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Panóptico
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E-book179 páginas2 horas

Panóptico

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Sobre este e-book

Cada movimento seu está sendo rastreado, cada palavra sua, gravada. Você é só um rosto entre milhares, entre grandes multidões de pessoas que sofreram lavagem cerebral, bem-comportadas e leais. A produtividade nunca foi tão alta e o trabalho tão degradante. A mídia dita o que pensar, falar, ler - se é que ainda se lê -, e o exército está sempre triunfante e glorioso. Um movimento errado, um passo em falso, um deslize, e você poderá desaparecer. Há pessoas que tentam lutar, mas não há promessas de finais felizes.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de out. de 2021
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    Panóptico - Joicy Silva (organizadora)

    PREFÁCIO: O Pesadelo do Real

    Lucas Havoc Suzigan

    Distopia… Uma palavra às vezes pouco conhecida entre os leigos, mas bastante difundida no meio artístico, distopia conota uma realidade fictícia cuja organização social estabelecida é representada a partir de condições de vida insuportáveis, como opressão, escassez, infelicidade. Mas de onde vêm as distopias? Por que elas têm tanto impacto no mundo de hoje? E, talvez mais importante, o que é uma distopia?

    A palavra tem origem incerta. Há divergências sobre o primeiro uso da palavra distopia, alternando entre 1747 (grafado como dustopia) e 1952 (impresso já enquanto definição de gênero literário), sendo a hipótese mais interessante o discurso do liberal John Stuart Mill na Câmara dos Comuns do Parlamento Britânico, em que ele contrabalanceia o melhor governo possível (a utopia) com o pior (a distopia). O que, aliás, é a origem semântica da palavra: uma distopia seria essencialmente um lugar infeliz, em oposição à utopia (um não lugar, ou, em uma possível alternativa, um lugar bom), como uma espécie uma antiutopia.

    Uma distopia, como já perceberam, é uma utopia às avessas. É a realização da desesperança e do desalento como expressões artísticas, um pesadelo que perpassaria todas as camadas da organização social, transmutando-as em um inferno. Mas o que mais assusta numa distopia não são os requintes de crueldade, o detalhamento sombrio de monstros ou os jumpscare que o autor coloca em sua obra. O que mais assusta é a sensação de realismo e de plausibilidade que o leitor tem daquela ficção apresentada. A possibilidade, ou iminência, daquilo tudo se concretizar é o que há de mais assustador na arte distópica. É o pesadelo do real.

    Toda época tem suas características. Ou mitos, poderíamos dizer, numa leitura um pouco mais barthesiana. Cada sociedade, civilização, momento, tinha o seu jeito de ser. Desejos, anseios, maneirismos. E isso dá o grau de unicidade de cada contexto.

    Mas, assim como as grandes idealizações e sonhos, cada sociedade tem também seus grandes temores. Desemprego, fome, doenças, ... e, a partir dessas coisas, controle e opressão, sejam provindas de um Estado policial, de uma teocracia, de uma ditadura centrada em megacorporações, ou de outras distorções de realidades.

    E é assim que nasce uma distopia. É disso que se trata. O temor de cada sociedade concretizado em uma realidade fictícia, trazendo à tona medos e traumas coletivos e mostrando aos leitores o que eles mais temem se realizando socialmente. Então, quando lemos 1984 ou O Conto da Aia, diferente de literaturas mais especificamente de terror ou horror, o que nos afeta não é exatamente o drama das personagens do enredo, mas sim a incômoda sensação de que, de certa forma, o mundo que conhecemos pode se desdobrar em algo tão horrível quanto o fictício, e que a história apresentada pode bem vir a ser a nossa. E voltamos ao pesadelo do real, a essência das distopias.

    Todas as formas de distorção e perversão de elementos componentes da nossa realidade social são possíveis, com a teocracia, o anarcocapitalismo megacorporativista e o Estado Policial sendo essas apenas algumas de suas possibilidades, cabendo ao autor tentar trabalhar e transformar em realidade os temores de seu público-alvo, tecendo suas fobias e anseios em uma besta maligna para assombrar sua mente.

    Sim, eu disse público-alvo, porque a distopia, quando formulada, tem sempre nome e endereço destinatário. Não que ela não possa ter impacto sobre outros leitores, mas ela terá um impacto muito mais profundo em um determinado público. Embora O Conto da Aia, de Margaret Atwood, por exemplo, seja capaz de sensibilizar diversos leitores, seus efeitos são substancialmente mais impactantes entre mulheres, especialmente entre aquelas que não são conservadoras ou fortemente religiosas (cristãs). 1984, de George Orwell é um livro de referência em termos de distopia, mas tem um impacto diferente entre um público com menor escolaridade e entre os mais instruídos (ao contrário de seu Revolução dos Bichos, que tem, devido a sua escrita mais palatável, uma aceitação maior entre os jovens e os mais velhos, independente da classe social). E V de Vingança (tanto o filme quanto os quadrinhos, de Alan Moore) tem um impacto diferente dependendo da mídia, com os quadrinhos sendo explicitamente mais anarquistas, embora ambos trouxessem a leitura antiautoritária, ativista e revolucionária, mesmo que em intensidades distintas devido ao público-alvo de cada uma das obras.

    Por outro lado, nem toda distopia apresenta sua abominação sociológica como algo explicitamente temível. Pelo contrário. Muitas obras distópicas, como Admirável Mundo Novo e We Happy Few (inspirado no anterior), ou mesmo outras como Minority Report, apresentam mundos que, à primeira vista, parecem-se lugares agradáveis, acolhedores e seguros, mas, no decorrer de sua narrativa, começam a mostrar um lado cada vez mais ominoso, o que vai mexendo com os temores do leitor, criando a sensação de incômodo que vai gradualmente desdobrando-se em horror. Da mesma forma, nem toda distopia apresenta seu Leviatã como agressivo ou impositor, podendo fazê-lo de forma sutil e diabólica, corrompendo os corações e mentes rumo a um futuro nefasto.

    Este livro é um fruto disso. Das distopias. Em especial, daquelas que giram em torno do controle, da vigilância em massa e da supressão das individualidades, aqui representada a partir do Panóptico de Foucault, um tipo de prisão em que todos os detentos têm seus corpos expostos a uma estrutura central de guarda, onde um número pequeno de carcereiros consegue fazer a observação de um grande número de pessoas, e que seria um modelo de construção para uma era de vigilância tão opressivamente massiva. Consiste em uma série de contos, escritos por autores de mãos cheias, e compilados pela minha querida amiga Joy. A proposta central é a perversa distorção do controle, e as narrativas abordam essa questão de forma bastante rica e diversa. Histórias sobre perda, opressão, tristeza, desespero, melancolia, desalento, perda de individualidade. Histórias sobre violência, corrupção, autoridade, mas acima de tudo, sobre controle.

    Espero que tenham uma ótima leitura.

    ❋ ❋ ❋

    Epitáfios do Amanhã

    Gaio W. B.

    Não tenho nenhum outro meio para me comunicar com o grande bloco para além destas paredes de ferro sujo, minhas únicas chances dependem do destino incerto destas folhas de alumínio transparente, menores em tamanho que o carvão fundido de plástico retorcido que uso para escrever. Sei que alguém está recolhendo estas anotações pois, sempre ao terminar de escrever, as atiro o mais longe que meu braço alcança através do buraco que abri na chapa de ferro, no canto onde durmo. Não se preocupe em ler o que eu escrevo, consegui tapar o arrombo com a tigela de fezes e não há risco de os homens mascarados descobrirem. A razão pela qual desperdiço energia escrevendo é muito pessoal... Sabe, eu já fui pai um dia.... e procuro minha filha... Ajude-me a encontrá-la, ela desapareceu durante a alvorada...

    Naquele dia, todo o grande bloco foi revistado e minha filha na época tinha pouca idade, já não me recordo das antigas convenções de tempo... ela fora encontrada em nosso entulho, foi levada arrastada pelos cabelos por um dos de máscara e eu, fui espancado e molestado até acordar nesta jaula... Não tenho noção de quanto tempo estou aqui. Escondi minha menina desde seu nascimento, ela nunca havia saído de nossos escombros antes e não conhece o grande bloco, tampouco sabe falar a língua dos homens de máscara. A mantive em segredo de todos que moram no grande bloco por longos anos, desde a época das migrações nômades, quando ainda não chamávamos este lixão cinza descampado de grande bloco. Agora ela se foi... sem nome... nasceu após os horizontes vermelhos, impossibilitando-a de possuir uma identidade ou uma mãe. Minha filha era meu elo com as memórias negras do passado... acho que ainda consigo me lembrar do seu rostinho... carregado com cicatrizes e marcas de queimaduras... assim como todos nós, os que sobreviveram às muralhas infernais...

    ❋ ❋ ❋

    Eu preciso falar daquele tempo, dos acontecimentos... são pouco vívidos em minha mente agora e mesmo assim, talvez não consiga colocar em palavras nestas folhas de alumínio, também não sei quanto tempo me resta. Como visões e sombras ao fechar os olhos, só consigo lembrar-me do grande estopim, em 2500. Naquela época já havíamos passado pelo advento da televisão e da internet, a robótica deixou de ser um mero sonho distante e fictício, passou a integrar a vida de todas as sociedades que pouco a pouco definhavam em suas selvas de pedra, recusando-se cada vez mais a fazer trabalhos essenciais, ditos ignóbeis...  Sempre soubemos que o planeta todo não suportaria, todos nós sabíamos, as temperaturas elevadas serviam como um aviso ano após ano, as florestas sucumbiam gradativamente e os rios secavam à medida que colossais geleiras evaporaram..., mas pouco fizemos para mudar.

    Havia a guerra comercial entre as potências globais, que se estendia desde os tempos primordiais, caminhou para o confronto derradeiro e resultou no fim de tudo como conhecíamos... Escrevo tudo isto para alguém que consegue compreender esta língua? Você já deve conhecer estes eventos, são repassados para as novas gerações através da nossa nova língua unificada, criada após o recomeço. A guerra levou à produção desenfreada de bens cada vez menos duráveis e cada vez mais descartáveis, os recursos eram finitos e mesmo com gigantescos investimentos em pesquisas e protestos em defesa do planeta, nossa ganância nos trouxe até aqui.... no fim, nós quebramos por ninguém...

    Antes do fatídico ano de 2500, já havíamos extinguido toda a fauna e flora globais, nem mesmo a artificialidade científica de organismos animaliax e plantaex escaparam da catástrofe e toda a vida em terra resumia-se a plástico e desertos cinzentos. O acúmulo de lixo derrotou todos os esforços de cientistas mundiais que visavam contê-lo, nos mares e oceanos, só restava a podridão e novos continentes foram formados por gigantescas e imensuráveis placas de plástico que misturavam carcaças de vida marinha e chorume. Toda a água do planeta estava poluída e os reagentes químicos dos diversos tipos de plásticos deteriorados pela ação da natureza e do tempo, tornavam a água um líquido inflamável. Com a ciência avançada, também nos foi possível enviar grande parte do lixo já existente para a órbita terrestre. Grandes esferas meteóricas condensadas de plástico vagavam pelo cosmos e ao redor de todo o globo e, antes de 2500, despencaram como estrelas caindo do céu.

    Pouco antes de 2500 também houve o despertar dos gigantes paredões do inferno, estratosféricas labaredas de fogo que cercaram o planeta; o horizonte vermelho era perceptível em qualquer lugar do mundo. Não havia água ou material capaz de extinguir as anormais muralhas de chamas e os poucos homens e mulheres que ainda estavam vivos, foram mandados para a morte certa na tentativa vã de minar a deflagração. Por fim, as cinzas cobriram o sol para sempre em asco e opacidade; o céu não mais teve cor... Deste céu brumoso, a chuva tornou-se um evento perigoso pois, essencialmente, eram gotículas de líquido negro que despencavam do céu e derretiam grande parte dos materiais sólidos em solo, até mesmo nossa carne...

    Depois de todos os cataclismas, o estado de exceção tornou-se a regra, os poucos povos remanescentes reuniram-se em um continente menos afetado pelo fogo e dali, no ano de 2500, surgiu o Amanhã. A promessa inicial era conceber a ordem, reestruturar os sobreviventes e construir o recomeço para um novo futuro, um amanhã possível, uma nova civilização; e por fim, devolver o estado democrático de outrora. O que restava de espaço vital no mundo, fora dividido em dois blocos continentais cooperativos, pertencentes à mesma organização, o Amanhã. Nós, os sobreviventes, carregávamos farrapos e convivíamos com restos de lixo que ainda cobriam o planeta... moribundos, trazendo no corpo as diversas marcas do verdadeiro inferno. Nesta época eu perdi minha esposa ao dar à luz a nossa única filha...

    Naquele período, sentíamos que a nova entidade mundial traria de volta nossa civilidade e humanidade e que aos poucos reconstruiríamos a antiga sociedade que deixamos por falir, mas aí veio a primeira ordem do Amanhã: a construção de grandes blocos de moradas que serviriam como nossos novos lares. Era a forma encontrada de proteger a todos das cinzas eternas que caiam daquilo que um dia já chamamos de

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