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Elites e Vadios na Imprensa: Histórias da Educação e Violência na Primeira República
Elites e Vadios na Imprensa: Histórias da Educação e Violência na Primeira República
Elites e Vadios na Imprensa: Histórias da Educação e Violência na Primeira República
E-book370 páginas5 horas

Elites e Vadios na Imprensa: Histórias da Educação e Violência na Primeira República

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Sobre este e-book

Este livro analisa uma sociedade em que se viam duas realidades bem distintas na Primeira República (1889-1930): de um lado, as elites, que se glorificavam pelo sucesso escolar; e de outro, os negros e imigrantes pobres, que alimentavam as reportagens policiais e eram estigmatizados como vadios.

Elites e vadios na imprensa teve como fonte de pesquisa a imprensa escrita da época e inspiração na teoria do processo civilizador.

A obra faz profunda discussão sobre esse período histórico, no qual o Brasil ostentava cicatrizes da fase escravocrata e estava mergulhado no oceano das desigualdades sociais.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de set. de 2019
ISBN9788547323806
Elites e Vadios na Imprensa: Histórias da Educação e Violência na Primeira República

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    Pré-visualização do livro

    Elites e Vadios na Imprensa - José Luís Simões

    Unesp

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO 1

    VIOLÊNCIA E EDUCAÇÃO: MATÉRIAS DE VULTO NA IMPRENSA

    Os primeiros passos na busca do objeto de estudo

    Pesquisa empírica: os jornais como referência 

    A estratégia da investigação empírica 

    CAPÍTULO 2

    PIRACICABA, SÃO PAULO - BRASIL: CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO NA PRIMEIRA REPÚBLICA

    Fragmentos da história política na Primeira República 

    O surgimento das cidades

    Abolição e imigração 

    Os imigrantes e a industrialização 

    Café: ascensão e queda 

    Piracicaba na Primeira República: as elites precursoras do progresso

    Poder político e imprensa local

    CAPÍTULO 3

    RELATOS DE VIOLÊNCIA NO CONTEXTO DA PRIMEIRA REPÚBLICA

    Contribuição para o estudo da violência 

    O conceito violência e a percepção da imprensa 

    Nos primórdios da imprensa, a percepção de violência 

    O espaço da violência na imprensa 

    Considerações sobre a linguagem da imprensa 

    Imprensa: liberdade de expressão de interesses 

    Os outsiders na imprensa piracicabana 

    Os negros 

    Treme Terra: um outsider torna-se anti-herói

    Os imigrantes pobres 

    Solidariedade e cadeia aos imigrantes pobres 

    Os ciganos 

    CAPÍTULO 4

    AS ELITES NAS MANCHETES DE EDUCAÇÃO

    Contribuição para a História da Educação

    Os primórdios da educação formal na cidade 

    Reportagens sobre educação: as elites e o progresso da cidade 

    A Universidade Popular: espaço das elites ilustradas 

    As elites e o monopólio do espaço escolar 

    A Escola Agrícola Prática Luiz de Queiroz 

    As elites se congraçam nos cerimoniais escolares 

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    Aranzel de Pretos – anteontem à noite, num cortiço da rua do Rosário, perto de 15 pretos, entre homens e mulheres, promoviam uma algazarra infernal, que tirava o sossego do mais paciente vizinho. A polícia dando um péga nos importunos, conseguiu efetuar a prisão de Maria Benedicta, Maria Benedicta Conceição e Maria Almeida (que trindade!)...

    Gazeta de Piracicaba, 13/03/1911.

    Estudante Piracicabano – telegrama ontem recebido nesta cidade, trouxe-nos a grata nova de ter sido aprovado em todas as matérias do 1o ano da Faculdade de Direito de São Paulo, o inteligente moço sr. Prudente de Moraes Neto, filho do nosso prezado amigo sr. Gustavo de Moraes...

    Gazeta de Piracicaba, 31/12/1914.

    INTRODUÇÃO

    No dia 11 de junho de 2003, tive oportunidade de assistir uma conferência do Prof. Odilon Nogueira de Matos. Com sua experiência acadêmica e de vida ele discutia a História da Historiografia no Brasil. Tomei o cuidado de fazer anotações. O autor do clássico "Café e Ferrovias"¹, que em 1940 ministrou aula magna na Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), enfatizou a importância de produzir a História das Cidades. Afirmou que há vários temas na História que ainda não foram pesquisados e que a História não é uma disciplina ou matéria isolada. A História é uma síntese de várias áreas do saber.

    Seguindo a sugestão do experiente historiador, este livro mira na direção de contribuir para a produção da História de Piracicaba, mais especificamente para a História da Educação em Piracicaba. Os jornais constituem a fonte principal deste trabalho cujo objetivo é estudar editoriais e reportagens sobre educação e violência relatadas pela imprensa durante a Primeira República (ou República Velha).

    Norbert Elias propugnou que aquilo que se escreve, não é falso nem verdadeiro, é apenas resultado do estudo². Em acordo com esta assertiva, este livro é o resultado da leitura minuciosa dos órgãos de imprensa que circularam em Piracicaba no período 1889-1930. A partir disto o livro apresenta duas sínteses.

    A primeira síntese assenta-se na ideia de que a imprensa da República Velha não é simplesmente fonte de estudo, é também outro tema a ser entendido e interpretado. Os proprietários dos órgãos de imprensa em Piracicaba vinculavam-se às elites da cidade. Nos períodos pré-eleitorais assumiam abertamente o apoio às candidaturas de vereadores, juízes de paz, deputados, senadores, presidentes do Estado de São Paulo e da República.

    Assim agiam os dois jornais mais citados nesta pesquisa, a Gazeta de Piracicaba e o Jornal de Piracicaba (JP). Esses são os órgãos de imprensa que circularam na cidade durante todo período pesquisado³. A Gazeta, órgão vinculado ao Diretório do Partido Republicano durante quase toda República Velha, carregou no alto da primeira página a epígrafe "Orgam Republicano. Próximo à administração municipal, especialmente da família dos Moraes Barros", a Gazeta funcionava como Diário Oficial da Câmara de Vereadores, pois reproduzia atas das sessões e divulgava ações do prefeito e vereadores.

    O Jornal de Piracicaba é fundado com objetivo de ser independente. Publica no alto da capa a inscrição "Propriedade de uma Empresa. No transcorrer de vários anos teve o advogado Pedro Krahenbuhl como diretor e colunista. Pedro Krahenbuhl mais tarde se tornaria vereador e um dos principais críticos da administração municipal por intermédio do personagem O Homem que Acha Tudo Ruim", criado para ironizar e criticar as ações dos situacionistas. O Jornal de Piracicaba não prescinde do debate político e da tomada de posição. Quase sempre envolvido em confronto de ideias com a Gazeta, o JP apoiou a criação de partidos políticos e veiculou boletins eleitorais em defesa de candidaturas específicas.

    Agora a segunda síntese. O ponto comum entre esses periódicos estava na veiculação de mensagens na direção de legitimar o poder das elites e estigmatizar os negros, pardos, imigrantes pobres e ciganos. As elites apareciam fazendo política, sempre lembradas pelo bom desempenho escolar dos seus filhos e recebiam homenagens. As elites criaram a Universidade Popular de Piracicaba (UPP), que não tinha objetivo de formação universitária, entretanto, servia de espaço de encontros das elites da cidade, regados por saraus, apresentações artísticas e palestras de eruditos. A UPP teve pronto apoio da imprensa. As atividades desenvolvidas no seu interior viam-se amplamente divulgadas pelas páginas dos jornais.

    Os negros e imigrantes pobres monopolizavam as notas policiais. Os ciganos eram malquistos pela imprensa, pois, nômades, quando aportavam em Piracicaba os arautos dos bons costumes e da civilidade solicitavam imediata ação das autoridades policiais. Negros e imigrantes pobres não tinham amplo acesso à educação escolar. O analfabetismo segregava, colocava os pretos e imigrantes pobres na condição de anômicos e ignorantes. O índice de analfabetismo era elevadíssimo, não havia vagas para todos nas escolas públicas. A massa de analfabetos atrapalhava o desenvolvimento, o progresso e a ideia de cidade civilizada.

    A falta de ocupação também minava as possibilidades de ascensão social e dignidade. A vadiagem, os roubos e furtos certamente tornavam-se alternativas à falta de oportunidades. O processo de abolição dos escravos não incorporou políticas de inserção dos negros no mercado de trabalho. A prioridade dos fazendeiros e doutores paulistas que controlavam o poder econômico e político fixou-se nas políticas de valorização do café e manutenção de braços para a lavoura por meio de incentivos à imigração europeia.

    O primeiro capítulo mostra o caminho percorrido até a definição do objeto de pesquisa. A preocupação com a temática da violência e a conexão com a educação figuram como assuntos centrais. Na verdade, são dois temas diferentes e que à primeira vista parece não ter conexão. Entretanto, o fio condutor dos temas, que é a imprensa, mostra a distância entre dois mundos distintos vivendo sob o mesmo céu.

    O problema central é apresentado: a conexão entre violência e educação a partir de relatos da imprensa escrita. Autores importantes, tais como, Norbert Elias e Eric Dunning foram estudados, além da leitura de textos que perpassam pelo tema violência e civilização.

    O segundo capítulo focaliza o contexto social e político do Brasil sob a República Velha. A cidade de Piracicaba é modelo assaz fiel do estilo de vida e da ordem política reinante. O rural sobrepunha-se sobre o urbano. As primeiras indústrias começaram a se fixar na cidade, a imigração em massa de italianos, espanhóis, turcos etc., ampliou o contingente populacional, especialmente nas cidades paulistas. O café é o principal produto da economia paulista e eixo nuclear das decisões governamentais no campo da política econômica. Também é sob a alvorada da Primeira República que surgem os principais órgãos de imprensa local.

    Do ponto de vista histórico, o período pesquisado coincide com um momento peculiar da História de Piracicaba. A cidade destacava-se na cena política nacional, pois tinha como um dos habitantes Prudente José de Moraes Barros, primeiro presidente civil da República (1894-1898).

    Embora não seja tratada de maneira generalizada, a História de Piracicaba sob o manto da Primeira República sobreleva-se de forma inexorável. As reportagens sobre educação e violência refletem de maneira fidedigna as redes de relações de interdependências entre indivíduos, apresentando os grupos poderosos no contexto da cidade, assim como os marginalizados e malquistos.

    O terceiro capítulo centra-se na análise dos relatos da imprensa que ocupavam as notas policiais. Considerando as limitações e intenções deste livro, o conceito de violência é definido de acordo com as reportagens, notas ou matérias publicadas nas colunas de ocorrências policiais. Nesse sentido, o conceito violência abrange toda gama de práticas que estavam à margem da legalidade, desafiando a autoridade estabelecida e o código de conduta social vigente à época que, aliás, era alimentado pelos preceitos do catolicismo e do ideário liberal que preconizava a incessante busca do progresso.

    Roubos e furtos, agressões e brigas de rua. Estupros e suicídios. Desordens, embriaguez e vadiagem. Estes são os fenômenos sociais que mais apareciam nas notas policiais. O tratamento jornalístico empregado para noticiar tais ocorrências julgava sumariamente os atores sociais envolvidos. Especialmente quando os negros, ciganos ou imigrantes pobres apareciam como protagonistas dos noticiários, a imprensa colocava-se como arauto dos bons costumes e da boa sociedade, e publicava as reportagens mirando a estigmatização desses marginalizados.

    Os negros, imigrantes pobres e ciganos compunham um grupo social distinto, marginalizado e execrado pela imprensa. A absoluta maioria das reportagens que relatavam roubos, furtos, embriaguez, brigas, vagabundagem e perturbação pública, tinha os negros e imigrantes pobres como protagonistas. Junto aos ciganos, negros e imigrantes pobres eram os outsiders⁴ da época, ou seja, formavam a escória social repugnada pela imprensa e pelos arautos dos bons costumes.

    A hipótese de que os negros e imigrantes pobres são apresentados como protagonistas das manifestações de violência noticiadas pela imprensa torna-se evidência. Além disso, a gradual diminuição de relatos de violência com o passar dos anos é indício da mudança de linguagem da imprensa, ou melhor, mudança de foco na escolha do que devia ser relatado. Os anúncios comerciais ampliam-se e ocupam cada vez mais espaço nas páginas da imprensa. Os relatos de violência diminuem, mas persiste a forma como a imprensa identifica os agentes envolvidos. Na década de 20, encontrei pouquíssimos relatos de violência. Por outro lado, os anúncios comerciais inundaram os jornais.

    Na Primeira República, a percepção de violência difere ligeiramente daquela que temos na atualidade. Na sociedade piracicabana, roubo de galinhas, vadiagem e embriaguez eram manifestações de violência que recebiam significativo destaque da imprensa, o que revela a diferença entre o grau de complexidade de relações que se estabelecia naquele período e o nível de complexidade que vivenciamos hoje.

    A cidade de Piracicaba enfrentava muitos problemas de infraestrutura. Não havia ruas asfaltadas, a poeira adentrava pelas casas e lojas, o comércio era incipiente e qualquer serviço ou produto de maior complexidade somente poderia ser adquirido se os indivíduos se locomovessem até São Paulo ou Rio de Janeiro. Todavia os articulistas da imprensa acreditavam no progresso da cidade.

    A fundação da Escola Agrícola Prática Luiz de Queiroz, em 1901, emerge como forte elemento para que as autoridades e formadores de opinião acreditassem no potencial de crescimento e desenvolvimento de Piracicaba. As elites participavam dos cerimoniais escolares e viam a educação como caminho para o progresso e a modernidade. Por meio de artigos e cartas ao editor regozijavam-se com a ideia de que Piracicaba era modelar no campo da educação, considerada Atenas Paulista. Em linhas gerais, esta é a tônica do quarto capítulo.

    A educação tinha destaque privilegiado na imprensa. O nível escolar constituía-se diferencial de poder e aceitação no meio social e político da época. Educação associava-se a progresso e civilidade, e a profissão do professor era lembrada frequentemente como sinônimo de elevado status social.

    É importante reiterar a questão da linguagem utilizada à época. A linguagem da imprensa revela a força do catolicismo enquanto principal doutrina religiosa. Ademais, a imprensa servia como veículo facilitador de negócios e ponto de encontro entre ideias subintes na cidade. A gramática utilizada difere muito da que encontramos e somos usuários nos dias de hoje. A linguagem jornalística incorporava mais adornos e era menos objetiva. A divulgação dos cerimoniais escolares tinha linguagem poética.

    É verdade que o analfabetismo emergia como preocupação para a imprensa no que tange ao sistema educacional. Mas o foco principal das notícias educacionais não era os analfabetos. Os holofotes da imprensa reluziam sobre as elites e seus filhos educados em escolas europeias ou que estudavam direito, medicina ou engenharia nas faculdades de São Paulo ou Rio de Janeiro. O foco jornalístico estava na fundação da Escola Agrícola Prática Luiz de Queiroz, que formaria agrônomos para o desenvolvimento da agricultura científica e prepararia quadros qualificados para ocupar cargos no governo. O foco da imprensa estava na Universidade Popular de Piracicaba, ponto de encontro dos intelectuais e eruditos; o foco estava nas formaturas dos alunos da Escola Normal, dos grupos escolares recém-instalados, do Colégio Piracicabano e do Colégio Assunção; enfim, o foco das notícias do campo da educação formal estava no elogio aos filhos das elites, especialmente, pelo bom desempenho escolar.

    As reportagens e editoriais coligidos revelam a importância do ensino escolar como símbolo e alavanca para o progresso da cidade. As elites prestigiavam as solenidades que aconteciam no interior das escolas. Formaturas, datas cívicas, concursos para ingresso nas instituições de ensino, homenagens às autoridades políticas etc., pululavam entre os momentos registrados pela imprensa. Os dirigentes das instituições de ensino recebiam deferência pública.

    A partir das leituras dos jornais, posso inferir que os grandes empresários, advogados, engenheiros, médicos, fazendeiros, professores e autoridades políticas compunham o núcleo do poder, ou melhor, o núcleo das elites estabelecidas, que tinham acesso à educação e se viam prestigiadas e glorificadas publicamente.

    Teve enorme repercussão a fundação da Escola Agrícola Prática Luiz de Queiroz. Na cidade de Piracicaba, a fundação desta escola provavelmente foi a principal notícia do ano de 1901, em todos os aspectos. Portanto, a Escola Agrícola Prática Luiz de Queiroz surgia como instituição símbolo do desenvolvimento e progresso da cidade, o ponto alto da educação, orgulho para as elites e, assim, motivo de regozijo e material rico para a imprensa da época. Quase que diariamente a Luiz de Queiroz recebia destaque nos jornais. Essa instituição servia como fonte rica de material para o trabalho da imprensa porque os cursos oferecidos visavam a formar mão de obra qualificada para o desenvolvimento da agricultura no período em que o Brasil tinha como principal atividade econômica o investimento na grande lavoura.

    A educação escolar simbolizava sinônimo de civilidade, de ajustamento ao comportamento católico. Das escolas, somente boas notícias viriam à tona nas páginas dos jornais. Os cerimoniais escolares, por exemplo, recebiam elevado destaque. As datas cívicas eram comemoradas no interior das escolas com a participação das autoridades políticas da cidade. Em 1921, Lourenço Filho, que era professor na Escola Normal de Piracicaba e foi convidado para reorganizar a instrução pública no Estado do Ceará, recebeu homenagens de professores e estudantes que reverberaram por vários dias na imprensa local⁵.

    Por fim, considero que a teoria do processo civilizador oferece subsídios para entender que mudanças na estrutura social se coadunam com mudanças na estrutura psicológica dos indivíduos, o que percebi a partir da análise na linguagem e no formato da imprensa escrita, com o passar dos anos. Os outsiders continuam depreciados pela imprensa. Todavia, as notas policiais saem de foco. Ampliam-se os anúncios comerciais como consequência do crescimento do comércio e da atividade econômica de prestação de serviços. O analfabetismo paulatinamente emerge como preocupação de fulcro, mas esse processo é lento e gradual.

    Os jornais revelam especificidades de um período da história da cidade e do Brasil. A imprensa esgarça esse processo histórico que compreende os estabelecidos e outsiders, história construída por pessoas que disputaram oportunidades de poder e prestígio social, oportunidades distribuídas com desigualdade.

    CAPÍTULO 1

    VIOLÊNCIA E EDUCAÇÃO: MATÉRIAS DE VULTO NA IMPRENSA

    Os primeiros passos na busca do objeto de estudo

    Comecei a pesquisar o tema violência por ocasião da dissertação de mestrado, concluída no ano 2000⁶. A pesquisa de mestrado teve como enfoque um caso de trote ocorrido na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) no início do ano letivo de 1999, que trouxe como consequência a morte de um calouro, vítima daquilo que os estudantes que vivenciaram o ritual qualificaram como festa de recepção.

    O eixo central da pesquisa expôs a relação de poder que se criara no interior de uma configuração social específica, a Faculdade de Medicina, notadamente a relação de poder entre os estudantes estabelecidos e os recém-chegados. Nos documentos estudados verifiquei relativa complacência de professores e estudantes, especialmente os veteranos, em relação ao ritual do trote, que teria como objetivo estigmatizar os recém-chegados. O trote estava incorporado no processo de início das atividades acadêmicas, era um ritual de passagem e fazia parte da tradição da escola.

    O estudo da teoria do processo civilizador, especialmente a partir das obras de Norbert Elias e seus colaboradores, serviu, ao mesmo tempo, de inspiração teórica e orientação metodológica para aprofundar o assunto.

    Aquela pesquisa tomou direção específica e algumas considerações puderam ser apresentadas. Pude mostrar que a configuração escola é um espaço que não só convive com a violência na medida em que manifestações de violência adentram os muros das instituições de ensino, mas também pode se tornar uma configuração que constrói novos rituais sociais que podem guardar expressões da violência cotidiana e manifestações de poder entre grupos sociais distintos.

    Na trajetória de pesquisador não procurei demonizar o tema violência. Sempre quis entender um pouco mais esse fenômeno social presente em todas as sociedades humanas possíveis.

    Tendo em vista os limites do trabalho de mestrado, algumas questões não foram superadas. Por exemplo, a relação entre violência e educação numa sociedade com alto grau de mobilidade e crescente diferenciação social. É preciso verificar com rigor se há correlação direta entre o aumento das oportunidades de acesso à educação e mudança nos indicadores de violência. Também é necessário perquirir sobre a formação de um sistema educacional organizado no país e se o modelo adotado interfere nas mudanças estruturais no sentido de ampliar o poder dos menos abastados.

    Outra questão que mereceria exaustiva discussão perpassa pela relação estabelecidos-outsiders. Na pesquisa de mestrado trabalhei a relação de poder e percebi que havia um processo de submissão no ritual do trote. Os calouros se submetiam aos rituais de estigmatização, afinal, essas práticas faziam parte da tradição da escola. Destaquei que a submissão dos outsiders ao stablishment fica bastante perceptível na relação entre calouros e veteranos, sobretudo, quando a recepção aos recém-chegados comporta práticas de ofensa e humilhação⁷.

    Embora sustente essa afirmação, pois apresentei evidências das relações de poder favoráveis aos veteranos, o trabalho de mestrado prescindiu uma das obras mais importantes de Norbert Elias⁸, que trabalha justamente as relações de poder entre estabelecidos e outsiders. A utilização dessa obra de Norbert Elias e John Scotson assume importância fundamental aqui neste livro, especialmente porque conclui que, na perspectiva da imprensa, os outsiders protagonizavam as manifestações de violência.

    Outro problema na dissertação de mestrado é o fato de não ter assumido as limitações das matérias jornalísticas como fonte de pesquisa. A problematização do uso da imprensa como fonte de investigação empírica torna-se aqui esforço constante. Agora, tanto as limitações como a riqueza das matérias jornalísticas enquanto fontes de pesquisa são verificadas exaustivamente.

    Um trabalho marginalmente utilizado na pesquisa anterior foi o texto de Eric Dunning intitulado Violence in the British Civilizing Process⁹. Nesse trabalho, Dunning discute as limitações de pesquisas sobre violência que, pautadas em reportagens jornalísticas, apresentam a ideia de que há tendência de aumento da violência ao longo do século XX, na Inglaterra. Dunning apresenta algumas limitações do trabalho de Norbert Elias no que diz respeito à utilização do método elisiano para o estudo da violência, contudo, rebate críticas de vários interlocutores de Elias quando, por exemplo, responde a Ian Taylor¹⁰ ao dizer que

    [...] nós também rejeitamos a sugestão de que a teoria de Elias é ‘idealista’ – de fato, um dos objetivos explícitos do trabalho de Elias é precisamente tentar ultrapassar a rude dicotomia entre ‘o material’ e o ‘ideal’. É também nossa visão – e esperamos demonstrar o ponto de referência para nosso trabalho posteriormente – que a teoria de Elias proporciona uma estrutura muito útil para entender aspectos da situação corrente da jovem classe trabalhadora na Bretanha.¹¹

    Retomei esse texto de Dunning porque, além de entender que violência e civilização são caracterizadas por formas específicas de interdependência¹², percebo que esse autor discute a utilização de reportagens jornalísticas nos trabalhos sobre violência e reflete acerca das mudanças na percepção de violência por parte da imprensa ao longo dos anos. Assim, essa contribuição é trazida à baila e recebe maior destaque no curso deste livro, o que amplia e aprofunda o debate no que tange à utilização de noticiários jornalísticos na produção de trabalhos acadêmicos sobre violência.

    Tendo em vista a proposta deste livro, fiz um recorte histórico para os dois fenômenos destacados. Então, o principal material de análise foram reportagens jornalísticas do período de 1889 a 1930 que divulgavam tanto os acontecimentos no universo escolar quanto as manifestações que eram retratadas ou diagnosticadas pelas autoridades e pela imprensa como casos de violência.

    O período em foco demarca momento ímpar da História do Brasil, ou seja, a Primeira República, regime político que encerrou o poder monárquico no país e foi fortemente marcado pela influência dos fazendeiros de café paulistas no cenário político. De acordo com Celso Furtado, o que singulariza os homens do café não é o fato de terem controlado o governo, mas especialmente as ações no sentido de que tenham utilizado do controle para traçar objetivos definidos de uma política; em suma, é por essa consciência clara de seus próprios interesses que eles se diferenciam de outros grupos dominantes anteriores ou contemporâneos¹³.

    Este livro oferece alternativas de interpretação da temática violência na medida em que se afasta daquelas pesquisas preocupadas em mensurar os casos de violência nos diferentes períodos e grupos sociais. Portanto diverge da abordagem que estudiosos do assunto atribuem ao tema quando, por exemplo, posicionam-se contrários à discriminação social e racial, exortando a aplicação dos direitos humanos sem, contudo, reportarem-se ao contexto das estruturas sociais e psicológicas em que vivem os indivíduos discriminados¹⁴.

    Acrescente-se ainda a disposição de analisar as manifestações de violência e, ao mesmo tempo, desvelar o quê e como se veiculavam as notícias sobre educação. Durante a Primeira República, quem estudava ou protagonizava as notícias de educação e qual era o sentido que essas notícias assumiam? Aqui se coloca uma questão que busco aprofundar na análise do material coligido.

    De um lado, procuro saber quem protagonizava os casos de violência durante a Primeira República na cidade de Piracicaba, e levanto o espaço que a imprensa dedicava para noticiar tais casos, assim como a linguagem utilizada para analisar os relatos. De outro, retomo as notícias sobre educação, o espaço e a linguagem adotada pela imprensa, e discuto a posição desses grupos sociais nas reportagens jornalísticas.

    Apesar de não aprofundar aspectos da história política ou econômica do Brasil, mergulhar na história do país por meio de reportagens jornalísticas da República Velha auxiliou na construção de um balanço sobre como se apresentava o país após seus primeiros 400 anos de descobrimento. O período foi predominantemente marcado pela colonização e administração portuguesa como organização da sociedade e pela escravidão como mola da economia nacional¹⁵.

    Como era o sistema educacional no início do século XX? Havia educação para todos? Quem frequentava a escola? Qual era o papel da educação nesse período? A educação serviu de instrumento de diferenciação social? Quais as formas de violência mais comuns e quem eram os protagonistas nos noticiários de violência? Enfim, qual a relação entre violência e educação nos noticiários pesquisados do período republicano?

    Todas as questões acima são perquiridas no transcorrer desta obra. Por enquanto, basta enfatizar que os temas educação e violência constituem as palavras-chaves nesta investigação empírica. A imprensa, quarto poder no dizer de Barbosa Lima Sobrinho¹⁶, torna-se o ponto de encontro entre esses dois temas, que, embora diferentes, oferecem amostras do ambiente de não democratização da cidadania em que vivia grande massa da população brasileira.

    Pesquisa empírica: os jornais como referência

    Sem prescindir de importantes trabalhos que se preocuparam em retratar ou interpretar a realidade social do Brasil ou mesmo de Piracicaba (cidade referência neste estudo) durante a Primeira República, elegi as reportagens veiculadas pela imprensa escrita para colher os acontecimentos de educação e violência que mais ganhavam visibilidade.

    Reproduzi os conteúdos das fontes sempre levando em conta a linguagem utilizada e o contexto social da época. Essas fontes são importantes, pois permitem releitura do período focalizando a imagem de um dos cenários vividos no Brasil, especificamente uma das principais cidades do interior paulista e que, apesar de diferenças particulares do processo histórico por que passou Piracicaba, os processos políticos e a conjuntura econômica e social, em essência, não se distinguiam dos processos desencadeados no restante do Estado de São Paulo¹⁷. Como destacou Adam Schaff¹⁸, a História não está acabada ou totalmente construída, mas se encontra sempre disposta a várias reinterpretações.

    A utilização da imprensa como fonte tem significado especial no período em questão. Ademir Gebara, num trabalho que discute a imprensa republicana na cidade de Campinas durante a segunda metade do século XIX, destaca sua importância como fonte de divulgação, propaganda e fixação de determinados padrões ideológicos. Logo após dissertar as estatísticas sobre o analfabetismo na cidade de Campinas no ano de 1872, mostrando que os índices de alfabetização na cidade eram mais elevados do que os do restante da província, pois o comércio exigia um nível mínimo de alfabetização, ele arremata:

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