entre povo e elite, a opacidade dos mandatos, bem como os escândalos recorrentes de corrupção envolvendo representantes do Executivo e do Legislativo, dão fôlego ao argumento de que estamos diante de uma crise da representação política, ou pelo menos, de um relativo mal-estar em relação à mesma.

    Na última década, as respostas à crise da representação aparecem de maneira mais intensa e inovadora nas Ciências Sociais, a partir de tentativas de retomar sua centralidade no debate teórico. Embora sua prática esteja imbricada na história política da humanidade há pelo menos dois séculos, o debate sobre o próprio conceito da representação política é restrito a algumas referências bibliográficas, entre as quais é notória a influência do livro de Hanna Pitkin, de 1967, The concept of representation e, após três décadas, The principles of representative government, de Bernard Manin. As diferenças no plano teórico entre esses autores são perceptíveis. Na primeira, há um esforço de clarificação e síntese filosófica do conceito, conforme percebem Gurza Lavalle e Araujo (2008), que, no entanto, não está posto em risco ou crítica interna, já que as possibilidades de concreções políticas permanecem situadas no governo representativo e, mais especificamente, nas eleições. No segundo, há uma atenção à reconfiguração da representação e à necessidade de se repensar os fundamentos e instituições básicas do governo representativo. Não obstante os ganhos analíticos e práticos das teorias sobre o governo representativo, o debate foi reduzido aos problemas de organização do sistema e, especificamente, ao papel das eleições na garantia de legitimidade democrática. Desse modo, algumas controvérsias em relação ao conceito não receberam um tratamento adequado, entre as quais destaco a relação entre representação e soberania e a presença de outras formas de representação não inseridas no desenho do Estado moderno (Araujo, 2009; Vieira; Runciman, 2008).

    Recentemente, a emergência de novos canais de interação entre Estado e sociedade, que geram dinâmicas de representação para além das eleições, tem servido de pretexto para um recuo teórico e um resgate do pensamento político, de maneira a fugir dos estudos com foco apenas no governo representativo ou nas suas instituições. Após alguns anos de experiências participativas e emergência de atores que buscam reinserção na esfera pública e no sistema político, é crescente a sensação de que a participação gera dinâmicas de representação que precisam ser elucidadas pela teoria. Assim, começam a surgir análises que apontam para a diferenciação entre a representação eleitoral, territorialmente baseada, de outras formas de representação, chamando atenção para a multiplicidade de tipos de relacionamentos representativos que povoam as democracias contemporâneas (Mansbridge, 2003; Urbinati; Warren, 2008).

    Os exemplos de representação não eleitoral são variados. Em primeiro lugar, destacam-se as arenas de tomada de decisão transnacionais, onde novos atores globais e internacionais operam e que tendem a escapar ao alcance da representação democrática territorial, assim como faz aumentar o número de questões que são de natureza não territorial – Comunidade Europeia e ONGs, por exemplo, a Anistia Internacional e o Green Peace (Held, 1995; Pollak, 2007; Urbinati; Warren, 2008). Em segundo lugar, há o surgimento de uma variedade de experimentos de tomada de decisão coletiva em algumas áreas e questões políticas, tanto no nível nacional quanto supranacional, que estão sob o controle de corpos especializados e experts, com perda de conexão com as instituições tradicionais de representação política, e onde não há lugar para a voz, a influência e o controle dos cidadãos (Castiglione; Warren, 2006). Em terceiro lugar, registra-se o crescimento da demanda por reconhecimento de grupos e por formas de igualdade relacionadas diretamente às necessidades, características, identidades e condições da população, que denunciam a insuficiência dos padrões igualitários e universalistas da representação política atual (Young, 2006). Em quarto lugar, constata-se a difusão de estruturas e oportunidades informais para a representação e influência democrática, responsável por ampliar as formas associativas e de discurso público nas sociedades modernas (Mansbridge, 2003; Dryzek, 2006; Avritzer, 2007a; Abers; Keck, 2007; Keck, 2003). Por fim, deve-se ressaltar, especialmente na América Latina, a crescente influência dos movimentos sociais e as mudanças institucionais ocorridas nas últimas duas décadas que têm dado lugar a estruturas formais de participação no processo de formulação de políticas públicas.

    Esta efervescência em torno do tema da representação política tem gerado uma imersão teórica, pouco tratada nos últimos tempos. A crítica à teoria da representação é pautada por dois movimentos. Primeiro, ela possui um direcionamento interno ao mainstream da teoria política, cujo conceito minimalista de representação democrática está baseado em regimes eleitorais e no governo de minorias (Schumpeter, 1984; Olson, 1999; Sartori, 1994; Dahl, 2001). Segundo, busca-se expandir a compreensão do fenômeno representativo para além das fronteiras do Estado, tendo em vista as evidências empíricas da pluralização da representação da sociedade civil, e, neste sentido, a crítica é externa ao campo consagrado da representação. Este livro olha para este duplo movimento, considerando o reforço mútuo entre eles. Ao mesmo tempo que os limites da representação eleitoral convidam a repensar o conceito e a exclusividade das eleições enquanto canal de expressão popular, o surgimento de novos espaços e dinâmicas, onde os atores agem e falam por outros, sugere a importância de ampliar seus significados. Esta é uma mudança que terá impacto igualmente na prática representativa, uma vez que alerta os atores sociais sobre a importância de estabelecer mecanismos de relacionamento com os seus representados, ou de accountability, antes não tematizados pela leitura participativa destas experiências. Nesse sentido, concordo com a tese de Rosanvallon sobre a necessidade de acompanhar as transformações sofridas pela democracia e o caráter permanentemente aberto dessa forma político-social (Lynch, 2010, p. 30).

    Diante deste cenário, o objetivo do livro é repensar o que é representação política e quais são os critérios que a definem como democrática. Estas questões estão no horizonte dos autores na atualidade, que buscam compreender o significado da representação política, das características do representante e do representado, dos critérios de legitimidade da representação política e das condições de maior inclusão democrática (Pollak, 2007; Rehfeld, 2006; Saward, 2005; Castiglione; Warren, 2006; Bohman, 1996; Gutmann; Thompson, 2004; Young, 2006; Williams, 1998; Phillips, 1995). Desse modo, o conceito de representação política tem recebido uma variedade impressionante de adjetivos, os quais contribuem mais para esconder do que esclarecer o conceito (Pollak, 2007). Alguns adjetivos utilizados pela teoria são: virtual (Burke, 1987; Gurza Lavalle et al., 2006), substantiva, descritiva e simbólica (Pitkin, 1967), promissória, antecipatória, giroscópica e substituta "surrogate" (Mansbridge, 2003), discursiva (Keck, 2003; Dryzek; Niemeyer, 2006a), por afinidade (Avritzer, 2007a) e autoautorizada (Urbinati; Warren, 2008). Esses adjetivos são utilizados para denotar diferentes aspectos e dimensões da representação, o que prova a complexidade e arbitrariedade do conceito.

    Face a essas dificuldades, proponho repensar a representação a partir de três dimensões distintas e inter-relacionadas, a saber, quem representa, o que se representa e como se representa. Estudar a representação política guiada por essas perguntas permitirá analisá-las através do tempo, o que dá margem à percepção de mudança e transformação nas respostas oferecidas pelos teóricos e práticos da política representativa. Conforme defende Pollak (2007), as respostas às questões quem representa o que e por quais meios? são historicamente contigentes. Apesar de o autor discutir estas três dimensões e apresentar diferentes formas de representação e de definição de quem representa (autorização, indicação, sorteio), sua discussão sobre o que se representa se limita à ideia de mandato e a dimensão do como se dilui no debate sobre qual é a função da representação. Devido ao escopo do seu trabalho, também não é objetivo do autor apontar como os diferentes modos de representação se posicionam nas três dimensões elencadas ou repensar critérios e ideias apresentadas por pensadores do governo representativo.

    Neste livro, buscarei avaliar a variação nestas três dimensões considerando as particularidades dos diferentes modos de representar. Embora as três perguntas não esgotem o potencial heurístico do conceito de representação, em certa medida respondem a um conjunto de questionamentos que definem a forma de organização da representação. Ademais, defenderei que estas três questões foram pensadas de maneira integrada na teoria política, uma determinando a outra, e que, embora mutuamente relacionadas, estas dimensões precisam ser avaliadas de forma desagregada. Não existe uma relação direta entre autorização, representação de interesses e controle eleitoral, da mesma maneira que a ausência de consentimento expresso dos cidadãos aos representantes da sociedade civil não implica a necessária ausência de formas de justificação e controle público. Mas, ao mesmo tempo, a forma pela qual indivíduos e grupos se tornam representantes pode impactar o tipo de interesses, valores e opiniões que entram no jogo político. Olhar a representação a partir das três perguntas possibilita negar a simplificação dos seus termos e reafirmar sua natureza multifacetada e contestável, proporcionando uma melhor compreensão da variedade de dinâmicas de representação política e seus desafios para se tornar democrática. Todavia, ao enveredar pela pluralidade das formas de representação na atualidade, uma quarta dimensão aparece com força na análise, a saber, onde se representa. Esta é uma pergunta que recebe um tratamento secundário no livro, a partir do quarto capítulo, mas que foi fundamental para a compreensão das especificidades da representação política e do trânsito frequente e eventual dos atores nas distintas esferas pública e política.

    No que tange ao encontro entre representação e democracia, busca-se também traçar algumas respostas centrais e influentes na teoria política, que tiveram como pano de fundo a ideia de legitimidade democrática. É importante ressaltar que o desenvolvimento da teoria representativa acompanhou as experimentações (democráticas e não democráticas), vindo democracia e representação a se encontrarem no governo representativo (Ankersmit, 2002). Como observa Pitkin (2004), a aliança entre democracia e representação é problemática e uma existiu sem a outra, em diferentes momentos. Enquanto a democracia veio da Grécia Antiga, onde a participação era prioritária; a representação – pelo menos enquanto conceito e prática política – data da Idade Média tardia, altura em que foi imposta, como uma obrigação, pelo monarca. É apenas na Guerra Civil inglesa e depois nas revoluções democráticas do século XVIII que os dois conceitos se vêm a ligar. A associação automática entre representação e democracia, transmutada na ideia de governo representativo, por vezes obscurece as contradições entre os dois conceitos. Será importante manter no horizonte de análise esta tensão a fim de avaliar os limites e potencialidades das formas de representação para a realização da democracia, entendida como governo do povo.

    A maneira como os teóricos reagiram às dualidades Estado/sociedade, soberania/governo e unidade/pluralidade é o fio condutor para a compreensão do conceito de representação política e seus critérios de legitimidade. A partir desse recorte analítico, apresento o desenvolvimento do conceito por autores consagrados na literatura ocidental, no campo da teoria representativa. Tendo em vista a defesa de que a representação política não se limita ao governo representativo, este livro não faz referência à vasta literatura sobre o funcionamento da democracia eleitoral, no tocante aos sistemas de governo, sistema partidário e relações intra e intergovernamentais, para citar alguns dos campos. A análise da representação com base no inter-relacionamento do Estado e da sociedade tem o mérito de fazer derivar daí proposições para o entendimento de situações históricas particulares (Schwartzman, 1977). De acordo com Schwartzman, as teorias que veem ou o Estado, ou a sociedade, falham, evidentemente, na medida em que não tomam o outro lado em consideração.

    A análise geral se dará a partir de cinco momentos distintos, além da conclusão. Em primeiro lugar, será cotejado o debate mais amplo sobre representação política, apresentando as contradições presentes na formação do Estado moderno. Será dada centralidade ao período em que o enquadramento teórico e conceitual do governo representativo moderno foi construído com maior intensidade. Procurar-se-á examinar a forma pela qual os principais teóricos modernos da representação a conceberam e como ela foi justificada ao longo da história moderna. Mais ainda, qual(is) foi(ram) a(s) solução(ões) encontrada(s) para a convivência de dois conceitos e práticas, em princípio, contraditórios, democracia e representação. A reconstrução histórica terá o papel de mostrar que as raízes da representação são muito mais antigas do que os significados cristalizados na teoria política, especialmente aquele que a associa com a democracia eleitoral, o que permite considerável manipulação do conceito (Pollak, 2007). Para isso, discutirá a tensão entre pluralidade pré-moderna nas formas de representação e a vitória do conceito em torno das noções de unidade e criação. Ressalta também a tradição liberal-contratualista e sua influência na concepção de legitimidade tal qual ato do consentimento. A representação atrelada a essa noção surge para tratar do problema da soberania (absoluta ou limitada) e transforma-se nas teorias do governo representativo em uma teoria da eleição e da accountability. Neste sentido, apresenta quais foram as respostas mais influentes às questões quem, o que e como se representa.

    O segundo capítulo mostra que a dificuldade de conciliar a representação com a ideia de representatividade levou alguns teóricos a advogarem um realismo estreito, transformando a política em espaço de competição entre elites. O trabalho seminal de Hanna Pitkin será cotejado, uma vez que expõe os limites do elitismo competitivo e propõe recuperar a dimensão plural da representação, recolocando ao seu lado o problema da democracia. Porém, meu argumento é que o livro The concept of representation é marcado por avanços e recuos. Ao operacionalizar sua ideia de representação substantiva no último capítulo, o governo representativo e suas dimensões já delineadas pela teoria liberal cedem lugar de exemplo para se tornar modelo do que é a representação democrática. Por fim, o capítulo introduz o pluralismo, a fim de destacar os limites e potencialidades dessa corrente teórica para a mudança na concepção da política.

    O terceiro capítulo expõe as críticas à teoria monista da representação, presentes em diferentes correntes no século XX. As disputas sobre o significado da participação e deliberação e sua centralidade para a vida democrática são discutidas em três seções, a partir de uma breve descrição da teoria participativa, deliberativa e pluralista radical. Não obstante o avanço argumentativo em relação à defesa de maior oxigenação do processo de representação política e inclusão da sociedade civil, uma constatação importante é que essas teorias prestam pouca atenção nas dinâmicas de representação política geradas pela participação. Desse modo, o capítulo lança mão de princípios importantes para o aprimoramento democrático colocados por essas escolas de pensamento, quais sejam, a revisão do conceito de igualdade, a noção de legitimidade construída no processo discursivo e decisório e a atenção à pluralidade de atores e espaços de representação/participação e à sua dimensão contestatória.

    O quarto capítulo apresenta a tese central do livro sobre a redefinição das questões, quem, o que e como se representa. Nesta empreitada, advogo pela inexistência de um modelo único e para a necessidade de avaliar as situações distintas e complementaridades dos diferentes modos de representação e de sua legitimidade, a partir de um amplo levantamento de experiências e autores contemporâneos. Retomo a discussão entre representação e soberania, fundamental para a compreensão de formas de representação política não centradas no Estado, e apresento uma redefinição do conceito com ênfase nas dimensões processual e criativa. A representação, desse modo, é uma atividade que se desloca continuamente no tempo e no espaço e envolve distintos atores e arenas, do Estado e da sociedade. Neste processo, a definição do que é representado e quem representa está sempre em disputa e construção. Ao invés de falar em legitimidade, na qualidade de uma propriedade estática adquirida por algum mecanismo, por exemplo, eleições, defendo que é mais frutífera a ideia de processos de legitimação. A legitimidade é estabelecida ao longo do tempo e depende do exame crítico da ação política e do comportamento das instituições e atores.

    O quinto capítulo é uma imersão na representação política do Brasil no período democrático. Salienta as continuidades e inovações em termos de representação política no país, apresentando os principais avanços, tanto do ponto de vista das instituições do governo representativo quanto dos canais de interação entre o Estado e a sociedade. A partir do olhar sobre as instituições participativas, doravante IPs, propõe a ressignificação do conceito de representação política. O argumento é que as IPs inauguram um quarto momento de relação entre Estado e sociedade no país, marcado pela flexibilização das fronteiras que os separam. Tal diferenciação está baseada na proposta de Vianna (1999), segundo o qual a evolução da representação política moderna pode ser vista a partir de 3 momentos: separação entre Estado e sociedade visível na rota liberal contratualista que separa as soberanias públicas e privadas; generalização do privado no público via sufrágio universal e, finalmente, publicização do privado, por meio da intervenção direta na economia e nas políticas sociais. Apesar de não ter seguido esta rota, defendo que é possível vislumbrar estes momentos na história política do Brasil. Atualmente, o privado ou social encontra outras maneiras de generalização, seja por meio de mecanismos de pressão da sociedade, seja pelo controle direto de políticas públicas e do representante, o que nos colocaria no quarto momento de representação política no país.

    A inserção institucionalizada de atores sociais nos aparelhos estatais coloca em evidência a necessidade de se desvincular de uma definição espacializada da sociedade e do Estado e focar em suas atividades (Young, 2000). Sendo assim, defendo que a diferenciação entre estes dois polos da atividade política – dentro e fora das instituições estatais – não é mais uma característica que define a priori a representação e a participação do Estado ou da sociedade, haja vista o trânsito dos atores nas diferentes esferas de deliberação. A indefinição das fronteiras entre Estado e sociedade desloca a importância da análise espacial da sociedade civil, com foco exclusivo na esfera pública, para os diferentes tipos de atividade e autoridade mobilizada por estes atores na interação com as instituições estatais. Neste sentido, o capítulo introduz, na segunda subseção, o debate sobre a autoridade estatal vs. a autoridade societal, com vistas a diferenciar também as IPs de outras experiências mais informais, teorizadas internacionalmente. É importante lembrar que embora a noção de autoridade tenha sido tratada na teoria política como sinonímia da representação ou de sua legitimidade, esta é uma discussão não enfrentada pela maioria dos pensadores contemporâneos que se voltam para a reformulação do conceito de representação. Os trabalhos de Abers e Keck (2013) e seu conceito de autoridade prática, bem como de Saward (2011), serão reapropriados para enfrentar esta questão da autoridade dos atores societais nas IPs.

    Por fim, com base na discussão teórica e informações de pesquisas empíricas diversificadas nas instituições participativas, recoloco as questões quem, o que e como se representa, à luz destas experiências. As principais diferenças são a presença de um processo de autorização, mesmo que limitado, a identificação de uma base representável, e uma dinâmica de controle e responsividade que deve considerar sua interação com as esferas estatais, com outras instituições participativas, e com entidades, policy community e cidadãos. A intenção é dupla, apresentar indicadores e variáveis relevantes para a análise do processo de legitimação das IPs e apontar alguns limites e potencialidades já detectados em experiências como os conselhos de políticas, conferências e comitês de bacia hidrográfica. O foco nestes três espaços se deve a algumas características afins, sem perder de vista suas particularidades.

    O capítulo conclusivo apresenta um resumo geral dos principais argumentos de cada capítulo e algumas respostas às questões que moveram este estudo. Propõe uma redefinição do conceito de representação política e das formas de avaliação de sua legitimidade democrática. Ao cultivar a importância de visualizar diferentes modalidades de representar e ser representado, me apego à defesa de Rosanvallon (2009a) sobre a necessidade de des-ocidentalização ("de-westernization") da compreensão da experiência democrática, substituindo um universalismo de sistemas fechados por um universalismo aberto baseado em experiências concorrentes. Sendo assim, é possível pensar na preservação de alguns critérios de legitimidade e princípios fundadores da representação como igualdade, inclusão da diversidade, responsividade e prestação de contas, mas a partir de uma revisão da forma de se alcançar tais pressupostos, de modo a incorporar uma visão mais plural da representação política e de seus atores.

    O novo olhar sobre o binômio participação/representação abre um campo de possibilidades no que se refere às formas legítimas de regulação ou mediação da relação entre Estado e sociedade. Os limites e potencialidades dessas inovações ainda são pouco conhecidos e as implicações para a teoria da representação política pouco exploradas. Tal lacuna representa uma das justificativas centrais para o desenvolvimento desta investigação. Além disso, é preciso ressaltar que os fenômenos que servem de apoio aos argumentos de crise da representação afetam distintas democracias, desde as mais consolidadas até aquelas consideradas em desenvolvimento. O exame dessas mudanças e das ideias expostas por algumas correntes na teoria política pode contribuir para ampliar a discussão sobre representação política.

    Breves comentários metodológicos

    A pesquisa sobre o conceito de representação política, desde sua acepção moderna e pré-moderna até os dias de hoje, tem afinidades com a perspectiva metodológica da história dos conceitos. Nos últimos anos, os métodos históricos e interpretativos, comuns nas Ciências Sociais desde a década de 1960, começaram a ganhar atenção entre teóricos da Ciência Política, desafiando as perspectivas naturalistas da disciplina (Silva, 2009a). Esse é um campo amplo de debates e distintas tradições intelectuais, como a tradição analítica anglófona, da chamada Escola de Cambridge – onde se situam os autores Quentin Skinner e J. G. A. Pocock, e críticos dessa escola, como Mark Bevir (1997; 2000; 2001)¹ – e a tradição continental, inspirada no programa da história dos conceitos, sob o comando do historiógrafo alemão Reinhart Koselleck² (1992). Para Bevir e Rhodes (2002), as raízes das abordagens interpretativas e das tentativas de entender ações, práticas e instituições por meio da apreensão dos significados, crenças e preferências das pessoas envolvidas não é nova nos estudos políticos. Entretanto, com o desenvolvimento e separação das disciplinas, essa preocupação associou-se com a hermenêutica e a etnologia. Mais recentemente, filósofos pós-estruturalistas e pós-modernistas³ reativaram o interesse pela análise dos significados históricos, colocando em questão o projeto moderno de alcançar a objetividade⁴ e a verdade.

    Não cabe aqui o exame detalhado dessas teorias, apenas apontar algumas perspectivas que poderão contribuir para a análise histórica do conceito de representação e para a percepção das mudanças ao longo do tempo. É importante destacar que tendo o objetivo de descortinar o conceito de representação política a partir de alguns temas centrais para a política democrática, a pesquisa não tem um compromisso restrito com a abordagem conceitual ou interpretativa defendida pelas diferentes escolas de pensamento. No trabalho ora apresentado ao leitor, a proposta central não é interpretar o conceito de representação política a partir da busca restrita dos significados atribuídos pelos autores ou de um exame minucioso do contexto histórico e das preferências políticas dos escritores. Pretende-se, sim, apresentar uma crítica interna das diferentes vertentes da teoria, indicando dilemas e eventuais contradições em seus postulados, principalmente em relação à controvérsia em torno da legitimidade da representação. Procura-se também estabelecer uma crítica externa e normativa que leva em conta uma noção ampliada da política representativa, que extrapole o seu momento constitutivo, a dimensão autorizativa. Para isso, vale-se de fontes primárias e secundárias, que apresentam uma avaliação crítica sobre a teoria de representação tal qual foi formulada no passado.

    A crítica externa à teoria representativa poderia parecer estranha a Skinner, tendo em vista a noção de que não há problemas perenes na história do pensamento, tudo o que há são respostas particulares e datadas para problemas particulares, sendo inútil exigir dos grandes mestres do passado as respostas para os impasses de

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