Excluídos do café: Planejamento urbano e conflitos sociais em Londrina nas décadas de 1950 e1960
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Excluídos do café - Eder Cristiano de Souza
Nota do Autor
Esta obra homenageia os trabalhadores e as trabalhadoras que construíram a história de Londrina e do Norte do Paraná, região onde cresci e pela qual nutro um imenso afeto. Uma história vivenciada e construída também por meus avós, meus pais, meus tios e outros familiares e amigos.
Agradeço a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram com a concretização desta pesquisa. Em especial aos técnicos Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica da UEL e do Museu Histórico de Londrina, que me apoiaram na abertura dos arquivos e deram todo suporte para meus estudos. Agradeço nominalmente aos mestres Reginaldo Benedito Dias, Gilmar Arruda e Sonia Adum (in memorian), que me deram grande suporte desde os meus primeiros passos na carreira acadêmica.
Por fim, dedico este livro à minha amada companheira, Susyane, à minha mãe, Elena, e aos meus filhos, Heitor e Heloísa, razões do meu existir. Dedico também à memória de meu pai, Antônio Vicente de Souza.
Eder Cristiano de Souza
Foz do Iguaçu, Dezembro de 2019.
Prefácio
O livro que os leitores têm em mãos é uma consistente e renovadora interpretação da história de Londrina e do Norte do Paraná, resultado de pesquisas que o autor realizou em sua trajetória acadêmica como aluno de pós-graduação e como docente do magistério superior.
Quando Eder Cristiano de Souza iniciou sua pesquisa, ele contava com o lastro de importantes trabalhos acadêmicos acerca da colonização de Londrina e da região Norte do Paraná, na área de influência da Companhia de Terras do Norte do Paraná. Um dos principais méritos de sua pesquisa foi saber dialogar com as mais influentes análises acadêmicas – sobretudo as formuladas por Sônia Adum (1991), José Miguel Arias Neto (1998) e Nelson Tomazi (1997) – e, ao mesmo tempo, apresentar uma proposta que expandisse o universo temático e contribuísse para renovar as interpretações.
Valendo-se do legado dos citados autores, criticou a mitologia criada pela própria companhia colonizadora, incorporada pelas narrativas que compuseram o que se poderia chamar de memória oficial da aventura pioneira, e aprofundou a investigação sobre as contradições políticas e sociais de um período capital da história de Londrina: os anos compreendidos entre o final da década de 1940 e os primeiros anos da ditadura instaurada em 1964.
Inferiu, nesse sentido, que os citados autores, a despeito de disparidades quanto à interpretação sobre a temporalidade e a origem dos elementos simbólicos e discursivos utilizados para identificar a cidade de Londrina naquele período de sua história, convergem quanto ao fato de as classes dirigentes beneficiarem-se de tais representações para tornar legítimo seu domínio no campo do imaginário social. Dito de outra forma, segundo a linguagem gramsciana adotada, para estabelecer a sua hegemonia.
Em âmbito nacional, foi um período histórico pleno de esperanças em reformas sociais e democráticas, motivadas pela expansão das franquias eleitorais e pela emergência do ativismo organizado das classes populares, mas também foi uma época de vicissitudes por causa das tensões provocadas nas estruturas sociais e políticas de um país desprovido de tradições democráticas, um processo que culminou no advento da ditadura em 1964. No Paraná, esse quadro combinou-se com a ampla mobilidade demográfica provocada pelo intenso fluxo migratório, que tinha em nosso estado um dos destinos privilegiados. Não é excessivo lembrar que, de 1940 a 1970, a população paranaense quintuplicou.
O Norte do Paraná, em particular, era divulgado como a nova terra prometida
, ou o novo Eldorado
. As riquezas geradas pelo complexo cafeeiro atualizavam a lenda do Eldorado
. O café era ouro verde
. Como principal município e espécie de capital de uma vasta região, Londrina vivia intensamente essas demandas e vicissitudes, entrelaçadas com as temáticas relacionadas ao seu desenvolvimento urbano.
Confrontando a memória hegemônica legada pelas elites locais e utilizando os aportes da história social inglesa, sobretudo pela influência de Edward Palmer Thompson, Eder Cristiano de Souza propôs uma história vista a partir das classes populares. Parafraseando as suas palavras, sua pesquisa é uma contribuição aos estudos sobre as classes populares em Londrina, visualizando esse grupo social de maneira ampla. Assim, os personagens dessa história são os elementos pobres, excluídos dos processos decisórios convencionais, das profissões mais valorizadas e do acesso às riquezas. Ele se refere aos trabalhadores braçais, aos ambulantes e aos marginalizados, como mendigos, prostitutas, entre outros. Sua análise comprova que eles atuam no espaço público com lógica própria, não necessariamente de maneira organizada, constituindo laços e identidades e trazendo suas experiências como forma de expressão.
Ao estudar os excluídos do café
, forma como os personagens são denominados no título de seu livro, o autor busca examinar o nexo histórico entre o fazer-se das classes populares no jogo político e a sua incidência nas políticas urbanísticas da administração municipal e estadual. Nessa direção, seu objetivo é debater as transformações históricas no período focalizado e evidenciar o lugar das classes populares no campo político, destacando, principalmente, sua incidência na construção de um espaço público de debates e de reivindicações.
Mais do que combater a invisibilidade ou a exclusão desses personagens, sua investigação procura apreender o fazer-se desses sujeitos coletivos em suas múltiplas formas de ação, evitando o atalho das concepções apriorísticas e enfrentando a complexidade que caracterizava a práxis por eles forjada. Nesse diapasão, sua análise mantém-se atenta não apenas aos processos formais de reivindicação organizada, mas também às várias formas de resistência experimentadas pelas classes populares, sem desconhecer nem menosprezar seus limites.
Como história a contrapelo, produz uma narrativa reversa ao discurso hegemônico, explicitando as contradições de classe e expondo as fissuras dos discursos que as encobriam. Em vez de restringir-se ao debate conceitual, promove essa operação pela incorporação das classes populares como sujeitos coletivos e pela abordagem de suas ações.
Sua análise demonstra que, no período estudado, os habitantes pobres de Londrina não se portaram passivamente diante do processo acelerado de crescimento urbano. Em outras palavras, apesar de não serem contempladas pela memória oficial urdida pelas elites, as classes populares não apenas participaram de momentos importantes da história da cidade, mas foram fundamentais para a construção e estruturação de Londrina.
A instigante interpretação de Eder Cristiano de Souza, interessada no protagonismo político das classes populares, tem seu caráter de história a contrapelo ampliado na conjuntura em que o livro é publicado, em razão do conservadorismo que viceja na política nacional e toma conta das principais instituições públicas.
Se o livro tem o potencial de ensejar reflexões e pesquisas análogas sobre o período e o território investigados, a sensibilidade com que o autor conduz a sua análise, atenta ao fazer-se das classes populares, também é uma fonte de inspiração para que lutemos, com o repertório e os temas de nossa época, para promover a necessária resistência e instituir uma ordem pública verdadeiramente democrática.
Que o livro cumpra todo o seu potencial de inspirar novas pesquisas e de estimular reflexões e debates sobre o passado e o presente!
Maringá - Primavera de 2019
Reginaldo Benedito Dias
Dep. de História da UEM
Referências
ADUM, Sônia M. S. Lopes. Imagens do progresso: civilização e barbárie em Londrina – 1930/1960. 1991. 216 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 1991.
ARIAS NETO, José Miguel. O Eldorado: representações da política em Londrina – 1930/1975. Londrina: Eduel, 1998.
SOUZA, Eder Cristiano. Os excluídos do café: as classes populares e as transformações no espaço urbano de Londrina, 1944-1969. 2008. 222 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2008.
TOMAZI, Nelson Dacio. Norte do Paraná: história e fantasmagorias.1997. 338 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1997.
Introdução
O povo e a cidade
Todo estudo histórico deriva de um interesse e um esforço pessoal. O historiador, com suas experiências e suas referências, busca responder a questionamentos que emergem no seu presente e discute os vestígios do passado no sentido de construir um quadro explicativo que dê sentido a suas preocupações e suas inquietações. É importante que sua narrativa dê conta de atender aos requisitos técnicos e às exigências do campo científico, mas isso não impede que tal escrita esteja imbuída de grande carga subjetiva.
O presente livro tem como eixo norteador a elaboração de uma análise sobre o lugar das classes populares na história de Londrina, objetivando o entendimento de sua participação no contexto político sob o qual viviam, trazendo um resgate histórico da cidade, levando ao público um conjunto de experiências importantes e interessantes vivenciadas pelo povo londrinense.
O foco da investigação situou-se sobre a legislação urbanística, que em Londrina teve uma particularidade: enquanto na maioria das grandes cidades, no decorrer do século XX, os projetos urbanísticos impuseram-se sobre uma realidade anterior, Londrina foi uma cidade na qual a maioria das medidas impositivas tentava construir uma realidade urbana desejável. Os projetos urbanísticos basearam-se em padrões ideais de racionalização e de ocupação do solo, bem como de uma distribuição socioespacial dos habitantes. Essa distribuição, fundamentada na diferenciação de categorias de acordo com as condições financeiras de seus futuros moradores, estimulava a segregação dos habitantes e o sentimento de diferenciação entre as classes sociais. O estudo dessa legislação trouxe à tona a memória da exclusão e da busca pela negação do direito de participação popular. Como o período investigado foi aquele em que se deu o boom da cafeicultura na região, optou-se por denominar os trabalhadores urbanos pobres, sujeitos desta pesquisa, como os excluídos do café
.
Vivia-se um momento na história brasileira quando cidadania e justiça social eram ideias defendidas apenas por pequenos grupos, o entendimento geral residia na noção de que as diferenças sociais eram fruto da sorte de cada um e o padrão de organização do espaço urbano seguia a lógica da diferenciação de classes. O quadro social que demarcava as hierarquias urbanas também era ressaltado no cotidiano, e a mídia escrita foi fonte para o estudo de tal realidade. O principal jornal local esforçava-se por consolidar um discurso em que os ideais do grupo dominante destacavam-se, impondo a toda população a autoridade e a força de um discurso que reforçava valores elitistas e excludentes.
A hegemonia da burguesia cafeeira nos anos iniciais da década de 1950 consolidou-se a partir do controle político e do poder discursivo dos intelectuais que disseminaram determinados ideais de sociedade, mas havia o povo. A propaganda oficial sobre o progresso da cafeicultura atraiu milhares de imigrantes para Londrina, em busca de um progresso alardeado em todo o território nacional, e o poder de persuasão e de controle não foi exercido sem resistência, oposição e luta daqueles que não lograram o êxito econômico prometido e ficaram situados às margens do progresso.
A palavra cidadania, hoje muito utilizada, é um termo impreciso e volúvel, que mescla atitudes, projetos e ideais, fundindo-se no princípio de participação, de direitos e de deveres. A história do nosso país demonstra como esse direito de participação foi uma conquista lenta e penosa. Os direitos ao voto, à organização, à reivindicação, objetos de desejo das populações pobres, foram resultantes de longos processos de negociações e de conflitos com o grupo dirigente. As investigações aqui relatadas procuram entender como o povo se inseriu num universo formatado de acordo com os valores da classe dirigente, em uma história que insistia em ser contada sem sua presença e em um universo político que formulava parâmetros que o excluía do direito à participação.
Anônimos e excluídos que buscaram seus espaços e lutaram por um lugar ao sol, seja por meio da manifestação de suas aspirações, seja pela rejeição a imposições vindas a partir de projetos e de ideais alheios a suas necessidades, foram os personagens em relevo desta pesquisa. A preocupação foi com a presença humana no espaço e na história da cidade, e esta não se compõe apenas de um amontoado de concreto e de asfalto, mas de lutas e de negociações, de presenças e de ausências, de homens e de mulheres, de histórias que vão se entrecruzando para formar aquilo que os olhos presenciam.
A ascensão e a queda da cafeicultura resultaram num processo de duas décadas, que significou muito para a história de Londrina. Dois momentos foram significativos, sendo que o primeiro teve seu início em 1947 e durou mais ou menos uma década, quando as práticas e os discursos sobre a cidade diziam respeito à cafeicultura e a tudo que girava em seu entorno. Com uma estreita vinculação entre o campo e a cidade, constituía-se a hegemonia dos discursos favoráveis ao predomínio dos interesses da burguesia cafeeira.
A sociabilidade burguesa dos clubes e das reuniões pomposas era uma das faces desse espetáculo. A Londrina da década de 1950 via surgir uma classe formada por capitalistas bem-sucedidos, intelectuais e outros afortunados que constituíam uma autoimagem de nobreza e de glamour, procurando vangloriar-se sob a insígnia de pioneiros.
Já do lado de fora das festas e das reuniões da alta sociedade, havia um grupo numericamente maior, ao qual não importava a pompa e os símbolos de valoração social. Os excluídos do café
eram homens e mulheres de outras paragens, em busca de sobrevivência, para os quais aquela cidade era simplesmente um reduto de esperanças. Em cada casebre modesto repousava uma família, ou mais de uma, que no dia seguinte iria ao trabalho, nas lojinhas da avenida, na cozinha das mansões, nas oficinas, nos armazéns, nos cafezais. Homens e mulheres que tiveram pouca chance de contar suas histórias, mas que mesmo assim fizeram com que seus traços fossem marcados em cada esquina, nas letras miúdas dos jornais, às margens da memória oficial instituída.
No segundo período, que avança até o final da década de 1960, o que se percebe é o surgimento de movimentos sociais na cidade e no campo que reivindicavam transformações pontuais na situação das classes populares e nas relações entre capital e trabalho. A partir desse momento, iniciou-se um processo de transformação nas prioridades do poder público em relação ao espaço urbano, pois se passou a lidar com um novo problema, ou seja, as classes populares como um grupo que reivindica direitos que antes sequer eram considerados.
Novas questões surgiram, como os caminhos para a industrialização da cidade e as soluções para os problemas de falta de infraestrutura urbana e de habitação popular. A motivação deste livro foi evidenciar como, nesse curto período de tempo, houve uma transformação nas prioridades do poder público que, primeiramente, queria constituir um ideal amplo de planejamento urbano moderno, mas acabou por deter-se na questão do popular e viu-se impelido a dirigir suas atenções a esse problema.
Um movimento de trabalhadores pobres urbanos na sua luta pelo direito à moradia, que ocuparam um terreno pertencente a uma empresa pública, constituiu-se como ponto fundamental de reflexão e de caracterização de como a realidade sociopolítica se redefinia na cidade. A vitória da resistência popular, no auge da Ditadura Militar, refletiu a forma como a relação entre o povo e o poder transformava-se na cidade e no país.
Neste estudo, o espaço urbano aparece como o palco sobre o qual a história é desvelada. No que tange à memória coletiva, o que se buscou foi a contraposição a uma memória instituída por uma minoria, que se consolidou e influenciou profundamente o que tem sido publicizado como história de Londrina, num processo de exclusão dos sujeitos e dos personagens que contradizem essa história oficial, sujeitos e personagens que aqui são resgatados. O intuito é ressaltar a dignidade popular, enfatizando o protagonismo do povo na história da cidade de Londrina.
Em 1999, Domingos Pellegrini, aclamado escritor, poeta e ufano de Londrina, publicou um artigo no Jornal de Londrina (JL) do qual se destaca o seguinte trecho:
Passo tanto tempo na chácara, que ir para a cidade é como visitar uma cidade estranha, com olhar de forasteiro.
Olha só, a Rua Sergipe, aos poucos ameaça ir se civilizando: na segunda quadra depois da delegacia, eis que transformaram um velho imóvel em lojinhas atraentes, fachada alegre e de bom gosto, com plaquetas discretas, em vez do usual fachadão metálico com letras garrafais em cores berrantes.
São poucos ainda os comerciantes da velha Sergipe a perceber que ou renovam ou, mais dia ou menos dia, fecharão as portas.
Enquanto os Shoppings oferecem ambiente mais seguro, com ar condicionado e estacionamento, um local de compras e lazer, como diz a propaganda, ruas como a Sergipe oferecem atropelo, insegurança, barulheira, fumaça de trânsito intenso, inclusive dos ônibus, calçadas atravancadas, arborização quase nenhuma, portanto mais calor. Não é rua para se passear, mas poderia ser.
Para isso, seria preciso mudar o terminal urbano, que, onde e como está, necessariamente congestiona e castiga as estreitas ruas centrais com o tráfego pesado dos ônibus.
O calçadão poderia ser estendido para a Sergipe, a rua toda poderia até ser coberta, como sonham arquitetos (cobertura transparente, permitindo ar condicionado e criando uma rua-shopping).
Mas será que aquele comerciante, daquela loja em cuja calçada morreram
todas as árvores plantadas durante décadas, vai de repente abrir a mente para se associar aos outros e criar uma nova Sergipe? Há lojas ali com o mesmo visual desde o tempo em que o povo da roça descia na rodoviária velha, hoje museu, e ia fazer suas compras na primeira rua, com medo de se aventurar pela cidade (JORNAL DE LONDRINA, 14 nov. 1999, p. 12, destaques nossos).
Há duas décadas da publicação do texto acima, e ainda não foi construída a tal rua-shopping na Rua Sergipe. Até o presente momento, a grande renovação foi a construção de uma espécie de shopping popular, conhecido como Camelódromo
, por iniciativa do poder público, em parceria com os comerciantes informais. Um fato que não se parece muito com o que Pellegrini chama