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Clio e Eros no Escurinho do Cinema: Ménage à trois entre história, cinema e sexualidade
Clio e Eros no Escurinho do Cinema: Ménage à trois entre história, cinema e sexualidade
Clio e Eros no Escurinho do Cinema: Ménage à trois entre história, cinema e sexualidade
E-book503 páginas6 horas

Clio e Eros no Escurinho do Cinema: Ménage à trois entre história, cinema e sexualidade

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Sobre este e-book

Clio, Eros, Cinema e Sexualidade. Uma relação antiga e frutífera. Esta obra tem origem no evento realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2013. O sétimo “ciclo de cinema, história e educação” promovido pelo Departamento de História reuniu Professores e pesquisadores de diversas áreas e instituições, interessados em abordar e debater estas relações. Os capítulos apresentam uma visão aprofundada do que foi explorado no evento e oferecem um panorama da temática da Antiguidade a História Contemporânea. Partindo dos filmes selecionados, realizados em diferentes contextos, continentes e épocas esta obra oferece uma contribuição para o campo da relação cinema-história. De Frederico Felllini, passando por Stanley Kubrick, até Pedro Almodóvar; de Roma, passando pela Índia, até os EUA e Brasil; sexo, amor, pecado, desejo, sensações, comportamentos, repressão e transgressão. Clio, Eros e o cinema oferecem ao leitor um ménage inesquecível.
IdiomaPortuguês
EditoraEstronho
Data de lançamento31 de mar. de 2022
ISBN9788594580078
Clio e Eros no Escurinho do Cinema: Ménage à trois entre história, cinema e sexualidade

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    Clio e Eros no Escurinho do Cinema - Cesar Augusto Barcellos Guazzelli

    PREFÁCIO

    Clio, Eros e a Sétima Arte: um ménage inesquecível

    Cesar Augusto Barcellos Guazzelli¹

    Rafael Hansen Quinsani²

    Não é de hoje que a História só pensa naquilo. Sexualidade, erotismo e seus elementos afloram nas sociedades desde os tempos imemoriais, marcando a História de diversas formas. Diferentemente do resto dos animais, o ser humano pode pensar e praticar sexo o tempo todo, além da finalidade de reprodução e das regras biológicas do cio. Preenchendo o cotidiano e o imaginário, o sexo não poderia ficar de fora do nascimento da sétima arte. Do ato voyeurístico diante ao que é apresentado na tela, a vivência da proximidade consentida das experiências do escurinho da sala de cinema, a sexualidade permeia os meandros da experiência fílmica. Como lembra Fredric Jameson: O visual é essencialmente pornográfico, isto é, sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento. [...] Filmes pornográficos são a potencialização de uma característica comum a todos os filmes, que nos convidam a contemplar o mundo como se fosse um corpo nu³.

    Entretanto, a compreensão do conceito de nudez depende do contexto. A exposição do corpo nu pode ser objeto de poder através da sexualidade. E então, cabe a pergunta: qual o limite da exposição? No cinema ela oscilou entre diferentes significações ao longo do tempo. Atribui-se o primeiro nu frontal à película Êxtase (Ekstase), de Gustav Machatý, realizada em 1933. A obra narra as desventuras de uma mulher recém-casada que se depara com a infelicidade junto ao marido. Toda estruturada pela música, quase um filme-sinfonia, esta película inovou ao detalhar o orgasmo feminino, representado com sensualidade por Hedy Lamarr (então com 16 anos). O close nos lábios semicerrados, na mordida dos dedos e nos olhos brilhando expressa a marca do filme: a intensidade que o sexo e o erotismo podem compor o cotidiano. Contudo, a nudez presente em Êxtase não era inédita, e já em 1897 Depois do baile (Le tub ou Après le bal), de Georges Méliès, apresentava o banho de uma mulher. Quando o cinema se consagrava no auge das vaudevilles⁴ diversos filmes retratando nudez e cenas sexuais eram exibidos. Da exposição do corpo através de insinuações, fendas, roupas, cabelos (e lembrando Roland Barthes: O lugar mais erótico do corpo não é lá onde o vestuário se entreabre?⁵) até a exposição explícita das genitálias muita coisa aconteceu.

    Ainda na fase do cinema mudo, a representação misógina das Vamps, verdadeiras devoradoras de homens, com seu ar perverso, destacava-se nos filmes. Incorporadas por atrizes como Theda Bara, estas personagens se opunham às idealizadas donzelas, encarnando a oposição anjo versus demônio tão cara as narrativas tradicionais. Contudo, às vezes o demônio se travestia de anjo, como Marlene Dietrich e suas sedutoras meias, cinta liga, colete e salto alto humilhando o ingênuo professor em O anjo azul (Der blaue engel, 1930), de Josef von Sternberg. Da Lola à Lolita a sedução fatal tomou conta de diversos filmes. 

    O olhar cinematográfico também foi marcado pelo caráter patriarcal em relação à mulher. O olhar masculino atuou com um poder controlador sobre o discurso e o desejo. O cinema produzido em diversos países articulou-se desta forma, mas é, sem dúvida, na esfera hollywoodiana que ele teve maior destaque e foi difundido mais amplamente. É nas décadas de 1930 e 1940 que os mecanismos de controle exercem mais força. Nos anos 1950 tem início um desmoronamento destes mecanismos, que pode ser percebido nas películas pelos respingos de sexualidade, reconhecendo a força do perigo da sexualidade feminina que emanava no meio social. Diversos filmes apresentam e reafirmam o homem na sua superioridade econômica e social, outros destacam a imagem da mulher como fetiche e o filme Noir descortina a sexualidade explícita, caracterizada como algo maligno que deve ser destruído. Muitos filmes Noir, por não apresentarem relações familiares normais em seus enredos acabam destacando a mulher como portadora de uma postura independente. Todavia, estas mulheres muitas vezes dependem dos personagens masculinos para sobreviver e partilham do cinismo destes, o que transforma a independência num produto de degradação moral⁶.

    Nos desvairados anos 1960, estes mecanismos não funcionam mais. Muitos filmes apresentam cenas de estupro onde não mais se encobre o uso do falo como meio de dominação. Mais do que uma liberação, o que as imagens cinematográficas apresentam é uma resistência, pois as mulheres buscam satisfazer-se e com isso levam os homens a confrontar-se com seus medos, com a própria sexualidade feminina. Nestas diferentes décadas, os signos hollywoodianos estavam carregados da ideologia patriarcal que sustentava as estruturas sociais. Desse modo, o cinema apresenta três instâncias de olhares masculinos: o olhar da câmera, dos realizadores; o olhar do homem dentro da narrativa; e o olhar do espectador masculino.

    Ausente nesse olhar dominador também estava a homossexualidade, em que pese a enorme influência de gays e lésbicas nos bastidores e no funcionamento de Hollywood⁷. O peso do conservadorismo ainda se fará sentir por longos anos. A adaptação de Gata em teto de zinco quente (Cat on a hot tin roof, 1958), de Richard Brooks, para o cinema apagou e suavizou as referências homossexuais de um dos personagens. De repente, no último verão (Suddenly, last summer, 1959), de Joseph L. Mankiewicz, foi o primeiro filme a ter presente um personagem gay, ainda que demarcado e visto sobre o olhar patriarcal. Ultrapassar a fronteira dos gêneros para reafirmar a dominação masculina foi um recurso empreendido em Quanto mais quente melhor (Some like it hot, 1959), de Billy Wilder, e mais tarde em Tootsie (1982), de Sydney Pollack, e Victor ou Victoria (1982), de Blake Edwards. Esse olhar se referendava de todos os lados. Neste contexto, ser um homem feminino feria o lado masculino da sociedade.

    Sofrendo pressão dos setores conservadores da sociedade estadunidense, foi divulgado em 1930 e implantado em 1934 o Código Hays, uma lista de diretrizes e posturas que deveriam nortear as obras produzidas a partir de então. No âmbito dos filmes alternativos, restritos ao circuito clandestino nos EUA, eram projetados os nudies, que exibiam cenas de nudez e de sexo. Aqueles que exibiam cenas explícitas ficaram conhecidos como Stag movies. Posteriormente, quando passaram a ser exibidos nas cabines de peeps shows, foram batizados como Loops. Também nesse período, a legalização do nudismo nos EUA gerou a produção de diversos pseudodocumentários que exploravam a nudez dos seus protagonistas⁸.

    Após diversos filmes realizados nas décadas de 1950 e 1960 (O imortal Sr. Teas (The imoral Mr. Teas, 1959); Erotica (1961); Heavenly Bodies! (1963); Lorna (1964); Mudhoney (1965)) responsáveis por tirar a nudez dos documentários, Russ Meyer ousou em Vixen (expressão empregada para designar a raposa fêmea na língua inglesa) (1968), cuja protagonista tem um apetite sexual voraz, poupando de suas garras somente um jovem negro. Uma ousada cena de lesbianismo, incesto, racismo e política se misturam nesta obra explosiva de Meyer. Se o lado B estadunidense começa a ousar em sua abordagem, a ponto de influenciar os grandes estúdios nos anos 1970, do outro lado do Atlântico os hormônios saltavam na tela a bastante tempo⁹. As ondas transformadoras da estética carregavam consigo a verve da transformação sexual que sacudiu a Europa do pós-guerra nos anos 1960¹⁰. Filmes franceses (Você, o veneno (Toi... le venin, 1958), de Robert Hossein; Les yeux cernés (1964), de Robert Hossein; A Bela da tarde (Belle de jour, 1967), de Luis Buñuel), suecos (Amarelo, Uma história de amor sueca, Flossie, Exponerad, Maid in Sweden, Thriller, a cruel Picture, Persona, Vergonha), italianos (Blow-up, Malizia, Io, Emmanuelle), ingleses (As aventuras de Tom Jones, Um gosto de mel), sem esquecer dos japoneses (A mulher inseto, O império dos sentidos), expressavam de diversas formas esses elementos. Esta nova atitude perante o sexo e o reexame dos costumes se solidifica como a principal herança da juventude baby boom. O último tango era dançado em Paris e a revolução era amanteigada (e com as unhas prudentemente cortadas!).

    Nos anos 1970 o velho continente continuou ousando. Walerian Borowizyk, inspirado na literatura libertina, realizou diversas películas com forte apelo erótico (Contos imorais, La bête) e Tinto Brass, profícuo cineasta italiano, transitou do mundo antigo em Calígula, até o Terceiro Reich com Saloon Kitty. Realizou diversos títulos pitorescos até a atualidade: A chave, Miranda, Capricio, Snack Bar Budapeste, Todas as mulheres fazem, O homem que olha, Monella, a travessa, Transgredire, Luxúria, Faça isto!, Monamour.

    É nas décadas de 1960 e 1970 que os Expolitations e seus filhos também chegam para abalar os alicerces da cultura cinematográfica. Eles eram denominados desta forma por explorar temas controversos de forma sensacionalista. O Nunexploitation retratava a sexualidade dentro dos muros dos conventos, onde a oração e a religiosidade associavam-se a sadomasoquismo, orgias e traumas. O realizador espanhol Jess Franco foi um dos seus baluartes, com destaque para Cartas de amor de uma freira portuguesa. Do mestre espanhol também se sobressaem: Santuário Mortal, O insaciável Marquês de Sade, Venus in Furs e Vampyros Lesbos. O Naziexploitation levou o gênero ao extremo com títulos como Calígula reencarnado como Hitler e Isla, she Wolf of SS. A partir da produtora inglesa Hammer, diversos filmes também ousaram na temática vampiresca, como Condessa Drácula, Vampyres, as filhas de Drácula, Escravas do desejo, Carmilla chegando até a série televisiva True Blood.

    Mas, se nos EUA, a femme fatale menos demoníaca e mais humanizada que suas antecessoras vamps perdiam espaço, as pin-ups com sua ingenuidade provocante ganhavam espaço (Marylin Monroe como símbolo máximo em O pecado mora ao lado). Logo, A primeira noite de um homem provocaria escândalo, Barbarella enlouqueceria os espectadores com a máquina do amor e sexo¹¹, e o erotismo, ainda que soft, se consolidaria com Emmanuelle.

    A evolução do cinema e sua abordagem da sexualidade trouxe à tona a questão teórica de como diferenciar, na narrativa fílmica, onde termina o erotismo e inicia a pornografia. O cineasta gaúcho Carlos Gerbase apresenta diversas tentativas de classificação, todas falhas em sua opinião¹². A distinção Plástica qualifica um filme de acordo com a visualização da genitália: no pornográfico tudo é mostrado enquanto no erótico ela é escondida. O viés psicológico destaca o pornográfico pela representação do ato sexual como algo mecânico, enquanto no erótico encontra-se sentimentos presentes na ação. A abordagem Intuitiva apela para o elemento subjetivo e simplificador. O viés estético procura classificar o que seria de bom gosto, para uma obra erótica e de mau gosto para a pornográfica. A saída, para o cineasta, estaria em pensar cada filme a partir de sua postura, sendo que esta pode ser conformada ou libertária.

    Nos EUA dos anos 1970 quando diversos filmes recheados com cenas de sexo explícito ocuparam espaço comercial vigoroso, o código Hays já havia sido abandonado e no lugar reinava a classificação da Motion Picture Association of America (MPAA), que enquadrava estes filmes como X-Rating. Contudo, estas obras se diferenciavam qualitativamente das produzidas nos dias atuais. Havia a preocupação com um argumento e roteiro, e os protagonistas pareciam saídos da vida real e não de uma fábrica de bonecas infláveis. Mostrando as peripécias de uma mulher que buscava respostas para sua insatisfação sexual, Garganta profunda pode ser até ser classificado como uma comédia. Este filme foi responsável por retirar o cinema erótico do gueto e tornou-o um produto de massa. Com um criativo argumento (mulher virgem se suicida e no purgatório faz um pacto com o diabo para que este encarne em seu corpo e usufruam diversas experiências no retorno a terra) O diabo na carne de Miss Jones iniciava com um extenso monólogo da personagem em frente ao espelho. Atrás da porta verde aderia a onda flower power de uma grande orgia quase ritualística. Café Flash - gozos atômicos retratava um futuro pós-apocalíptico onde os seres humanos não sentiam mais prazer sexual. Na esteira destas obras seus realizadores eram alçados ao Pantheon dos grandes cineastas: Anthony Spinelli, Alex DeRenzy, John Leslie e Gerard Damiano com certeza ainda encontram admiradores ao redor do mundo¹³.

    Na exaltação dessa abertura o recuo moralista e auto repressivo foi impulsionado pela proliferação do VHS: as tiranias da intimidade¹⁴ ressurgiam das cinzas, mas não sem uma mudança estética nos seus produtos. A estruturação do porn valley e a criação de um star system próprio proliferou a quantidades de filmes produzidos, mas que abandonavam a adoção de um argumento, de um roteiro e a exibição em salas de cinema. Passou-se a produzir cenas juntadas e vendidas quase que metaforicamente como filmes para consumo doméstico (hoje dominadas pela internet). Todo esse contexto foi magnificamente retratado em Boogie nights, e uma visão europeia pode ser vista em O pornógrafo. Diversas produções atuais – no rastro dos realitys shows, caracterizadas como gonzo, buscam retratar o sexo como um registro amador, apontando para a veracidade da cena filmada. Dificuldade inerente a toda cena sexual, cabe perguntar como é possível traspor uma experiência tátil para a película? Como caracterizar esta realidade? Lembrando a crítica de André Bazin, a presença de uma cena real de sexo seria igual à realização de uma cena de morte de um tiroteio. E referenda: O cinema pode dizer tudo, mas não de forma alguma tudo mostrar. Questões complexas e ainda presentes.         

    Enquanto isso, nas terras brasileiras, após alguns filmes reflexivos como Noite vazia e Os cafajestes, sob os olhos da ditadura gestou-se a pornochanchada e o cinema marginal, produzindo uma variedade de títulos com qualidades variadas. Gisele e diversos títulos de Carlos Reichembach dividem o cenário com peculiaridades como As emoções sexuais de um jegue e Experiências sexuais de um cavalo (não esquecendo o famoso cachorro de 24 horas de sexo explícito). A retomada no início dos anos 1990 trouxe uma esperança para produções mais ousadas que se perderam no predomínio de obras com estética novelesca, salvo aquelas mais independentes como Um copo de cólera e Entre lençóis

    Os coloridos anos 1980 consagraram diversas aventuras adolescentes (Porkys, O último americano virgem), avós e (talvez) um pouco menos grotescos dos contemporâneos American Pie. Curiosamente, alguns filmes atuais apresentam a inserção da pornografia como possibilidade de sobrevivência (Show de vizinha, Pagando bem que mal tem), e até ironizam a liberdade da juventude. A good old fashioned orgy mostra um grupo de jovens dispostos a realizar uma orgia antes da venda da casa de praia de um deles. Como eles não sabem como executar a empreitada partem em busca dos conselhos de um morador experiente para ensinar-lhes como se faz uma orgia! Mas a década que encerrou o curto século XX ainda mostraria Corpos ardentes e destacaria que O amor não tem sexo.

    A estética yuppie e pós-moderna fez escola com Sexo, mentiras e videotape e 9 semanas e meia de amor. A manteiga de Romy Schneider cedia lugar ao mel, chantilly e aos morangos de Kim Baysinger. Ainda nos anos 1990 surgia um novo mito pelas mãos de um cineasta que nunca havia esquecido daquilo. Instinto Selvagem, de Paul Verhoven, ousou com Sharon Stone protagonizando uma longa cena de sexo com Michel Douglas e a breve cruzada de pernas que incendiaram uma década meio morna. Ainda tivemos Madonna tentando provocar com seu Corpo em evidência, Demi Moore tirando a roupa em Strip-tease e processando em Assédio sexual.

    No vizinho Canadá o sexo conectava-se a elementos fantásticos e bizarros. David Cronenberg realizou uma série de filmes que misturavam terror, sexo e criaturas bizarras. Em Calafrios parasitas criados em laboratório para liberar a sexualidade humana acabam sendo soltos num prédio originando diversos bacanais entre seus habitantes. Os filhos do medo narra a história de uma mulher que dá à luz mutantes assassinos, materializando seu ódio contra humanos. Enraivecida na fúria do sexo é considerado uma obra que antecipa a presença da AIDS ao retratar uma mulher que sofre uma cirurgia plástica com uma experimental restauração de tecidos. Como resultado surge uma sequela inesperada: da axila da moça nasce um órgão alimentador que suga o sangue de suas vítimas, seduzidas pelo charme da mulher, transmitindo o contágio para o infectado que após um tempo acaba morrendo. O mórbido e o fetiche ressurgem com força total no polêmico Crash – estranhos prazeres. Denys Arcand, já famoso por O declínio do império americano realiza Amor e restos humanos e Atom Egoyam dirige Exótica¹⁵.

    Do oriente Zhang Yimou retratou de forma ímpar a repressão nas obras Amor e sedução, Lanternas Vermelhas e Adeus minha concubina. Na França, não esquecendo a política, o veterano Louis Malle lança Perdas e danos. Na Inglaterra A prostituta, de Ken Russel (que já havia polemizado em Mulheres apaixonadas), é taxado de pornográfico em alguns países. A Espanha pós-franquista apresenta um Almodóvar retirando a poeira do armário e provocando as convenções sociais com Ata-me e Kika. Na Inglaterra Peter Grenaway usa um tom de escatologia em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, 8 e ½ mulheres e O livro de cabeceira. Diversos temas também seriam explorados em filmes interessantes: Ovos de ouro, Oleanna, Traídos pelo desejo, Encaixotando Helena, Orquídea selvagem, Gosto amargo da paixão e De olhos bem fechados.

    O Noir moderno trouxe à baila as mulheres fatais revisitando os tempos antigos (Los Angeles – cidade proibida; Dália negra; O homem que não estava lá) ou com releituras como na tele série Femme fatales. O filme homônimo de Brian de Palma (que já havia realizados experiências com Dublê de corpo) apresentou a nova loira fatal Rebecca Romijn Stamos.

    Nos dias atuais, a questão da fronteira entre o pornográfico e o não pornográfico parece ter voltado à tona. A proliferação de produções em diferentes formatos e a coprodução entre diversos países dinamizaram variadas abordagens. De Transamérica e Tudo sobre minha mãe até 9 canções o cinema experimentou um pouco de tudo. A ampliação do debate sobre questões de gênero e a forte presença feminista na contemporaneidade contribuiu para uma diversificação de temáticas e enfoques. Uma leva de filmes lésbicos surgiu ao redor do mundo: Lírios de aranha em Taiwan, Yes or no na Tailândia, Eternal no Canadá, Tudo pode acontecer no Chile, Oubler Chayenne na França, Elena Undone, Assunto de meninas, Meninas não choram, Desejo proibido nos EUA, Almas gêmeas na Nova Zelândia, Um quarto em Roma na Espanha, entre outros. Uma leva de filmes destacando a relação entre um casal filmada praticamente em um único cenário (En la cama, Um quarto em Roma) mostra que a discussão da relação ainda vale para a estética cinematográfica. Ainda sobre as relações e da dificuldade que as pessoas enfrentam para se conectar uma com as outras Shame apresenta uma interessante abordagem. O lado sentimental masculino ganha destaque em O homem que ama, que talvez peque pela falta de verossimilhança, uma vez que o personagem principal não demostra interesse pela esposa, interpretada por Monica Bellucci!

    Nestes mais de cem anos de cinema, a relação de Clio, Eros e a sétima arte é múltipla e tem sua história! No âmbito acadêmico foi a obra de Michel Foucault que fomentou o debate no século XX¹⁶. Foucault destacou que a sexualidade foi contida no período vitoriano. Antes disso, as práticas não procuravam o segredo e uma franqueza demarcava os atos. Nas noites monótonas da burguesia vitoriana a sexualidade muda-se para dentro de casa, confiscada pela família conjugal, praticamente ficando restrita ao quarto dos pais. O decoro das atitudes trata de esconder o corpo e a decência empregada nas palavras limpas dos discursos. Todo o resto encorpava os lugares de tolerância. Produto do século XVIII, a scientia sexualis configura a vontade de saber, oposta a ars erótica que demarcava uma verdade extraída do prazer, encarada como prática e recolhida como experiência. Esta arte predizia o domínio do corpo e o gozo sem limites, muito diferente das práticas do XIX, onde o sexo é reinscrito no sistema da lei. Do sangue como referência do mecanismo de poder e do funcionamento da ordem dos signos passou-se para o poder do sexo. Os mecanismos de poder agora se dirigem ao corpo.

    Num espaço de cento e cinquenta anos os diferentes discursos sobre a sexualidade buscaram falar sobre seu próprio silêncio, detalhar o que não se diz, denunciando os poderes que exerce. A interdição do sexo não se configura uma ilusão, a verdadeira ilusão é fazer desta interdição o elemento central. Em suma: o poder está no discurso. Nesta profusão de discursos sobre sexo iniciado no XVIII o cinema demarca seu ápice. Suas representações são filhas da repressão, mas também se opõem, desvinculam e a questionam. É neste espaço que os discursos se colocam em movimento, se renovam, assumem outra perspectiva. Falar sobre sexo e sobre sua repressão constitui-se uma transgressão, inserindo seu ato fora do alcance do poder.

    Dessa forma o termo sexualidade agrupa diversos fenômenos de comportamento, sensações, desejos, instintos, paixões e, claro, sexo! Não cabe isolar este termo no plano dos conceitos, pois ele é uma figura histórica real! História, Cinema e Sexualidade. Neste livro Clio (musa da História) se encontra com Eros, o mais belo dos deuses imortais, no escurinho do cinema, sétima das artes. Desse ménage à trois propomos uma obra que perpasse, questione, reflita e contribua para a análise dessa visão histórica-cinematográfica. Como um bom ménage nenhum dos envolvidos deve aproveitar menos que o outro, o prazer deve ser total! Mas neste caso Clio é a dona do quarto e diz que hora tem que acabar ou começar a festa! Da antiguidade a contemporaneidade diversos enfoques afloram nos filmes escolhidos. Sexo, amor, pecado, desejo, sensações, comportamentos, repressão e transgressão (entendida como um deslocamento, quebra de expectativas, o cruzamento de uma fronteira). Procuraremos não adotar a fronteira do pornográfico e do erótico, o primeiro visto como a representação explícita da sexualidade, a carnalidade sem amor físico; e o segundo tomado pela representação sugerida, uma metáfora. Buscar-se-á refletir sobre conceitos, práticas e discursos dentro dos seus marcos e contextos fazendo-os questionar e analisar as práticas atuais e, quem sabe, futuras. Assim, títulos de filmes conhecidos ficaram de fora justamente pela grande exposição e estudo e outros menos óbvios foram incorporados para tentar agregar outro olhar¹⁷.

    Este livro é fruto do sétimo Ciclo de Cinema, História e Educação promovido pelo Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em conjunto com a Sala Redenção –– Cinema Universitário. Estes ciclos, promovidos e guiados sempre pelo eixo histórico, permitiram um frutífero debate, confronto de ideias e pontos de partida para experimentações e reflexões teóricas na UFRGS. As temáticas variaram dos Conflitos periféricos do século XX, o ano de 1968, os anos nove do século XX, os conflitos bélicos dos EUA, a relação do esporte com a História, o fim do mundo na História, a relação da sexualidade, História e cinema, e, por fim, a História do tempo presente¹⁸. Deles resultaram obras literárias compostas por artigos inéditos escritos pelos palestrantes¹⁹. Alguns dos artigos apresentados aqui são autorais, podendo haver dois textos sobre um único filme; outros tantos foram escritos a quatro mãos pelos membros de algumas das sessões de cinema. E sobre eles falaremos breves comentários.

    O primeiro capítulo intitulado Em Roma como os romanos: de Petrônio a Fellini (ou o Minotauro em seu labirinto) foi realizado por Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, professor do Departamento de História da UFRGS.  O texto parte de três questões associadas ao filme Satyricon: a Religião, a Historiográfica e a Política. A religião é destacada a partir da tradição cristã sobre os pecados e sua relação com o Apocalipse. A clássica obra de Edward Gibbon pauta o ponto historiográfico. E, por fim, as questões concernentes aos eventos de 1968 e suas influências na produção do filme de Fellini compõem a última questão. O desenvolvimento do capítulo apresenta a relação de Satyricon com outras obras do cineasta e desenvolve um diálogo com o livro de Petrônio.

    Segue o capítulo Do texto que desvela à nudez que revela! O Decameron de Bocaccio a Pasolini, de autoria de José Rivair de Macedo (professor do Departamento de História da UFRGS) e Cesar Augusto Barcellos Guazzelli. O capítulo apresenta um panorama das narrativas eróticas do período medieval, destaca a influência dos relatos orais e suas apropriações por novelistas nos séculos XIV e XV. Segue-se um estudo sobre as partes da obra Decameron de Boccacio e sua relação com o filme de Pasolini.

    As histórias do bardo inglês William Shakespeare estão presentes no capítulo escrito por Rafael Belló Klein, Doutorando em História pela UFRGS. A tragédia romântica de Romeu e Julieta na cultura ocidental: diversidade de adaptações e funções arquetípicas não realiza apenas um diálogo do filme com a obra literária, mas amplia o foco para diversas obras cinematográficas influenciadas por Shakespeare. A adaptação cinematográfica de Romeu e Julieta é apresentada a partir de três arquétipos: o amor juvenil, o amor romântico e o amor trágico.

    O filme Kama Sutra: um conto de amor, de Mira Nair, serviu de escopo para o professor Rafael Farias de Menezes (Licenciado em História pela UFRGS) abordar como se organiza o livro e seu processo de difusão no mundo ocidental no capítulo Kama Sutra: uma introdução.

    A obra de Stanley Kubrick, Lolita, é abordada no capítulo escrito por Rafael Hansen Quinsani (Doutor em História pela UFRGS). Lolita(s), sexualidades e cinematografia: Breve história de uma polémica apresenta as influências para o livro de Nabokov e as diferentes adaptações para o cinema, que é tomado como agente da História. Partindo da concepção de cinema-eco o autor elenca as camadas presentes na construção de uma obra fílmica.

    O filme Clamor do Sexo, do cineasta Elia Kazan, ancorou a constituição dos dois capítulos seguintes. Em Os Estados Unidos são uma festa (para poucos): Os roaring twenties e a sociedade norte-americana Arthur Lima de Avila (professor de História na UFRGS) apresenta os anos 1920 nos EUA com suas especificidades e contradições de um contexto que apresentava o desenvolvimento da Segunda Revolução Industrial e dava o ponta pé inicial para o consumismo e as mudanças sociais e culturais. Rafael Belló Klein é o autor do capítulo O obsceno e o erótico no clamor do sexo de Elia Kazan. Ele apresenta as polêmicas que marcaram a atuação de Elia Kazan e o desenvolvimento de sua filmografia até a obra Clamor do Sexo. A película é analisada sob a tríade do moralismo, conservadorismo e puritanismo.

    A película Drácula de Bram Stocker, dirigido por Francis Ford Copolla, é abordado em dois capítulos. A professora da UNIFRA Nikelen Witter em Drácula: a vítima e o vilão traça um panorama das raízes antigas dos vampiros até os séculos XIX e XX centrada na figura da mulher e do feminino. Cesar Augusto Barcellos Guazzelli em O conde e a rainha (ou o vampiro vem do leste) apresenta o vampiro sob a ótica da sensualidade analisando sua trajetória na literatura, na história e no cinema.

    O professor do Departamento de Psicologia da UFRGS Amadeu Weinmann apresenta o capítulo Os limites de uma erótica. Sobre "O Império dos sentidos". O filme de Oshima é apresentando sob a ótica da construção da sexualidade e do erotismo. O contexto cinematográfico da Nouvelle Vague japonesa é analisado e o autor dialoga com outros filmes da década de 1970 através da obra de Paulo Menezes. É de Luiz Dario Teixeira Ribeiro (Professor de História na UFRGS) o capítulo O império dos sentidos. O texto constitui-se na transcrição da palestra proferida sobre o filme e apresenta uma relação da História do Japão com filme, sua relação com o Ocidente, a abertura pós-século XIX e o embate entre modernidade e tradição, sempre dialogando com a estética da obra.

    Rafael Rosa Hagemeyer, professor da UDESC, escreve o capítulo O porteiro da noite: a erotização do nazismo. A erotização do nazismo, seu processo de demonização e o uso de sua simbologia segue a trilha apontada por Susan Sontag para uma profunda análise da película de Liliana Cavani. Sobre o mesmo filme, a psicóloga Nilza Silva apresenta Sob uma mira estrábica, que analisa o filme partindo do seu contexto de produção, traçando uma analogia com seis eventos contemporâneos a realização do filme.

    Os professores Gerson Wasen Fraga (Departamento de História da UFFS-Erechim) e Fatimarlei Lunardelli (Jornalista na UFRGS) apresentam o clássico Casablanca no capítulo Filmes de guerra, beijos de amor: Casablanca. O capítulo apresenta uma leitura da presença do amor e do erotismo no filme, destacando a História de produção da obra e seu contexto histórico.

    Diorge Alceno Konrad, professor de História na UFSM, E deus criou a mulher: o realismo da epiderme ou apenas mais um filme interessante apresenta uma detalhada descrição do filme para mostrar elementos de sua composição, do contexto histórico, da crítica. Benito Bisso Schmidt (Professor de História na UFRGS) em E o homem... Criou a mulher (deus não teve nada a ver com isso!): Uma análise de e deus... Criou a mulher a partir de uma perspectiva de gênero destaca que a obra de Vadim é um filme ousado, mas que ao ser submetido ao exame mais detalhado apresenta uma narrativa conservadora. O capítulo analisa as representações de masculinidade e feminilidade, seus estereótipos de hierarquias.

    A seção brasileira contou com a exibição de Bonitinha, mas ordinária. Dela, duas análises foram produzidas. Adolar Koch, professor do Departamento de História da UFRGS, apresenta Bonitinha, mas ordinária: contexto histórico. Os anos 1960, com a crise populista e seus diferentes elementos de formação são apresentados de forma clara e abrangente. Nathália Cadore, mestranda em História na UFSC, escreve Gênero e sexualidade em Bonitinha mas ordinária ou Otto Lara Rezende (1981) a partir de uma leitura feminista. A partir do estudo dos personagens e das cenas do filme ela apresenta um debate com conceitos teóricos do feminismo.

    O último capítulo foi escrito pelo Professor da Faculdade de Educação da UFRGS Fernando Seffner e apresenta uma análise do filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar. Em Pele: órgão dos sentidos Fernando conecta o filme com diversos campos de debate atuais, como questões de gênero, as polêmicas da área médica e as representações do corpo.

    Transpondo os liames da Sala Redenção, a ferramenta do blog desenvolvida na internet também permitiu abordagens diferenciadas tanto nas temáticas históricas como de outros filmes e mídias, compondo um amplo suporte para nosso evento. Desse modo, apresentamos os seguintes textos da seção Extras: Augusta da Silveira de Oliveira escreve Bollywood, Item girls e feminismo: o sexo que vende. Daniel Francisco de Bem apresenta Histórias em quadrinhos: eros, gênero e valores e papéis sexuais. Duda Falcão compõe As vampiras no castelo de Drácula: um estudo de gênero. Rafael Vieira Levandovski redige O mito da ninfeta: Fetiche ou Obsessão?. Christopher Kastensmidt escreve Um curto intermezzo: sexo no mundo dos games. Rafael Belló Klein apresenta Everybody comes to Rick’s. Algumas reflexões sobre a situação política mundial em Casablanca. Guilherme Kichel de Almeida escreve Sade e Sadismos. Danielle Antpack Bettim apresenta Uma crítica à moral sexual repressora: a obra de Wilhelm Reich.

    Por fim nosso agradecimento especial dirige-se aos componentes do Departamento de Difusão Cultural que, já pela sétima vez, empenharam-se na realização do Ciclo de Cinema com seus recursos humanos e materiais. Citando sua Diretora, Claudia Mara Escovar Alfaro Boettcher, a Coordenadora e Curadora da Sala Redenção – Cinema Universitário Tânia Cardoso de Cardoso, e o Administrador da Sala Redenção – Cinema Universitário Edgar Wolfram Heldwein, estendemos nossa gratidão aos demais membros do Departamento. Também não podemos deixar de citar o trabalho de Augusta da Silveira de Oliveira, Rafael Vieira Levandovski, Guilherme Kichel de Almeida e Lívia Amarante Gallo na organização do evento e projeção das películas.

    Bom ménage a todos!

    Em Roma como os romanos: de Petrônio a Fellini (ou o Minotauro em seu labirinto)

    ²⁰

    Por Cesar Augusto Barcellos Guazzelli²¹

    "Um dos sete Anjos das sete taças veio dizer-me:

    "Vem! Vou mostrar-te o julgamento da grande

    Prostituta que está sentada à beira de águas

    copiosas" (Apocalipse 17: 1-2)²²

    Antes da análise do filme Satyricon de Fellini e do livro Satíricon de Petrônio, inspirador do cineasta, convêm algumas considerações prévias. Parto de três questões que se associam na leitura feita por Fellini: uma religiosa, a tradição cristã sobre os pecados que derrubaram Roma Antiga; uma histórica, sobre decadência do Império Romano tributária da obra célebre de Edward Gibbon; uma política, sobre a conjuntura europeia contemporânea dos movimentos de 1968.

    Sobre a primeira, é quase impossível pensar em Roma na época em que viveu Petrônio sem a lembrança do Apocalipse, texto do Novo Testamento atribuído a João de Patmos, que muitos identificam com o João Evangelista, o apóstolo preferido de Cristo. João teria nascido no ano 10 e vivido até o 103 D.C., acompanhando assim momentos tormentosos da história romana. De acordo com algumas interpretações, as referências que o santo faz à grande meretriz ou prostituta – mesmo que apareça muitas vezes a citação da Babilônia! – seriam dirigidas àquela que se constituía na mais importante cidade do seu tempo, centro do maior império construído no Ocidente. Mais que isto, Roma era o lugar onde os cristãos tinham sido martirizados! Mesmo que Fellini não fosse um homem religioso, pode-se presumir que no seu filme hajam ressaibos do texto sagrado dos cristãos.

    O texto que legitimou por primeira vez de ponto de visa estritamente histórico o fim de Roma foi Declínio e Queda do Império Romano²³, do inglês Edward Gibbon, escrita entre 1776 e 1788. Esta alentada obra – seis volumes! – é por muitos considerada pioneira no sentido de evitar as explicações associadas ao cristianismo e buscando apoio em fontes judiciosamente estudadas. Tampouco passaram pelo crivo do autor obras históricas anteriores que não baseassem seus relatos em comprovações empíricas. Neste sentido, o autor trouxe para si contrariedades daqueles que interpretavam os acontecimentos à luz dos preceitos religiosos, trazendo uma visão laica da sociedade romana. De toda sorte, ele confirma a noção já estabelecida de que houve uma crise prolongada seguida de um final melancólico.

    A conjuntura em que se realizou o filme é inseparável do turbilhão que atingiu em 1968.²⁴ A Europa foi profundamente marcada pelos acontecimentos que se propalaram mundialmente, mas especialmente pelo maio francês e pelo final da primavera de Praga. Os novos antagonismos sociais trazidos pelo movimento estudantil e operário na França não cabiam mais nas amarras dos partidos classistas; de outra parte, o socialismo real mostrava fraturas e debilidades que comprometiam o modelo soviético. A noção de que um mundo se esboroava trazia como eco uma analogia com um passado também pretensamente civilizado que não superou suas contradições internas e se derrubou totalmente. Esta Europa sacudida pelo terremoto de 1968 pariria o filme de Fellini no ano seguinte.

    A presença de Roma e seu passado se impunham, e certamente não foi coincidência os dois cineastas italianos quase simultaneamente criarem filmes baseados um tanto livremente no livro de Petrônio! Em 1969 o diretor Gian Luigi Polidoro lançou Satyricon algum tempo antes de Federico Fellini, que tentou estrear sua película com o mesmo título. Seguiu-se uma breve disputa judicial que deu ganho de causa para Polidoro. Capciosamente, no entanto, Fellini fez uma mudança no título que só aumentou sua identificação com o tema: Satyricon de Fellini, que terminaria reconhecido pela sua forma abreviada, independentemente das queixas do concorrente. (O abalo de foi tão grande que

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